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31 de out. de 2014

Desprazer

Somos tendentes aos extremos. Ao mesmo tempo em que existe a vigorosa indústria (e cultura) do prazer, vemos também em oposição a ela a cultura do desprazer.   Sério, existe sim!

Aqui não vai nenhuma uma tese, só uma tímida observação . Tambem não vou me dar ao trabalho de citar mil exemplos. Vou falar só de um.

Poucos prazeres são tão democráticos, baratos, intensos e simples do que tomar água quando se está com sede. E quanto maior a sede, maior o "orgasmo". Pois até isso está sendo alvo da cultura do desprazer. Já não basta termos que amanhecer tomando um copo de espinafre com couve, linchia, extrato de soja, beterraba, cenoura, proteína de soja, gérmen de trigo, guaraná em pó e palha, agora estão atacando até nosso prazer de tomar água. 

A ultima dos "vigilantes da saúde": quando sentimos sede é sinal de que nosso corpo já está desidratando, então tomamos água, certo? Errado. Segundo os desmancha-prazeres cientistas de plantão, o correto é bebermos água aaaaantes da sede para que nosso pobre corpinho não experimente o início da desidratação.

Ou seja: o dispositivo natural do nosso corpo, que pede água na hora que julgávamos certo, esse dispositivo está errado há bilhões de anos. Ele deveria soar o alarme antes. Resultado: se você ainda sente prazer em beber um copo de água, você já está errado.  Beber água sem ter sede não da prazer algum e é isso o que você tem que sentir: desprazer.  Se a sensação do "guti-guti" for gostosa é sinal de que você cometeu a falta grave de deixar seu organismo pedir.

Seguindo esse raciocínio devemos comer antes da fome, transar antes da tesão, dormir antes do sono, tomar banho antes de ficar sujo, tossir antes da coceirinha e rir antes da piada.

Francamente! Pois vou continuar me matando como tenho feito há anos: bebendo água quando sinto sede. E no final ainda vou fazer "aahhhhh!" Para o desespero dos novos colunistas de revistas sobre saúde.

Povinho desocupado!


26 de out. de 2014

As vezes


(Escrito em 05.07.14)

As vezes da um aperto no peito e vem uma melancolia que pensávamos extinta. Sobe da terra como vapores sobem do esgoto. Só que a tristeza da gente chega a ser poética quando não é excessiva.

Estou ouvindo música oriental. Estou cansada e esses vapores sobem, enchem o quarto e me cercam. Tentam me contar tristezas, lembrar de dores. Tentam me fazer entrar no esgoto por livre e espontânea vontade - mas não quero, não vou.

Queria muito que essa pequena angústia continuasse pequena, continuasse curta e desaparecesse amanhã junto com a cerração do dia.

Já carreguei muitas melancolias. Chega. Perdi a capacidade adolescente de ver nisso romantismo. Por que estou triste? Fiz tudo certo hoje, fiz tudo que gosto de fazer. Cuidei bem de mim, estou tranqüila.

"Por que estás abatida, oh minha alma? E por que te perturbas dentro de mim?"


E por vezes as noites duram meses
E por vezes os meses oceanos
E por vezes os braços que apertamos
nunca mais são os mesmos E por vezes

encontramos de nós em poucos meses
o que a noite nos fez em muitos anos
E por vezes fingimos que lembramos
E por vezes lembramos que por vezes

ao tomarmos o gosto aos oceanos
só o sarro das noites não dos meses
lá no fundo dos copos encontramos

E por vezes sorrimos ou choramos
E por vezes por vezes ah por vezes
num segundo se evolam tantos anos


David Mourão - Ferreira

25 de out. de 2014

Cais


Cais não é saudade. Não é lembrar de alguém. Não é fatalidade, não é "coisas da vida". Cais é o medo fossilizado. Não é tristeza de estar só: é tristeza de não ter ido.

Abaixo dos pés, as águas. Inquietas e livres, encharcadas de histórias. E as tábuas enegrecidas e fofas, afirmando que o tempo passou. As águas convidavam e sugeriam, mas nunca deram garantias.  Nunca deram garantias... Você queria culpá-las. Ali, na beira, nas madeiras velhas está o testemunho da sua covardia.

Todo cais é um monumento.

...aos que olharam a chance, o último convite,  se apequenando ali no fim, no horizonte.

Eles não vão voltar.

