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23 de mar. de 2021
O crochê das cartas *
22 de mar. de 2021
A moça dos pés falantes *

A MOÇA DOS PÉS FALANTES
Missa de formatura de filho de amigos. Lá estava eu na belíssima Basílica de Nazaré. O lugar é lindo e solene e eu coloquei a roupa mais linda e solene que meu dinheiro conseguiu comprar.
Em um momento de cumprimentos mútuos, antes de iniciar a cerimônia, deixei meu lugar e me dirigi ao final do templo para andar um pouco e me resguardar da balbúrdia daquela multidão inquieta.
Eu observava tudo “de rabo de olho”. Nos últimos bancos o que a gente menos vê é missa. Entre santos e pecadores notei, a uns quatro metros, um par de pernas morenas, cruzadas e imóveis. Era uma moça e era pobre.
Eu estava entediada com a missa que não começava. Minha mente, inquieta e criativa queria ter em quê pensar. Como um gato na coleira, minha imaginação começou a miar exigindo o direito de vagar entre os bancos e saber de tudo. “Meu gato” se soltou sozinho. Aí então comecei a romancear.
Aquela moça só pode ter sido levada por um forte impulso de amor pois não tinha roupa adequada para estar ali. Atribuí a ela, então, um enorme coração e um rosto puro e sereno (que eu não conseguia ver de onde estava). Continuei: atrás de si ela deveria trazer toda uma história de ternuras e sacrifícios pela família. O formando deveria ser um irmão mais novo. Ou primo que ela criou. Talvez não, por causa da idade. Quem sabe um irmão mais velho outrora perdido mas que venceu a bebida e conseguiu diploma. Ou um namorado pobre e sofrido? Não havia dúvidas de que para ela aquele momento era muito significativo, mais do que para todos os outros.
Pois ali estava ela, com a renúncia da sua vaidade. Destoava do grupo com suas roupas simples e visivelmente baratas. Nas unhas, esmalte de quinze dias. Os cabelos depois notei: não receberam cuidado especial. Foram lavados e secados ao vento como qualquer coisa selvagem da Amazônia. Assim era porque assim imaginei. Mas mais do que os supostos cabelos, seus pés falavam. E muito. Contaram-me do orgulho da formatura, do sonho realizado e da exigência do seu coração amante, que a fez arrastar-se até ali naquele estado simplérrimo. As sandálias eram empoeiradas e gastas. Chegou de ônibus, claro, com seus pés jovens e desidratados. Eram desertos morenos que falavam de distâncias. Pousavam na igreja como passarinhos na caverna, de olhos arregalados. Quem inspirava aquela moça a estar ali, sozinha, e tão desvestida de solenidade? Seus pés queriam explicar por que tinham todo o direito de estar ali, sem sandália dourada, em um desafio altivo a todos os trajes sociais.
Ela estava ali por alguém.
Começara a cerimônia. Entre um “amém” e um “glória a vós, Senhor” deduzi que sua coragem de deixar-se ver tão despojada viria do fato de ser bonita. Porque uma mulher jovem e bonita tem perdão para quase tudo nessa vida e toda mulher já nasce sabendo disso. Imaginei então um rosto moreno de pele lisa e levemente suada, olhos grandes e meio tristes, mas de cílios espessos. Boca fina e sem batom. Cintura fina, quadris imponentes. Uma flor d’água. A heroína do meu micro romance não poderia ser menos que isso. Resolvi então conferir.
Quando finalmente vi seu rosto acabaram-se as divagações. Não era bonita. A seu favor só havia a juventude e a altura. Mas meu romance não estava perdido. Era uma cabocla comum - mas amava! E isso a tornava especial. Retomei a história.
A moça dos pés falantes chorava sem parar. Que meiga! E mais: chorava sem contrair o rosto! Essa é uma arte que jamais consegui dominar: chorar sem fazer careta.
Antes
de mirá-la descaradamente só pude notar que chorava por causa do movimento
das mãos, que levou ao rosto várias vezes para tirar da rota
algumas lágrimas ligeiras. Ela o fazia com calma, sem preocupação
nenhuma de
esconder a emoção.
Ela
era alta mas nesse momento me pareceu mais alta ainda. Virou uma
palmeira.
Não era a única pessoa comovida.
Mas só ela saiu de casa com roupas de pobre, pegou ônibus com
sandálias surradas e entrou na Basílica de Nazaré de cabeça erguida.
Aquele
momento era tudo pra ela.
Decididamente ela era a heroína de
uma linda história de amor. Construí essa história e acredito nela. De coração.
11 de mar. de 2021
Hoje é o último dia da minha vida *
Essa noite sonhei que fui condenada à morte, então resolvia escrever minhas últimas palavras. As pessoas que eu mais amava iriam ler minhas declarações, inclusive minha mãe (que no sonho ainda não havia morrido). Isso aumentava muito a importância e a responsabilidade do que eu iria dizer.
A primeira frase já estava decidida. Seria "Hoje é o último dia da minha vida". Ponto. Daí eu começaria a desenvolver o resto.
Comecei a escrever mas logo joguei tudo fora porque o papel não era adequado. Depois recomecei porque eu estava em uma posição desconfortável e a letra estava saindo horrível. Depois joguei tudo fora de novo e recomecei porque a caneta estava falhando e acabou a tinta. E por várias vezes tentei escrever mas não passava da primeira folha. Eu queria algo marcante, sensível, poético, algo que resumisse minha vida e meus sentimentos e onde pudesse dizer tudo o que sinto por cada pessoa que amo. E também tinha que dar tempo de pedir desculpas e explicar certas coisas. Bem, isso tudo daria um livro mas eu só tinha um dia para escrever! "Amanhã" eu seria executada. Não daria tempo de fazer nada perfeito, nada com valor literário. Por fim, então, tomei a decisão correta: simplesmente escrever o que me viesse à mente sem me preocupar com nada mais. E se não desse tempo de terminar, paciência. Anne Frank também não "terminou seu diário" e mesmo assim ele se tornou um best seller. Não, nem Anne Frank eu queria ser. Queria apenas abrir o coração para o mundo e mostrar que existi.
