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23 de jun. de 2007

Olha só!

Gente, que coisinha linda!
"Te toisina ninda!"

Você já pegou um pezinho assim? Já cheirou? Já beijou e lambeu?

Os dedos são bolinhas pequenas de carne. O solado é liso liso. Uma delícia de passar no rosto.

Ai que saudade dos meus bebezinhos!!!!

Junho de 83

Não pensei que aquela sensação fosse possível. Não se limitavam a meras lembranças não. Foram sentimentos intensos, como se de fato eu tivesse retrocedido anos.

Na verdade jamais cheguei a desejar, como outras pessoas, ser novamente criança. Essa vontade nunca tive por diversas razões. Só que quando entrei naquela sala tudo me emocionou.

Lá não havia nada que pudesse ser considerado bonito: era uma sala de madeira com a pintura gasta. O chão igualmente rústico. A mesa da professora era improvisada por outras duas mesinhas menores juntas, cheias de livros. Um ventilador de teto, cadeiras de fórmica azul claro com braço para escrita e o mais interessante: na sala toda um cheiro inexplicável de criança. Exatamente isso.

O cheiro foi o que mais me impressionou e emocionou também. Não me refiro a colônia com cheirinho de bebê. Era muito mais que isso: cheiro de inocência, de gente limpa do pó do tempo, de vida explodindo, de sorriso sincero, de flor abrindo, de dia amanhecendo, capim fresco, pão quentinho, gotinhas de suor na testa macia; cheiro de gente que não partilha da podridão do mundo. Era O Perfume, O Cheiro.

Não sei como essas criaturinhas engraçadas e acesas conseguem deixar rastros tão profundos por onde passam. Foi então que lembrei nitidamente do que fui e não sei como ou quando deixei de ser. Até aquela data eu ainda não havia notado o tempo passar. Estava distraída demais com meus afazeres. Ainda não havia incorporado esse costume de olhar vez por outra no retrovisor da vida.

Naquele dia me assustei. Não com um novo sentimento, mas em perceber o quanto havia mudado a minha maneira de enxergar tudo ao meu redor. Em qual momento fatídico aquele “espírito de criança” caiu fora? Como consegui afugentá-lo? Só sei que por alguns instantes “ele” voltou. Pude sentir! Não precisei fechar os olhos.

Acho que ninguém ali notou o momento mágico em que novamente fui tomada. Pelo que? Fui tomada. Senti de novo aqueles sopros do passado: o esmero em arrumar o material na pasta, a alegria do uniforme novo, a impaciência para que chegasse logo a hora de ir ao colégio, os passos largos de manhãzinha, o prazer de sentir o cheirinho dos livros e cadernos novos recém-encapados. Deu até vontade de chorar. Inesparada viagem!

Outras lembranças doídas também vieram, assim como o vento traz a poeira. Lembrei da insegurança, da timidez, da sensação de não ser aceita. Lembrei de que era desajeitada e feia mas não sofri. Cenas e cenas saltavam em minha mente como se estivessem séculos espremidas no túmulo e de repente agarrassem uma chance única de voltar à vida para serem sentidas novamente. Vi os primeiros sinais da subserviência masculina diante da beleza feminina - as meninas bonitas, os meninos iniciantes... Tudo passageiro, frágil e repetido.

Disso tudo lembrei e senti um grande carinho, de mãe para filha, por aquela menina que fui: sensível, insegura e sonhadora.

Estranhamente tive a impressão de que aquela era a minha sala de aula, aqueles bonecos e letras sorridentes estavam ali para mim. Senti muita vontade de chorar, um nó na garganta, mas ninguém entenderia essa atitude ali, numa reunião de pais e mestres. Emoção estranha, difícil de compartilhar.

Voltei a mim, vim para casa com minha enorme barriga de grávida. Pela primeira vez na vida tive saudade da minha infância.