Visitar o cais é lembrar de quem foi. É saber que quem foi, não volta. Ninguém vem te buscar e não há remédio para o não ter ido.

Quem visita o cais não tem pressa de voltar pra casa mas quando volta tem os olhos cheios de outros mundos imaginários, outros mares possíveis.  Na beira do cais cabem todas as imaginações, todas as invejas.

O cais é a segurança dos infelizes, a eternização do status quo. É se saber um covarde de colarinho puído.

Por isso não gosto de cais. Eles não são bonitos. Ou são, mas como os cemitérios.

Cais são demarcações, são os limites que você não pôde ultrapassar. Ali sua vida fica presa, mas meio frouxa, num vai e vem de barquinho amarrado. Você relembra o último lampejo de juventude, quando era possível tornar tudo possível. Seus pensamentos se misturam, esbarram um no outro, mas não vão muito além. Eles não são barcos nem pássaros; são só os seus pensamentos.

Há uma idade muito grave: a idade do cais. É nela que as pessoas se matam.


18 de out. de 2014

Perdoai


Tenho mania de querer justiça e de implicar com a impunidade. Tenho mania de achar que ninguém pode ter sossego depois de cometer um mal.

Já fui diversas vezes desafiada quanto a isso no que se refere à minha fé. Por eu ser cristã as pessoas acham que me contradigo ao aceitar o Deus que manda perdoarmos os inimigos e ao mesmo tempo querer que os bandidos sejam exemplarmente punidos. Só que não  há contradição alguma nisso. Veja:

Perdoar é um mandamento de Deus PARA MIM, não para o Estado.  Uma coisa é dizer "perdoa". Outra coisa é dizer "imponha aos outros o perdão compulsório."  

Uma coisa é EU dar a outra face por convicções próprias, porque quis.  Outra coisa bem diferente é o Estado me forçar a dar a outra face. Aí já é cachorrice. Perdão só tem valor se for espontâneo e consciente. Se não for é só impunidade mesmo, não tem nada de elevado.  

O perdão em particular é o exercício do amor consciente e livre. É virtude. Quando você perdoa o ofensor, se ele continuar ofendendo o problema é seu. Sim, possivelmente você terá um problema mas esse é um risco que VOCÊ ESCOLHEU pagar.    Mas quando você quer que João fique impune pelo tapa que ele deu em José, você não está sendo bondoso. Está sendo cínico.  

O perdão tem um ônus para o ofendido. Por isso só ele tem o direito de decidir se quer ou não quer arcar com esse ônus.  É maligno impor  à coletividade o peso da impunidade  em nome do "amor". Que amor mais cara de pau é esse?  Mostrar "amor" às custas do sofrimento de toda uma coletividade? Que gaiatice é essa?

Evangelho é graça.  
Lei é justiça.
Misericórdia é melhor do que justiça. 
Impunidade é um inferno. 

Cristo JAMAIS pregou impunidade. A Bíblia toda mostra que uma vez praticado o mal, ALGUÉM VAI TER QUE PAGAR por ele. O pecado não é coisa de somenos. Impossível jogar o mal para baixo do tapete. Ele sempre volta. 

A  lição do Evangelho não é "deixa pra lá".   Deus não deixa pra lá.  O que ele nos perdoa é porque já foi pago.    Jesus se colocou em nosso lugar e morreu para ser a expiação pelos nossos pecados.  Mas isso é uma questão espiritual. A dívida para com Deus já foi paga, se aceitarmos esse favor. Mas a conta para com a sociedade não tem nada a ver com isso.  Deus "é outro departamento".

O resultado espiritual do pecado foi neutralizado, não porque Deus "deixou pra lá" mas porque a justiça de Deus pesou sobre Jesus. Detalhe: Jesus não foi obrigado. Deus não baixou um decreto dizendo que ele iria pagar pelo que fizemos. Foi um sacrifício espontâneo.

O princípio fundamental do Evangelho não é a impunidade, é a SUBSTITUIÇÃO.  

Todas as vezes que sugiro criação de leis severas vem alguém querendo me jogar na cara meu cristianismo. Ora, não é porque Cristo disse "perdoai" que vou sair por aí abrindo as  portas das penitenciárias.  É para EU perdoar, não para os outros. A ordem de Jesus foi para os seus seguidores, não para as instituições. 