Recomecei, por fim. Resoluta. Passei a registrar vários momentos da minha vida. Eu pulava de uma lembrança para outra, recomeçava, comentava sentimentos, mencionava pessoas. Não me importava mais com a ordem das coisas. Quem precisa de "ordem das coisas" no último dia da sua vida? Os pensamentos iam e vinham, tudo fluía imperfeitamente com deveria ser.
Em determinado momento eu não sabia mais se ainda estava acordada mesmo ou não. Porque eu continuava pensando, lembrando e selecionando com a minha mente tudo que deveria ser registrado. Em algum momento o sonho acabou mas eu continuava na cama com os mesmos pensamentos de escritora, de olhos fechados, redigindo mentalmente minhas memórias e declarações. Meio acordada, decidi que iria escrever tudo aquilo de verdade, em um caderno ou blog. Queria me lembrar de tudo, então eu entrava e saía do sonho sem saber se meus pensamentos eram uma continuação dele ou se eu ainda "estava lá".
A partir de algum momento indefinido acordei e fiquei pensando no significado daquele sonho. Ele não é a história de todos nós?Acho que é por isso que Deus não nos deixa voltar ao passado para remendar as coisas. Não é por maldade. Ele apenas sabe que não adiantaria. Ao retornar eu corrigiria erros antigos mas cometeria erros novos.
Siga em frente, Cristina. Apenas olhe para a frente e viva! Não vale a pena revisar infinitamente seus atos. O "livro da sua vida" não será perfeito. Não vai haver tempo de dizer tudo, justificar tudo nem consertar tudo.
Viver é escrever. Apenas "escreva" e quando o tempo acabar, acabou. Não se preocupe com o "carcereiro". Ele sabe a hora. Concentre-se no que você ainda tem de vida - e você tem pouco tempo! Abandone a pretensão boba de produzir uma obra prima. Apenas faça o seu melhor e deixe mensagens de amor. É o suficiente.
Estou começando a achar que esse sonho foi uma orientação do além.
10 de mar. de 2021
Maria *
Sou uma pessoa de sorte. A maior parte dos meus sonhos se realizaram. Houve frustrações homéricas, é bem verdade, mas não importa. Sou uma pessoa de sorte.
Todo mundo tem, ou teve, um sonho secreto que nunca aconteceu nem vai acontecer. Sério. Não vai. Sejamos realistas. Vou confessar um dos meus sonhos que, de tão bobinho e antigo, deveria ser esquecido. Mas como todos sabemos, sonhos entalados não morrem.
Era uma bobagem... mas era a MINHA bobagem romântica! Há algo de sagrado nisso.
Meu sonho era casar igual Maria no filme A Noviça Rebelde. Pronto, agora todo mundo já sabe.
Entrar na igreja como ela, oprimida por tanta felicidade, compenetradíssima ao som do "Processional and Maria" (https://open.spotify.com/track/13aKlygoQB1yeU4MEpW8in?si=Sa51jBRFTnCdBrR1Z-R69g).
Nossas bobagens preciosas não são para serem jogadas fora. Elas nos traduzem, denunciam nosso verdadeiro "eu". São nossos hieróglifos. Não se joga fora uma coisa assim.
E lá ia Maria, reluzente em sua simplicidade e despretensão de ser bonita. Resoluta deslizando pela igreja, soprada por aquele órgão imponente. Sozinha, sem pai nem mãe, deixando tudo para trás. Gloriosa e humilde. Maria.
Casei duas vezes mas em nenhuma delas essa música tocou. Por quê? Porque eu não disse a ninguém que queria. Por ser um sonho sagrado demais eu o guardei em meu compartimento secreto. Não poderia correr o risco de ouvir um "não". Ouvir um "Ah, não vai dar!" ia acabar comigo. Quem iria entender em plenitude o que aquilo significava para mim ? Melhor não arriscar.
O fato é que sempre fiz isso comigo mesma. Quando o desejo é muito intenso, não falo. Quando muito, insinuo. Porque se não acontece e a culpa é minha, eu me viro com meus fracassos. Mas se a culpa é do outro, temo que a mágoa seja eterna.
Bobagem. A mágoa foi eterna do mesmo jeito. Por que não tentei? Eu poderia ter casado ao som do Processional da Maria, ora!
Christopher Plummer *
Confissão:
(Christopher Plummer morreu aos 91 anos, em fevereiro de 2021)
9 de mar. de 2021
A Terra não é redonda
O "lindo balão azul" não passa de um maracujá pisado. Aquela redondice graciosa não existe. A Terra foi pega em flagrante, "fotografada" de cara remelenta e antes de escovar os dentes. A verdade é isso aí que vocês estão vendo na foto: uma enorme batata murcha.
Saudade da minha ilusão de um planeta azul redondinho, matizado de branco, rodopiando feliz pelo universo sob olhares invejosos de planetas esburacados. Naquela serena imensidão eu via florestas, pássaros, peixes curiosos, montanhas geladas, crianças com laçarotes, bolo de fubá... Agora estamos todos com chinelas de dedo e desdentados.