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14 de set. de 2020

Poeira *

Já percebeu que os seus tataranetos provavelmente não saberão nem o seu nome? A não ser pela lógica (já que ninguém existe sem ter vindo de alguém) eles não terão ideia de que você existiu. De que você era você. Não é inquietante perceber que você não significará nada para eles? Nada! Um cachorro, um passarinho que esteja vivo terá mais importância para eles do que você e toda a sua história - gloriosa ou furreca.


E se você se tornar famoso? Mesmo que você se torne famoso, ainda assim eles não te conhecerão. Você será apenas um personagem manipulado, cercado de mentiras ou suposições ridículas. Com sorte você se tornará um personagem muito pouco parecido com o que você é mesmo.

Eu sei o nome dos meus avós e minha bisavó e bisavô. E só. Não sei nada sobre os pais deles. Sumiram no tempo. Evaporaram assim como eu evaporarei.

Em muito pouco tempo a minha passagem sobre a Terra será sumariamente apagada sem deixar rastros. Documentos se perderão. Pior: algum filho da mãe pode até aparecer e dizer que eu nunca existi!!!! "Não existem evidências!" Meus descendentes, embora devam a vida a mim (digamos assim) dificilmente se interessarão em saber que eu fui, o que eu pensava, o que eu sonhava, quais foram os momentos mais felizes ou mais tristes da minha vida.

Cara, essa insignificância pesa. Hoje, meio que de repente, estou incomodado com ela.

Estou pensando em construir uma pirâmide em minha memória.

13 de set. de 2020

Inserir é para os fracos *


"Insira, por favor". Por enquanto parece que ainda podemos dizer isso sem receber de volta uma saraivada de risadinhas.   Incrível o medo que temos das risadinhas! 

Já notou como ficarmos evitando palavras para não sermos engraçados?  Como as risadinhas intimidam as pessoas! 

Hoje em dia quando você vai pagar alguma compra com cartão de crédito a moça do caixa não diz "pode colocar" ou "pode meter".  Nãaaa! Não pode porque seria engraçado demais!  Ninguém pode botar nem meter nada: tem que INSERIR,  muito formalmente e com cara séria.

Qual o problema de dizer "pode meter" ou "pode enfiar, senhor".  Nessas horas eu queria ser caixa de loja só para ter o prazer de desafiar esse tipo de bobagem. Só pra mostrar que sou superior e não me curvo a intimidações tolas.

Que bobões estamos nos tornando!  Agora todo mundo fala "insira por favor"  como se inserir fosse algo muito diferente de meter.

Sim, se eu trabalhasse num caixa iria fazer questão de transgredir. Iria encher a boca na hora de passar o cartão e diria "pode botar" ou "pode meter o cartão, senhor". Qual o problema?   Achou engraçado? Pois que ria! Ótimo. Pelo menos já sai da loja mais feliz do que quando entrou. Acho que estamos precisando mesmo de mais "meta", "coloque" e "ponha" nem que seja só pra fazer os bobos rirem.

Inserir, pra mim, já é um um sinal de fraqueza.  Os fortes não se submetem a esse tipo de pressão. Portanto "colocar", "botar" e "meter" são atos da mais pura rebeldia, enquanto que "inserir"é coisa de gente frouxa. 

Quem tem medo de risadinha imagina o quanto não se rebaixaria para fugir de uma cara feia.


8 de set. de 2020

O louco (em 15/06/14) *

Já faz anos e todo mundo está careca de saber que o falecido ator Heath Ledger recebeu indicação para o prêmio Globo de Ouro por sua atuação como Coringa em "Batman - The Dark Knight”. Sim, os loucos são enigmáticos, inquietantes e às vezes cativantes. Por isso mesmo o cinema jamais esquece deles.

Geralmente os personagens malucos existem para nos meter ódio. Ou nos deixar encurralados, sem saber o que fariamos nas situações por eles propostas.

Quando assistimos a história de um bom menino que se tornou mau porque não suportou o peso da vida ficamos comovidos.  Somos então forçados a refletir sobre nossa própria fragilidade. Nossa mente é sujeita a deformidades e isso é assustador.  O cérebro está lá, guardadinho em sua caixa de osso, mas mesmo assim pode ser afetado por coisas invisíveis! Algo não-físico atravessa a caixa craniana e causa mais estrago que uma paulada.

Heath, como Coringa, no fez rir com o cenho franzido. Ele conseguiu passar para nós um peso interior, um mal estar generalizado que era impossível ignorar. Em seus modos amalucados ele atraía para si todas as atenções.   Heath Ledger fez o papel do louco que sofre, sangra por dentro e por isso esmurra o mundo.

Todos nós, às vezes, invejamos os loucos. Eles, somente eles, tem liberdade para dizer o que quiserem e serem como decidirem ser.  Eles assustam e às vezes até se impõe por isso.  

Loucura é a liberdade sem freios. A liberdade ao quadrado. A liberdade tão livre mas tão livre que nem seu dono consegue agarrá-la. Ele é arrastado por esse cavalo assustado e indomável.  O louco não tem controle, não se controla mas em compensação faz o que quer, grita, diz o que quer, se impõe. É desse tipo de liberdade que estou falando: uma liberdade amarga. Eles podem tudo, menos se controlar. Por isso não cabem nesse mundo e vivem em um mundo paralelo.  Vivem lá e cá.

Há uma dose invejável de liberdade na loucura.  Só uma dose, e é cara. É bem verdade que ser "normal" também não é lá muito barato... 

