"Escrevo-te esta mensagem desejando que ela te encontre feliz e saudável, juntamente com os teus. "
"E não repares nos erros de português..."
Frequentemente era assim que se iniciavam as cartas: de um jeito formal, empertigado. Nada de gírias . Escrevia-se para o primo como quem escreve para o chefe. E por que não?
Eu adorava escrever cartas, embora as minhas não tivessem as tão famosas "mal traçadas linhas". Quem escreve uma carta tem 60% de garantia de receber uma resposta e aí está uma das delícias de fazê-lo. Se você tivesse sorte a resposta viria em uns 15 dias. Em época de e-mails e WhatsApps, 15 dias parece muito, mas não naqueles idos. O tempo é relativo. Para ser mais precisa: o tempo não existe. Melhor ainda: o tempo é como chifre, é uma coisa que colocam na sua cabeça.
Me ocorreu agora que nesses tempos emocionalmente chochos deveríamos "brincar de voltar ao passado". Que bela surpresa a sua amiga teria ao receber uma carta sua! Que iniciativa simpática! Redigir uma carta hoje é quase como tecer uma peça de crochê.
Faça crochê!
Sim, eu sei que existem e-mails, WhatsApp e outras frias modernidades que tornam tudo muito mais rápido e sem graça. Ignore. Siga em frente na sua decisão de ser "original". Escrever carta é escrever história! Porque geralmente elas são guardadas como relíquias. Olha que chique! Muito da história que conhecemos revelou-se através de cartas. Diários também, mas hoje é dia de falar das cartas.
Boa parte da história do Brasil e do mundo foi resgatada através da doce indiscrição de revirar cartas alheias. Amareladas e misteriosas elas nos revelaram coisas incríveis! Eram objetos pessoais cheios de desabafos íntimos, mas com o passar das décadas (e séculos!) tornaram-se documentos, verdadeiras relíquias; provas de crimes e conspirações, amores e ódios. As melhores cartas eram as desesperadas, na minha opinião.
Nas cartas mostrávamos não apenas nosso interesse mas, muito mais que isso, mostrávamos nossa cultura, personalidade e bom gosto. Em uma carta a sua letra é a SUA letra! É como uma impressão digital. Você está lá. Parte de você vai junto, no envelope. Cada carta é única. Por isso quem escreve preza muito a boa letra, o acerto, a cultura enfim. Porque ninguém quer revelar a própria ignorância assim, tão flagrantemente, em meio a garranchos, frases mal ajambradas, parágrafos desconexos e perguntas sem interrogação.
A desnecessidade de escrever cartas é um dos fatores que nos jogou no abismo do relaxamento cultural em que nos vemos hoje.
Sua letra e modo de se expressar denunciavam sua agudeza de espírito, seu estado de saúde, sua pressa, calma e mais outros dados sutis só notados por espíritos igualmente refinados.
O papel escolhido também falava por si só. Uma folha qualquer em branco jamais se igualaria àquele papel fino e pautado. Nesse caso você demonstraria ser alguém mais organizado, sensível e atencioso. Vaidoso talvez. A escrita da caneta também poderia denunciar capricho ou estado de pobreza lamentável. Tinta vermelha, e ainda falhando? Era o fundo do poço. Já aquele azul profundo e uniforme deslizando no papel como uma virgem sonhadora na pista de gêlo ... Que finura!
Você poderia também colar decalques e diversas figurinhas no papel. Dependendo da idade e do tipo de figura isso indicaria leveza e bom humor ... ou um espírito meio retardado.
Por tudo isso e um pouco mais eu gostava tanto de escrever e receber cartas. Porque você só escreve a quem dá muita importância e só recebe de volta se tem importância para alguém. Há todo um jogo de distinção nisso.
Dificilmente uma carta passa de três páginas. Mais que isso é prova de grande intimidade porque nenhum assunto formal rende tanto. Já a carta de uma folha só poderia ser indicativo de que a pessoa só queria "fazer o social": desincumbir-se logo da tarefa de responder para não dar espaço a cobranças.
Isso tudo acabou? Não necessariamente. Posso hoje mesmo iniciar um movimento encorajando as pessoas a escreverem de novo umas para as outras. Não da maneira relaxada como no WhatsApp, com textos cheios de "ata", "tdbm?" e "qq rola?" mas com aquele desvelo de quem tece, para o futuro, os documentos que virão a ser "do passado". Fazendo história, enfim.
Vamos lá?
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