20 de jun. de 2007

Arraial do Pavulagem


Pensei que meu coração estivesse endurecendo, ressencando. Felizmente ele deu sinal de vida quando ouvi no rádio uma das músicas do Pavulagem. Bateu emoção, bateu coração e o corpo todo entrou no clima.

É lindo o boi, as fitas, os chapéus de palha, o colorido arregalado na Praça da República. Gosto de ver as meninas de saia comprida, rasteirinha e muita graça. Graça de graça. Toda a graça!

Pavulagem só fala de coisa bonita, só evoca alegria e cores, cores, cores!
Pavulagem é irresistível e inofensivo. Apaixona mas não maltrata, só afaga e convida pra dançar.

Pavulagem aceita todo mundo, daí o nome de um dos eventos: Arrastão do Pavulagem. Quem gosta está lá, meio enfeitiçado. Até quem se veste de preto, venera a noite e está casado com a lua. Verdade! Até os bichos da noite escapolem de suas tribos pra se colorir no Pavulagem, na mais irresistível das traições.

Seus músicos não se parecem com estrela. São artistas mas a gente olha e só vê gente do bem e do bem-querer. Todos tem cara de vizinho da gente, amigo de infância, tio da melhor amiga, amigo do melhor irmão, afilhado da mãe, namorado da irmã, professor de violão, fazedor de pipa, primeiro namorado. Todos a gente conhece há um tempão, mesmo que não conheça.

Pavulagem também tem lua mas é mais do sol. Pelo menos para mim é desse jeito. Colorido, quente e irrequieto como criança feliz. Espanta tristeza, pega a gente pela cintura e sapeca um beijo de vida assim, entre um batuque e um acorde, no meio da vida. Pega a gente de jeito.

Sei lá, até parece até que no arraial ninguém tem problema. Parece que ninguém sofre por amor, estão todos felizes e bem resolvidos.

Quer saber? Naquele tum-tum-tum gostoso tá tudo certo mesmo!

Pavulagem é só carinho.
Um beijo pro boizinho!

19 de jun. de 2007

Generalidades 02

Hoje pela manhã, enquanto eu corria placidamente pelo condomíno onde moro, pude avistar uma cena comum, mas nem por isso menos interessante: uma revoada de homens felizes da vida, caminhando, conversando, rindo e curtindo a companhia um do outro. Sem viadagem.

Eles sempre estão por lá. Sempre se encontram e os grupos de dois ou três às vezes se juntam formando um grupão, às vezes se dissolve formando grupinhos. É essa a dinâmica.
Poucos andam sozinhos.

Sabe quantas vezes vi mulheres juntas caminhando onde moro? É a coisa mais rara do mundo. Às vezes vejo duas juntas; seis meses depois pode ser que a cena se repita. Ou não.

Geralmente mulher se junta em programações específicas mas separam-se rapidamente tão logo a tal programação acabe. É vapt-vupt. Já vi esse fenômeno da natureza quando organizaram lá no condomínio um "Spa Holístico" (seja lá o que isso seja). Aí sim: uma galera caminhava rindo e matraqueando. Quando acabou o tal Spa Holístico foi como colocar o dedo em um formigueiro: cada uma foi pro seu lado e nunca mais se encontraram.

Quem gosta de mulher? Acho que só a mãe da mulher (nem sempre) e criança de peito. Fora isso não consigo lembrar de mais ninguém. Ah sim!... ... Pensando bem: "ah, não".

Sempre desconfiei de que homem não suporta mulher. Homem gosta de sexo com mulher, mas não da mulher em si. Pode notar.

Um dia um colega, em conversa descontraída, mencionou sua grande fantasia: "acho mulher o máximo! Adoro mulher! Mas o problema é que falta o botãozinho de desligar. O que eu mais gostaria que existisse era uma linda mulher que a gente guardasse em uma caixa, dentro do armário. Quando estivesse a fim, pegava, ligava, curtia, beijava, amava... Seria o máximo! Depois acabou? Encheu? Lava, desliga, guarda no armário, reservadinha só pra mim. O problema da mulher é que a gente não consegue desliga-la!"

