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21 de mai. de 2025

"Botton"

Agora entendo os velhos. As pessoas criticam dizendo que precisamos de novos sonhos,  novos planos e alvos. É esse o conselho: fazer de conta que a vida não está se esvaindo e que ainda temos muita coisa pela frente. 

Creio que sempre fui - no passado - uma pessoa cheia de vida. Era algo bem real, que exalava. Era isso, não propriamente beleza, que me tornava uma pessoa interessante.  Então eu concordava com quem aconselhava os velhos a se animarem. O que eles não sabiam, e  agora sei, é que se animar cansa e nem sempre dá frutos. É um fenômeno interior  empapado de expectativas e a maioria das expectativas são pneus furados: não vão muito longe. 

Os velhos não querem mais vibrar nada, querem apenas que não lhes encham o saco.

Até uns 15 anos atrás eu ainda cultivava a ideia de que uns fatos animados poderiam me sobrevir.  Coisas poderiam acontecer. Eu então poderia plantar coisas para coisas acontecerem.   Com esse pouco de matéria-prima eu ainda consegui ir levando por mais um tempo. Toda expectativa alegre joga uma baforada de juventude na cara da gente. De fato algumas coisas legais aconteceram. Só não me disseram que elas eram "a rapa do tacho". 

O tempo está escoando como areia em uma ampulheta arrombada. Não dá mais tempo de nada e como eu não quero mais nada mesmo, está tudo bem. O trem já está em movimento. É seguir viagem com o que  tenho em mãos e seja o que Deus quiser.

Não acho que esse texto seja triste. Não estou triste por isso mas pelos grupos animados de amigos, que viraram pó. Não os amigos que viraram, pó mas os grupos. Entenda. 


Ah, os amigos...  Flutuávamos por perto uns dos outros como um sorridente sistema solar.  Parecia haver uma lei da gravidade que nos mantinha assim.  Ninguém nunca ia longe demais, ninguém nunca ia para sempre. Depois de uma temporada circundando o sol o retorno era garantido.  

Bem, não somos astros e não há nenhuma gravidade que nos grude para sempre uns aos outros. Nosso sisteminha solar - coitado - é frágil como um ajuntamento de bolhas de sabão.  Um simples sopro e vai cada um para um lado.   

Depois de uma temporada visitando o sol alguns corpos celestes simplesmente não voltam mais.  São capturados, talvez, e vão integrar outras orbitas - tchau e bênção.   

Eis que os amigos evaporam como gelo no asfalto. De fato amizade não é para sempre.  É bonito dizer que é, mas não é. Culpa de ninguém. Gelo no asfalto.  

Aí vem o lance da solidão. Mas calma, ela não chega cedo. Ela demora e se anuncia com muita antecedência. A solidão é aquela hóspede que nem chegou, mas já começou a incomodar. Começa desde quando você percebe que, aos poucos, os seus amigos vão abandonando a ciranda, um a um. "Vou ali fazer xixi e já volto" - mas não volta. É aí que você começa a entender o que vai acontecer.   Sim, ela demora a chegar, mas já te chateia bem antes.

Então saiba que essa cobrança otimista de "olhe para o futuro" não cola mais. Tudo agora se resume a uma despedida arrastada.   É o momento em que a vida se assemelha a uma "dança de rato", que dá voltas e mais voltas pra no fim acabar indo mesmo para o brejo. 

No momento está caindo uma chuva espalhafatosa lá fora. Lembro do tempo em que eu adorava pular na chuva. É uma das sensações mais maravilhosas do mundo! Não entendo por quê cargas d'água a gente para de pular na chuva!

Bem, ainda olhando para trás eu posso já afirmar que tive uma vida muito boa. Agradeço aos envolvidos.   Milhares de coisas lindas aconteceram. Tudo bem, várias outras, ruins, também aconteceram  mas elas fizeram o favor de "desacontecer", então fiquei no lucro.  Posso classificar minha passagem no planeta como BEM SUCEDIDA.  


Quanto ao mais, o melhor da pior idade é poder dizer o seguinte em relação a todos os convites e a todas as sugestões:  não sou obrigada

Vou criar um "botton" com isso.

9 de mai. de 2025

Borrões

 


 

Acabei de assistir alguns vídeos de "músicas mais tocadas"  lá por volta dos anos 60. Duas coisas me chamaram a atenção: a qualidade insuperável das músicas e  a má qualidade dos vídeos.  Fora a dor no coração por uma época que não vivi e que se foi sem me dar satisfação, ficou aqui a frustração de querer ter mais nitidez nos vídeos. Eu queria ver mais, olhar melhor, beber daquilo. Eu queria o impossível: pegar carona em um trem que não era o meu. 

Os vídeos antigos são como o próprio passado. São fugidios, borrados. Não é assim?  Não há nitidez no passado. É certo que alguns olhares marcam mas nada muito além disso. Em outra cena um sorriso, um meneio, um vestido branco com bordados indiscerníveis. Está tudo lá, na memória. Está e não está.  É como se nos faltassem os óculos. O cantor sorridente, de pele límpida e dentes brilhantes, o que tem ao seu redor?  Vultos que riem sem boca, olham sem olhos, usam anéis mas não tem dedos.  Eles não querem ser lembrados. Pertencem a outras memórias. A princípio tentamos completar as imagens falhas com rostos e gestos imaginários mas é inútil.  Deixaria de ser memória para se tornar fantasia. Não queremos fantasia!

O que interessa da memória é o que dela temos. O que sobrou é o que nos pertence. É pouco, eu sei, mas é assim. Tudo não passa de acenos de um barco que já se foi.    

O passado está salvo da nossa interferência. Ele descansa em paz, resolvido.    

Não faz sentido reclamarmos da má qualidade daqueles vídeos. Eles são tal qual as lembranças que evocam. É da própria natureza da coisa. Borrões são o toque de mistério e melancolia necessários à saudade, à dor, á curiosidade.  O que não vemos é justamente o que nos impede de ir para lá.  Borrões são a sinalização:  "Acesso negado. Você só pode vir até aqui".   Somos colocados no nosso devido lugar.  Nosso lugar é aqui e agora e a ninguém é dado o direito de pular o muro. 

Não reclame. Não é assim que nos lembramos da nossa mãe, dos colegas, dos primeiros livros, das festas de São João, do primeiro beijo? Não é assim? Havia flores? Você não lembra.  Como eram as cortinas?  Quem eram os figurantes?  Como era a voz do seu pai? Quantas almofadas havia no sofá? 

A realidade tem detalhes demais. Cada grão de areia, cada dobra no lençol ou formiga caminhante precisam estar muito claros e visíveis, se não não é presente. Tudo tem que poder ser descrito em minúcias. Não existe presente sem micro detalhes e é a ausência deles que nos impede de pisar no passado.  E é assim que ele foge de nós.

Só nos restam os borrões. São tudo o que temos.

REALIDADES BRASILEIRAS