17 de out. de 2014

Para ser feliz no Face



Algumas pessoas não-chatas sempre se irritam com as pessoas chatas, pois estas insistem em ser o que são.  Como todos queremos ser populares, aqui vão algumas regras infalíveis para você agradar a todos no Facebook:

1- Não fale em religião nem em política. Quem julga é Deus.

2- Jamais comente que alguma roupa, sapato, bolsa, decoração, penteado ou seja-lá-o-que-for é de mau gosto. Quem julga é Deus.

3- Não comente a vida dos artistas nem qualquer amenidade alguma do mundo artístico. Isso é coisa de gentinha inculta. Além do mais quem julga é Deus.

4- Conte piadas. Todos adoram -  desde que não sejam sobre religião, política, ateísmo, homossexualismo, aleijados, velhos, pobres, pretos, gordos, magros, mulheres sem homem, corno nem homem com pau pequeno. O resto pode.

5- Jamais critique nenhum tipo de música popular, por mais desgraçada que seja. Quem julga é Deus.

6- FOTOS:

a) Não exiba sua felicidade nem sua infelicidade.  Lamúrias irritam mas ficar esfregando felicidade na cara dos outros também;

b) Evite foto de comida, de guerra, de violência e  de doenças. Paisagem bonita pode.

c)  Se a vontade for muita de mostrar seus momentos felizes em fotos, tenha a gentileza de pelo menos restringir o público. Crie uma categoria de "amigos invejosos" , para os quais você não mostrará suas pequenas alegrias.

d) Se você for feio demais, não poste fotos só do rosto.  Apareça sempre perdido no meio de um grupo de amigos ou linda paisagem.

e) Fotos de cachorro são sempre bem vindas desde que não ultrapassem a marca de duas por semana. Aliás: goste de cachorros. Muito. Apaixonadamente.

f) Poste fotos da sua celebridade preferida mas certifique-se de que ela seja militante da causa gay.

7-   Não peça pra repassar coisa nenhuma. Quando a fofoca é boa ela se repassa sozinha.

8-  Manere nas frases de auto ajuda. Tem hora que cansa.

9-  Não critique nem discorde de ninguém nuncajamais. Quem julga é Deus.

10- Tenha paciência de monge tibetano com os que acham que discordar é "desrespeitar a opinião alheia".

11-  Tenha paciência de monge tibetano com os que acham que expor opinião é impor opinião.

12-  Parta do princípio de que todos estão certos, mesmo que não estejam. Quem julga é Deus.

13- Tente dizer o que a média das pessoas dizem. Não queime a placa-mãe pensando demais.

14-   Evite encharcar seus amigos com mensagens piegas ou fofinhas demais porque isso também enche o saco.

15-  Lição de moral pode, mas só uma vez por semana.

16 - Não fale em Deus. Fale, no máximo, na "força do bem" ou algo assim, tipo esotérico. Dica: duendes, anjos e bruxas são mais bem aceitos.

17- Tá liberado falar em futebol mas só em dia de jogo e sem zoar demais o adversário. No máximo duas espetadas por jogo.

18- Aparecer só pra dizer "bom dia / boa tarde / boa noite"  não faz muito sentido. Complete a saudação com alguma notícia interessante.

19- Se puder, depois de sondar o ambiente cuidadosamente, arrisque-se e dê sua opinião sobre o assunto do momento mas jamais - eu disse JAMAIS - fundamente sua opinião. Finja que você não tem argumentos. Se não tiver argumentos mesmo seu silêncio ainda ajuda a te elevar à categoria de "cidadão da paz".

20- Cite frases alheias aos montes. Se o cara falou besteira o problema é dele, vc só estava repassando.

21- Evite de todos os modos ser autentico. Jamais fale o que REALMENTE pensa. Nem celebridades podem ser autênticas, imagine você.

Sucesso!
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14 de out. de 2014

Olhos de Fogo

Acho que esta sou eu com meu vestido amarelo de verão. Foi na década de 30 e nem sei como meu pai permitiu que eu saisse assim, para ser tão demoradamente observada por você.

Debaixo do chapéu meus cabelos negros e limpos não se deixam observar nem serem tocados sequer pelo vento. Pensei que um dia o verias solto em nossa alcova de casados... Naquela manhã ele apenas se enroscava, tranquilo guardião da minha nuca.