Pô! - disse eu.

Tem razão: ele é um crápula.

Olhe em um bar uma rodinha só de homens: todos felizes bebendo, falando merda e paquerando a mulherada.

Agora olhe uma rodinha só de mulher. Elas olham pra todo o lado, menos umas para as outras. Acabam conversando sobre problemas, zebras no relacionamento ou dieta.

Olhe de novo: uma rodinha cheia de mulher com um "bendito o fruto". O pobre quase não fala, fica murcho e bêbado no seu canto. Se ele estiver muito simpático e falante, pode crer: vai comer ou está comendo alguém do grupo. Homem só se sente bem cercado de fêmeas se existe algum interesse/possibilidade sexual. Fora isso, never!

Faltou falar da rodinha de homens com uma mulher apenas no grupo. Há um brilho indisfarçável nos olhos dela. Se ela for bonita há um brilho indisfarçável nos olhos deles todos. Mas atenção: só se ela for bonita. E se for amiga das esposas dos que estão à mesa, eles querem mais é que ela morra - ou caia fora o mais rápido possível.

Aos que me acusam de crueldade, retruco: cruel é a natureza.

A respeito dos homens: não sei se os homens são cruéis. Depois pensarei mais sobre isso.
Quanto às mulheres... a gente faz o que pode, né?

Cristina Faraon

Generalidades 01

Em Belém do Pará é mais fácil, no mês de junho, encontrar o Papai Noel fazendo ponto na Praça da República do que achar um local vendendo guarda-chuva.

Tá certo que não andei na cidade toda mas já fui ao Shopping Castanheira, ao IT Center, Magazan, Belém Importados e outras lojas "avulsas". Nada.

Alguém precisa avisar aos nossos comerciantes que aqui não chove só nos "meses de chuva". Nos meses de "não chuva" cai MUITA água também. Sei que oficialmente estamos no verão mas ninguém avisou isso a São Pedro.

Fica aqui meu protesto.
Aceito doações.

14 de jun. de 2007

Carolina


Carolina pertencia à estirpe rara das mulheres que amam pra sempre.

Ninguém eterniza um amor no peito por querer. Antes de ser virtude, isso é uma fatalidade. Acho que Carolina nem tentou se livrar do inquilino de seu peito. Nunca notei que estivesse incomodada com a dor. Ou sua esperança era invencível ou não tinha noção de muita coisa nessa vida. Não sabia nada sobre juventude, velhice, morte, passar do tempo, novo amor, prazer, aventura, filhos, oportunidade. Nenhuma dessas idéias mudou o rumo de sua vida.

Acho que o que Carolina não possuída era mesmo noção de tempo.

Minha curiosidade levou-me a ouvir as várias histórias que contavam a seu respeito. Todos acreditavam saber quem foi o rapaz que a conquistou tão irremediavelmente e depois sumiu no mundo.

Mencionaram o filho do Dr. Durval - rapaz claro, muito bonito mas franzino e sem vontade própria. Sem cabimento. Também ouvi algo a respeito de seu primo, o qual foi recebido certa vez pela família e passou o período de um ano a se curar de mal do pulmão. Eram como irmãos, dizem. Uma vez curado foi-se embora deixando-a doente de amor. Talvez, talvez. Ouvi até dizer que foi um homem casado, militar, que teria conseguido bem mais que olhares lânguidos da doce Carolina. Falaram também em um padre, um caixeiro viajante... Ninguém sabe ao certo e ela mesma jamais se deu ao trabalho de explicar. Não falava sobre seu amor. Apenas as pessoas o liam em seus olhos, seus gestos calmos e seu quase-sorriso.

Há quem diga que jamais deixou de ser virgem.

Carolina era uma morena clara de jeito cândido. Não falava muito e nunca parecia estar apressada. A expressão de seu rosto era a de uma pessoa que guardava sempre um segredo. Com a convivência essa impressão desvanecia, principalmente porque seu dia-a-dia pacato não deixava margem para fantasiarmos mistérios.