A loucura é a liberdade e, contraditoriamente, a suprema prisão. E isso é estranho, como não poderia deixar de ser.

3 de set. de 2020

Uma nova sociedade mais justa? *

Ei ! Você aí! Sim, você mesmo! Venha cá e me responda: sério mesmo, você está a fim de construir uma nova sociedade?   "Claro que sim" uma ova.  A resposta certa é "claro que não". 

Todos nós odiamos e amamos nosso modo de vida. Preferimos ficar com o que odiamos se  para isso pudermos manter o que amamos. O pacote é completo, não dá pra separar.    Por exemplo: não seria maravilhosa uma sociedade que não dependesse economicamente do consumismo desenfreado? Sim. Mas quais seriam as implicações dessa nova sociedade?

1- Isso implicaria em você abrir mão de 80% das suas coisas. Topa? Não, não topa.

2- Implicaria em menos gente empenhada em criar. Não haveria motivo para tanta criatividade se não fosse para enriquecer vendendo-a. Para quê ficar criando coisas se não houvesse uma equipe de marketing dedicada a convencer os outros a comprar?  De repente você está condenado a continuar com aquela cadeira de balanço de 40 anos só porque ninguém inventou nenhum modelo mais atraente.

Esse é um exemplo só para começo de conversa. A verdade é que nossas reivindicações sociais mais inflamadas e justas poderiam infernizar nossa vida se fossem realmente aplicadas.  Mais exemplos:

-  Um pequeno erro (no trânsito, por exemplo) cometido sem nenhuma intenção de fazer o mal. Você não poderia mais fugir das penalidades de modo algum, sob nenhum argumento, sob nenhuma "maionese". Todos os seus erros trariam sobre você a justa penalidade.  Amigo coronel, parente político ou compadre delegado - nada disso funcionaria. Nem dinheiro.

- Delícias? Só seriam liberados para a venda os alimentos que comprovadamente não prejudicassem nossa saúde de forma alguma. Agora abra a sua geladeira. Depois me olhe nos olhos e responda se você queria mesmo empresários e governo rígidos no que concerne à alimentação da população. Bem-vindo ao maravilhoso mundo dos naturebas.

-  Pense em você sem a opção de fazer nenhuma outra coisa feia nessa vida; não por caráter ou por amor ao próximo, mas por medo da infalível punição.

- Só teriam permissão para fazer sexo as pessoas com condições físicas, financeiras e psicológicas para arcarem pessoalmente pelos resultados do sexo. Ou seja: sexo irresponsável seria terminantemente proibido. Adolescentes que não têm onde cair mortos transando alegremente às custas dos pais e empurrando o bebê para os outros criarem? Acabou.

- Não valeria mais essa coisa de se arrepender das promessas feitas. Falou tá falado, nem que o mundo se acabe. Se você me prometeu uma coisa hoje, saberei que a promessa perdurará até que você morra, ainda que isso leve mais sessenta anos.

- O prazer do novo pelo simples prazer fútil pelo novo, nunca mais. "Enjoei daquela cortina..."  Ééééé?  Você não serve para os novos tempos.

Uma sociedade justa: 

"- Ah, você quer mesmo mais justiça?" pergunta a horrenda Fada Madrinha. 
"-Eu quero. Nas costas dos outros", respondo eu.

Meu amigo cheio de moral, você se garante se o mundo se tornar absolutamente justo? Tipo toma-lá-dá-cá, sem "mas-mas-mas", sem desculpa e sem perdão? Sim, porque o perdão é um ato injusto. A justiça mesmo é olho por olho, dente por dente. O que passar disso é misericórdia.
Particularmente acho que perdão e clemência tem me quebrado um galhão durante a vida. O problema da misericórdia é que não dá pra ela existir só pra mim. Geralmente achamos que bom mesmo seria "misericórdia para mim e justiça para os outros".   Repito a pergunta: você se garante MESMO em uma sociedade mais justa?

Ah, você quer os dois juntos: justiça e misericórdia? Só na Bíblia, meu amigo, só com Deus. Você é cristão?    Vou te contar: aqui entre os homens, justiça e misericórdia são como óleo e água - não se misturam.

- Na nova sociedade o proibido é proibido e inegociável.  Seja sincero: é isso mesmo que o seu coração pede? Maconhazinha? Porretada. Cola? Mais porretada. Coca Cola? Cem chibatadas. Som no último volume? Condenação. Pequenas transgressões? NEVER. Espalhar boato? Indenização. Pegar emprestado e não devolver? Execração pública. E por aí vai.

Imagine se todas as contravenções e crimes, maiores e menores, fossem realmente e exemplarmente punidos. TODOS. Assim teríamos uma sociedade mais justa, mas... isso não atrapalharia em nada o seu dia-a-dia?

A verdade é que nossa sociedade hipócrita é patologicamente afeiçoada a tudo o que a destrói. Precisamente por isso ela está sendo destruída. São os milhares de pequenas transgressões permitidas que estão envenenando o mundo. Os grandes transgressores são fichinha perto do exército inumerável de transgressores-formiga - do qual VOCÊ faz parte.

Acho que se uma fada madrinha viesse nos perguntar se desejávamos que ela transformasse agorinha nossa sociedade em uma sociedade justa, consciente, solidária e coerente, sabe o que responderíamos?

"Dona Fada, valeu a intenção mas... depois a gente fala sobre isso, tá? Deixe seu telefone que a gente entra em contato."

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