Acabei de assistir alguns vídeos de "músicas mais tocadas" lá por volta dos anos 60. Duas coisas me chamaram a atenção: a qualidade insuperável das músicas e a má qualidade dos vídeos. Fora a dor no coração por uma época que não vivi e que se foi sem me dar satisfação, ficou aqui a frustração de querer ter mais nitidez nos vídeos. Eu queria ver mais, olhar melhor, beber daquilo. Eu queria o impossível: pegar carona em um trem que não era o meu.
Os vídeos antigos são como o próprio passado. São fugidios, borrados. Não é assim? Não há nitidez no passado. É certo que alguns olhares marcam mas nada muito além disso. Em outra cena um sorriso, um meneio, um vestido branco com bordados indiscerníveis. Está tudo lá, na memória. Está e não está. É como se nos faltassem os óculos. O cantor sorridente, de pele límpida e dentes brilhantes, o que tem ao seu redor? Vultos que riem sem boca, olham sem olhos, usam anéis mas não tem dedos. Eles não querem ser lembrados. Pertencem a outras memórias. A princípio tentamos completar as imagens falhas com rostos e gestos imaginários mas é inútil. Deixaria de ser memória para se tornar fantasia. Não queremos fantasia!
O que interessa da memória é o que dela temos. O que sobrou é o que nos pertence. É pouco, eu sei, mas é assim. Tudo não passa de acenos de um barco que já se foi.
O passado está salvo da nossa interferência. Ele descansa em paz, resolvido.
Não faz sentido reclamarmos da má qualidade daqueles vídeos. Eles são tal qual as lembranças que evocam. É da própria natureza da coisa. Borrões são o toque de mistério e melancolia necessários à saudade, à dor, á curiosidade. O que não vemos é justamente o que nos impede de ir para lá. Borrões são a sinalização: "Acesso negado. Você só pode vir até aqui". Somos colocados no nosso devido lugar. Nosso lugar é aqui e agora e a ninguém é dado o direito de pular o muro.
Não reclame. Não é assim que nos lembramos da nossa mãe, dos colegas, dos primeiros livros, das festas de São João, do primeiro beijo? Não é assim? Havia flores? Você não lembra. Como eram as cortinas? Quem eram os figurantes? Como era a voz do seu pai? Quantas almofadas havia no sofá?
A realidade tem detalhes demais. Cada grão de areia, cada dobra no lençol ou formiga caminhante precisam estar muito claros e visíveis, se não não é presente. Tudo tem que poder ser descrito em minúcias. Não existe presente sem micro detalhes e é a ausência deles que nos impede de pisar no passado. E é assim que ele foge de nós.
Só nos restam os borrões. São tudo o que temos.