Só lembro do dia em que a conheci, mas não lembro bem de como me aproximei e nos tornamos inseparáveis. Quanto ao meu amor, origem e fim, ainda hoje desconheço.

Não sei muito do passado de Carolina, mas sei de sua alma, seus gestos calmos, do ritmo de seu coração. Éramos amigos e eu a amava. Seu coração, um mistério. Mas ela me sorria, deixava-se amar e isso bastava.

Seus cabelos eram encaracolados castanho escuros com umas mexas douradas que mais claras ficavam sob o sol. Os olhos eram de puro de mel com cílios enormes e densos. Quem a observasse ficaria preso aos seus olhos, sem dúvida. A muito custo escorregaria o olhar para o nariz e boca, os seios pequenos, os quadris de menina.

Não era volúpia, mas uma flor. Não vulcão, mas lampejos alaranjados de sol de fim de tarde, sol morrente, primeiros ventos noturnos.

Fiz de tudo: flores e favores. Promessas mil. Dei-lhe versos, músicas e meu silêncio. Com esse último a cativei. Mas nada a fazia esquecer o que houve. Nada a fazia falar. Carolina - dócil e distante, presente e inalcançável, que no entanto deixava-se abraçar.

Todas as músicas do mundo e todas as flores estavam no cheiro de seus cabelos quando ela recostava a cabeça em meu peito. Eu era capaz de ficar horas, toda uma vida deixando esse cheiro passear dentro de mim e me acariciar por dentro. Nesses momentos todas as palavras se tornavam sacrílegas. Eu era capaz de traze-la nos braços para sempre, suportar seu mistério e olhar perdido apenas para tê-la assim, com a cabeça recostada e sem ouvir meu coração.

Não fomos a mil festas, não dançamos mil quadrilhas nem pulamos mil fogueiras na época de São João. Jamais ela foi Colombina ou bruxinha de Halowen. Seu mundo era o dos sons distantes e das luzes tremeluzindo. Nada que fosse frenético a encantava, pelo contrário.

Contei sozinho as estrelas. Localizei solitário constelações escondidas naquela areia de astros do céu do interior. Cantei e contei histórias não para ela, mas para acalmar meu coração, para dar vazão a esse vulcão de mel dentro de mim - vulcão por ela inaugurado e mantido. Ela nada pedia. O som de minha voz a acalentava independentemente do que eu dissesse. Isso lhe bastava e passou a me bastar também.

A vida passou na janela. Eu vi. Eu estava ao lado de Carolina por todo esse tempo. Ela fechou a janela. Permaneci ao seu lado, ao lado de seu coração mas fora dele.

O tempo também passou, mas ela não reparou. A janela já estava fechada. Eu ouvia sons e tentava despertar sua curiosidade para a vida. Não me parecia que tanto frescor pudesse conter-se por muito mais tempo naquele corpo querido. Mas coube. Depois esvaiu-se para sempre.

Carolina viveu um eterno presente, o que a impediu de sentir seu próprio envelhecimento. Sua alma, sua dor, tudo ficou preso naquele dia sem fim. Falei em amor, falei em luar, em flores. Evoquei todos os lugares-comuns da paixão. Falhei. Deveria também ter-lhe falado no tempo, que só sabe ir.

Em algum lugar ela está agora, ainda presente, como um lindo lago, profundo como a dor do amor. Morri nesse lago. Morri longamente naquele presente eterno de Carolina. Ainda assim não lembro de jamais ter sido tão feliz.

Cristina Faraon

4 de jun. de 2007

Vazio




As lojas estão vazias
E as vitrines tristes, tristes.
Cartazes velhos, lâmpadas queimadas
Liquidações envelhecidas
E manequins pálidos
Com braços
Estranhamente retorcidos


Sentem dor, parece-me.