Creia que esta fui eu quando tinha a pele alva e preservava cuidadosamente o caminho dos meus olhos. Sim, te olhava vez por outra. Interpretava uma timidez que não tinha e que no entanto era o meu principal adorno.

Posei pra ti em uma rara manhã. As manhãs contigo eram raras. O sol se movia com vigor para o centro do céu. Meu vestido de crepe levou consigo areia quando levantei e o vento cochichou-te o meu perfume.

Essa era eu com minhas pernas fortes e coxas virgens.

Se meu pai permitisse eu posaria pra você mais vezes e em muitas outras cores. O tempo seria sempre eterno como nos quadros, como na mágica dos teus pincéis. Vez por outra verias meus dentes brancos. Deixaria que me olhasses mas não focaria teus olhos de fogo.

Queria ser a esposa que sonhaste, o sague azul, o corpo imaculado guardado em camisolas de algodão, leves como pele de ovo... e em meu quadril perfeito seriam forjados teus filhos e eu não morreria no parto. e deixar-me-ia pintar assim, fingindo ser livre e com uma sensualidade vivaz escorrendo pelo sorriso. Em meu silêncio pareceria a ti que ali mesmo poderia se tua se tão somente me tomasses pela mão.

Em algum recanto de mim sou assim. No olhar que não te lanço, no sorriso contido e nas maneiras suaves sinalizo tudo o que pressentimos que sou. Sinalizo para você, Olhos de Fogo, tudo o que nós sabemos que posso te dar se tão somente me tomares pela mão.

10 de out. de 2014

Vil preconceito


Mal tenho coragem de me olhar no espelho depois de pensar os pensamentos que pensei. É implacável a voz da minha consciência. Ela me acusa porque num dia desses acalentei idéias inacreditavelmente preconceituosas. 

Um dia desses eu estava purgando parte dos meus pecados em uma sala de espera de um consultório médico. Em dado momento vi entrar uma moça muito jovem. Linda, a ponto de,  mesmo baixinha e muito mal vestida, chamar a atenção. De onde pode ter saído aquela princesa rota?

Rosto delicado, pele branca, olhar calmo, mas lábios atrevidos. A boca denunciava a quantidade de hormônios que já estavam instalados e fazendo exigências.

Com a devida produção aquela menina seria cantada em versos e prosa. Poderia estar na televisão ou em qualquer revista. Que jovem! Que pele!  Que rosto! ... E que pobre!

Que garota esculhambada!  Uma vez bem cuidada, teria munição para dilapidar os bens de qualquer marmanjo. Um Jaguar lhe cairia muito bem. E ela atenderia seu celular com as mãozinhas rosadas, unhas transparentes e um adorável ar de enfado. Seria cortejada por empresários tarados e endinheirados - porque tarado pobre ninguém merece. Pois é, eles seriam mantidos em coleira ou devidamente empilhados no freezer. Em sua bolsinha Louis Vutton seriam encontradas quinquilharias graciosas, inúteis e caras.

É, ela demoraria a amar. Mas casaria certamente, pouco depois dos 30, já farta de romances e festas e ainda muito bela. Seus dois filhos seriam paparicados por babás solícitas dia e noite. Essa mãe dourada ensinaria canções em francês aos pimpolhos durante as sessões de massagem. E é claro que não se exporia ao sol nuncajamais. Manteria para sempre sua pele lunar. Com o passar do tempo viraria uma doce senhora, calma e enigmática, cheia de segredos da juventude.

Puf!! Vida real agora:

Pois lá estava ela com a pele ainda lisa, é bem verdade, mas picada de mosquito. Uma mini saia vulgar, um par de chinelos chinfrim, top vagabundo amassando os peitos e mostrando a barriga pálida para quem quisesse ver.  E aquela cara meio boba de quem não sabe nada da vida mas já sabe o que é homem. No ponto ideal para ser iludida, comida, fecundada e passada pra outro. E os cabelos? Compridos, ressecados e estranhamente alaranjados. Meu Deus, nem shampoo que preste ela pode comprar! E unhas roídas. Mas é claro que o "Zequinha da Taberna" ou o "Bira das Pupunhas" não se importam com essas sutilezas. Os Zé-Qualquer do bairro não enxergam nada além de um magnífico pedaço de carne fresca pronto para ser inseminado.

