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23 de mar. de 2021

O crochê das cartas *




"Escrevo-te essas mal traçadas linhas..."
"Escrevo-te esta mensagem desejando que ela te encontre feliz e saudável,  juntamente com os teus. "
"E não repares nos erros de português..."

Frequentemente era assim que se iniciavam as cartas: de um jeito formal, empertigado.   Nada de gírias . Escrevia-se para o primo como quem escreve para o chefe. E por que não?  Meu primo merece menos deferências? 

Eu adorava escrever cartas, embora as minhas não tivessem as tão famosas "mal traçadas linhas".  Quem escreve uma carta tem 60% de garantia de receber uma resposta e aí está uma das delícias de fazê-lo. Se você tivesse sorte a resposta viria em uns 15 dias.  Em época de e-mails e WhatsApps 15 dias parece muito, mas não naqueles idos. O tempo é relativo. Para ser mais precisa: o tempo não existe. Melhor ainda:  o tempo é como chifre, é uma coisa que colocam na sua cabeça.

Me ocorreu agora que nesses tempos emocionalmente chochos deveríamos "brincar de voltar ao passado".   Que bela surpresa a sua amiga teria ao receber uma carta sua! Que iniciativa simpática! Redigir uma carta hoje é quase como tecer uma peça de crochê. 

Faça crochê!

Sim, eu sei que existem e-mails, WhatsApp e outras frias modernidades que tornam tudo muito mais rápido e sem graça.  Ignore. Siga em frente na sua decisão de ser "original". Escrever carta é escrever história! Porque geralmente elas são guardadas como relíquias. Olha que chique! Muito da história que  conhecemos revelou-se através de cartas. Diários também, mas hoje é dia de falar das cartas.

Boa parte da história do Brasil e do mundo foi resgatada através da doce indiscrição de revirar cartas alheias.   Amareladas e misteriosas elas nos revelaram coisas incríveis!  Eram objetos pessoais cheios de desabafos íntimos, mas com o passar das décadas (e séculos!) tornaram-se documentos, verdadeiras relíquias; provas de crimes e conspirações,  amores e ódios. As melhores cartas eram as desesperadas, na minha opinião.

Nas cartas mostrávamos não apenas nosso interesse mas, muito mais que isso, mostrávamos nossa cultura, personalidade e bom gosto.   Em uma carta a sua letra é a SUA letra!  É como uma impressão digital. Você está lá. Parte de você vai junto, no envelope. Cada carta é única.  Por isso quem escreve preza muito a boa letra, o acerto, a cultura enfim.  Porque ninguém quer revelar a própria ignorância assim, tão flagrantemente,  em meio a garranchos, frases mal ajambradas, parágrafos desconexos e perguntas sem interrogação.   

A desnecessidade de escrever cartas é um dos fatores que nos jogou no abismo do relaxamento cultural em que nos vemos hoje. 

Sua letra  e modo de se expressar denunciavam sua agudeza de espírito, seu estado de saúde,  sua pressa, calma e mais outros dados sutis só notados por espíritos igualmente refinados.

O papel escolhido também falava por si  só.  Uma folha qualquer em branco jamais se igualaria àquele  papel fino e pautado. Nesse caso você demonstraria ser alguém mais organizado, sensível e atencioso. Vaidoso talvez.   A escrita da caneta também poderia denunciar  capricho ou estado de pobreza lamentável.  Tinta vermelha, e ainda falhando? Era o fundo do poço.  Já aquele azul profundo e uniforme deslizando no papel como uma virgem sonhadora na pista de gêlo ...  Que finura!   

Você poderia também colar decalques e diversas figurinhas no papel.  Dependendo da idade e do tipo de figura isso indicaria leveza e bom humor ... ou um espírito meio retardado. 

Por tudo isso e um pouco mais eu gostava tanto de escrever e receber cartas novamente. Porque você só escreve a quem dá muita importância e só recebe de volta se tem importância para alguém.   Há todo um jogo de  distinção nisso. 

Dificilmente uma carta passa de três páginas. Mais que isso é prova de grande intimidade porque nenhum assunto formal rende tanto.  Já a carta de uma folha só poderia ser indicativo de que a pessoa só queria "fazer o social":  desincumbir-se logo da tarefa de responder para não da espaço a cobranças. 

Isso tudo acabou?  Não necessariamente.   Posso hoje mesmo iniciar um movimento encorajando as pessoas a escreverem de novo umas para as outras. Não da maneira relaxada como no WhatsApp, com textos cheios de "ata", "tdbm?" e "qq rola?" mas com aquele desvelo de quem tece, para o futuro, os documentos do passado. Fazendo história, enfim.

Vamos lá?  


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