Lojas cavernosas
Vendedoras deserdadas
Da juventude e dos amores
Nada há. Tudo foi.
Mas eu ainda procuro.

Nem um pedaço de você
Nas lojas!
Nem um fio de seu cabelo,
Um toque ou um suspiro.
Nenhuma jóia que lhe substitua
Nenhum lançamento que compense
Esse universo esvaziado
O nó da vida
Preciso de um lindo presente
Mas o verbo de hoje é ontem

E ainda procuro
E procuro
E ando tanto
Nos labirintos escorregadios
Do shopping

No lanche frio
Procurei você

Procurei seus restos e sobras
Seus sinais de amor
Voltei a revirar cada vitrine
Nem assim lhe encontrei.

Cristina Faraon

1 de jun. de 2007

Velhinha porreta *


Tenho planos quentes para quando ficar velhinha.

Mal posso esperar para finalmente usar uma saia verde com blusa amarela de florinhas vermelhas. E poder dormir durante as cerimônias chatas sem um fiapo de pudor.

Decidi também que não vou mais carregar peso. Quero ser uma velhinha muito bem tratada e vou cobrar da juventude que pelo menos carreguem meus pacotes. Não que os homens não sejam gentis hoje mas é que já notei que isso depende um bocado do tamanho dos decotes . Acontece que no futuro vou abolir os decotes - para o bem de todos. Sem decotes, o jeito é cobrar mesmo.

Quando eu for uma velhinha tudo vai ser diferente! Homens e mulheres estarão a meu dispor. Abrirão portas, carregarão pacotes, oferecerão assento, buscarão água e ainda vão me abanar quando eu fingir que estiver passando mal. A humanidade será meu séquito E ai daquele que rir do meu chapéu "grená"!

Adeus, manicura! Pra que isso? Só vou ao salão quando quiser colar estrelinhas nas unhas ou pintar os cabelos de azul.   Sim, porque tem tudo a ver assistir DVD com cabelos azuis e unhas estreladas.

Vou esfregar minha liberdade na cara do mundo.

Barriguinha? Sim, e daí? Não vou posar pra revista masculina e até lá já enjoei de homem. 

Ah, os homens! Vou rir da cara de babão que eles fazem olhando para as mocinhas. Vou tirar foto e postar no Face. E vou rir e fotografar também das garotas querendo parecer sexy para os homens babões.

E nunca mais, mas nunca mais mesmo, vou me apaixonar. Xô, babaquice! Pode anotar aí no caderninho. Ficar querendo, lembrando, imaginando, suspirando, procurando um pretexto para telefonar? Tá me estranhando?

Vai ser legal sair de manhã para andar na praça, contar história para as crianças, comprar flores, conversar com as outras velhinhas, encomendar peças de crochê para presentear as noras, olhar de camarote a moda fazendo todo mundo de palhaço e rir dos “últimos lançamentos” que usei até enjoar quando era nova. 

Estarão inapelavelmente abolidos: os saltos altos, o bicos finos, sutiãs com arame, calcinha - especilamente aquelas com renda que espetam, bolsa combinando, roupa apertadinha, camisolas transparentes. Em resumo: tudo o que aperta, espeta e pesa - aí incluídos os homens - desaparecerão desse universo futurista. Sobre as camisolas: serão todas de algodão e bordadas com motivos infantis: coelhinho, carinhas sorridentes, nuvens, carroça de flores, Frajola, Tom e Jerry, borboletas maluquinhas.

Todos poderão rir de mim porque estou decidida que também vou rir de tudo e de todos.

Uma velhinha pode tudo, exceto praticar exercícios de alto impacto - aí incluído o sexo. Mas e quem disse que vou querer?

Ah, a liberdade! Será doce e engraçada. A liberdade será sapeca, sem vícios e sem medo de morrer. Nunca mais irei a algum programa que realmente não deseje ir. Festa chata? Enterro? Inauguração de botique de amiga? Casamentos condenados? Quinze anos mala?  Quando eu disser que não vou, não vou e pronto.