Aquela menina deve ser implacavelmente assediada, dia e noite, noite e dia por todos os machos das redondezas. Que lástima imaginá-la com sua juventude encurtada pelas vicissitudes da vida, pelos maus romances, pela má postura, pelos partos sem cuidado!

Eu, no alto do meu inimaginável preconceito, usei da minha bola de cristal para prever que o destino mais próximo seria embarrigar. Com certeza. Quem, naquela idade, com aquela aparência, naquele bairro e vestida daquele jeito deixaria de engravidar? E como, Deus do Céu, naquelas condições ela continuaria sendo bela aos quarenta anos?

Sim, eu sou um monstro.

Você está me achando abominável, não é?  Pois esqueça essa postagem e não diga a ninguém que eu escrevi. Não vou nem assinar.

6 de out. de 2014

O samba


Sinto-me um pouco diferente dos outros quando me comovo com coisas "incomovíveis". Talvez eu esteja meio "deprê" sem saber. A gente não percebe que está "deprê" enquanto não encontra um fato que justifique a situação. Como se fosse necessário uma justificativa...

Gosto tanto de um bom samba, mas tanto tanto, que me comovo.  Verdade: eu choro.

Não é todo mundo que vê o samba como uma coisa "de alma". Para a maioria das pessoas samba remete a festa, amigos, risos, cerveja, malandragem. Pra mim também, só que com mais uma coisa:  com uma farpa no coração.  Como já dizia o Vinícius: "O samba é a tristeza que balança."


Pois ouvindo um lindo samba dia desses no carro, senti meu coração se esforçar pra bater junto, pra se expressar também. Meu corpo pedia pra fazer parte, e naquele balanço todo a minha alma se acordou. Lagrimei. Por causa daquela belezura toda, tão morna e convidativa. Uma alegria/triste que o coração entende tão bem! O samba é muito humano.

Quem não percebe a dorzinha escondida lá no fundo da cuíca é porque não entendeu nada.  O samba só se mostra pra quem percebe, por baixo da sua ginga e da malandragem, o ponto fraco: a dor amaciada pela música.

Mas o samba não é comovente só por ser bonito. Ele é a expressão dos que sofreram mas não baixam a cabeça. Ele é o padrinho de todos aqueles que apesar de tudo não desmarcam o encontro com os amigos, erguem a cabeça e entram no ritmo sem nem pensar como vai ser depois. Porque o depois cuida de si mesmo. O depois não nos pede permissão nem opinião. O depois se vira sozinho. O melhor a fazer é cantar, falar de amor e sorrir. O que comove no samba é essa imagem, esse sentir. Porque quem canta enquanto sofre também é capaz de qualquer outra valentia.

Sim, o samba é a tristeza que balança.

Acho que por isso o samba nasceu no morro, no meio da dificuldade, entre pessoas que, afinal de contas, cantavam. Samba de rico não tem graça nenhuma porque, por sua natureza, ele não remete a brilhos que não venham do Carnaval. O choro do sambista é o batuque, que fala certinho as coisas do coração.

Até a sensualidade do samba é uma sensualidade especial: forte, resistente, teimosa, que brota em ambientes inóspitos e sem reboco. É a lavadeira suada e sem maquiagem despertando os desejos mais vigorosos só com o suave meneio dos seus quadris. Sem jóias nem luxo nem lençóis de seda. Tudo muito verdadeiro, gostoso e fora da indústria. O querer porque quer, só porque ele é homem e ela é mulher. Pois por isso o samba remete aos vencedores no sexo, porque é capaz de falar  até "naquela boca sem dente que eu beijava". Fala também  no barracão de zinco, na lata dágua, na panela de feijão e na cabrocha inesquecível que "pisava nos astros distraída". então a gente batuca, ri e danta, mas com aquele nó na garganta que só os fortes conhecem.

"Liberdade! Liberdade! Abre as asas sobre nós!"


Samba tem que ser coisa de preto mesmo. Peço desculpa aos brancos, mas branco cantando samba não é a mesma coisa. O samba é patrimônio preto no Brasil tanto quanto o blues é patrimônio preto nos Estados Unidos. Porque lá o blues fala das mesmas coisas pois também nasceu na dor que se torna poesia. A alma do samba é a mesma do blues. São irmãos separados na maternidade. Cresceram distantes mas, no final das contas, têm o mesmo coração.

Pois chorei - chorei mesmo! - no carro. Chorei porque samba é lindo e eu percebo, eu entendo.

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