“- Mas vovó, o pessoal vai ficar magoado!”
“- Conversa fiada. Vão até curtir minha ausência.”
“- Mas mãe, eles estão contando com sua presença! Vai ficar chato!”
“- Já disse que não vou! A gente fica velha e todo mundo acha que pode mandar? Eu troquei suas fraldas, seu mijão! Agora é que não vou mesmo, só porque vocês estão querendo mandar em mim.”
“- Mas então o que é que eu digo quando perguntarem pela senhora?”
“- Digam que estou com pressão alta, que gripei, que estou com diarréia. Ou simplesmente falem a verdade: ela não veio porque é uma velhinha pentelha e está cada dia mais teimosa. Pronto.”
- Bora sim, eu levo a senhora
-Se insistirem eu vou, mas só pra dormir e babar. Vão querer?

E quando eu não gostar de algum presente vou falar na lata.

- "Pô, sabonete de novo?!"
- "Fala sério: tá me achando Carmem Miranda pra usar um colar desse?"
- "Minha filha, faz tempo que Deus me libertou dessas calcinhas."
- "Camisola tudo bem, mas mortalha já é de mais!"
- "Tem etiqueta de troca?"

E se me chatearem muito vou usar a clássica frase: “Respeitem meus cabelos brancos!” Sempre tive vontade de atacar com esses dizeres. Quando parar de pintar os cabelos finalmente será possível. Claro, porque você não espera que eu passe o resto da vida refém de tinturas.

Vou também incorporar vários personagens. Chico Anísio que se cuide. Serei uma velhinha doente quando estiver querendo atenção e divertida quando quiser curtir com a cara dos outros e compreensiva ou cheia de dicas quando estiver a fim da companhia dos jovens. E serei  religiosa, cozinheira, contadora de histórias, atleta (sério! Só ainda nãoo bolei como) sexóloga (pretendo conservar a memória), sacana (só para variar)  dorminhoca, espertinha. Tudo dependerá da posição das marés, da lua, da época do ano, do ciclo das chuvas e, principalmente, do meu fígado. Porque não terei problema de pressão, entendido?

Nem tente traçar meu mapa astral que lhe dou uma bengalada. Claro que vou usar bengala. Não porque vá precisar mas para compor corretamente um dos meus personagens de estimação: a velhinha frágil.

Para um plano perfeito não pode faltar o fecho triunfal: a morte. É quando vou sair de cena e deixar para trás todos os meus cacarecos. Jogue fora se quiser, menos as fotos e as poesias porque aí já é desaforo.

Planejo ser dessas vovozinhas cheias de saúde que fazem o favor de morrer de repente enquanto cochilavam na cadeira de balanço - podem ir comprando a minha. Quero uma com o aro de madeira bem grande de forma que ocupe metade da sala e proporcione um movimento bem amplo. Não me venha com aquelas de mola.

Eu mesma vou bolar a programação para meu funeral. Músicas, flores, tempo de duração etc. Aguardem. Se não todos, pelo menos uma meia dúzia de pessoas espero que chorem, nem que seja um pouquinho. Não é possível que eu só tenha feito merda nessa vida!

Ainda não me mandaram preencher nenhum formulário mas se eu tiver escolha prometo não virar fantasma. Uma vez morta vou cair fora desse mundo com mala e cuia. Ah, esqueci que dessa vida a gente não leva nada... Bem, podem ficar com a cuia. A mala dê para os pobres.

O certo é que pretendo ir para aquele outro mundo onde peito não cai.  Mas no caso improvável de ter que virar fantasma e precisar vagar por aqui (ô programa de índio!) juro não aparecer para ninguém a noite nem fazer barulhos estranhos na cozinha. Nem arrastar correntes. O máximo que vou fazer é olhar para todos vocês com ternura e talvez beijar-lhes a testa bem de leve para que não acordem assustados.

Depois é claro: vou para a night que ninguém é de ferro.

Cristina Faraon

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