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9 de mai. de 2025

Borrões

 


 

Acabei de assistir alguns vídeos de "músicas mais tocadas"  lá por volta dos anos 60. Duas coisas me chamaram a atenção: a qualidade insuperável das músicas e  a má qualidade dos vídeos.  Fora a dor no coração por uma época que não vivi e que se foi sem me dar satisfação, ficou aqui a frustração de querer ter mais nitidez nos vídeos. Eu queria ver mais, olhar melhor, beber daquilo. Eu queria o impossível: pegar carona em um trem que não era o meu. 

Os vídeos antigos são como o próprio passado. São fugidios, borrados. Não é assim?  Não há nitidez no passado. É certo que alguns olhares marcam mas nada muito além disso. Em outra cena um sorriso, um meneio, um vestido branco com bordados indiscerníveis. Está tudo lá, na memória. Está e não está.  É como se nos faltassem os óculos. O cantor sorridente, de pele límpida e dentes brilhantes, o que tem ao seu redor?  Vultos que riem sem boca, olham sem olhos, usam anéis mas não tem dedos.  Eles não querem ser lembrados. Pertencem a outras memórias. A princípio tentamos completar as imagens falhas com rostos e gestos imaginários mas é inútil.  Deixaria de ser memória para se tornar fantasia. Não queremos fantasia!

O que interessa da memória é o que dela temos. O que sobrou é o que nos pertence. É pouco, eu sei, mas é assim. Tudo não passa de acenos de um barco que já se foi.    

O passado está salvo da nossa interferência. Ele descansa em paz, resolvido.    

Não faz sentido reclamarmos da má qualidade daqueles vídeos. Eles são tal qual as lembranças que evocam. É da própria natureza da coisa. Borrões são o toque de mistério e melancolia necessários à saudade, à dor, á curiosidade.  O que não vemos é justamente o que nos impede de ir para lá.  Borrões são a sinalização:  "Acesso negado. Você só pode vir até aqui".   Somos colocados no nosso devido lugar.  Nosso lugar é aqui e agora e a ninguém é dado o direito de pular o muro. 

Não reclame. Não é assim que nos lembramos da nossa mãe, dos colegas, dos primeiros livros, das festas de São João, do primeiro beijo? Não é assim? Havia flores? Você não lembra.  Como eram as cortinas?  Quem eram os figurantes?  Como era a voz do seu pai? Quantas almofadas havia no sofá? 

A realidade tem detalhes demais. Cada grão de areia, cada dobra no lençol ou formiga caminhante precisam estar muito claros e visíveis, se não não é presente. Tudo tem que poder ser descrito em minúcias. Não existe presente sem micro detalhes e é a ausência deles que nos impede de pisar no passado.  E é assim que ele foge de nós.

Só nos restam os borrões. São tudo o que temos.

12 de mai. de 2024

Dia das mães

Meu Deus, meu Pai,

Obrigada pela experiência maravilhosa de ser mãe.
Obrigada pelo corpo fértil, pelos meses de gestação, pelas transformações no corpo e na alma. 
Obrigada pelos filhos que me destes e porque eles tem sido até hoje preservados de tanta coisa ruim!   
Obrigada pelas vezes em que suas vidas foram salvas e seus corpos foram curados. 
 Obrigada  pelos risos, pelas brincadeiras e até pelas choradeiras. 
Obrigada pelo parto normal e pela euforia no final. 
Obrigada pelos seios cheios de leite. Obrigada  pelo alimento que nunca lhes faltou.  
Obrigada porque eles ficavam tão lindos de uniforme escolar! Tão lindos que meus olhos brilhavam! 
Obrigada pela minha mãe,  minha avó,  minha bisavó, minha madrinha... por todas as mães que me serviram de exemplo.   
Obrigada por todos que me ajudaram e todos que oraram por mim. 
Obrigada pelos meus erros maternos relevados e perdoados.  Foram vários mas o Senhor ajeitou as coisas. Valeu! 🙏

Obrigada por eu ter sido mãe tão jovem,  tão "zerada"  e tola mas mesmo assim ter dado tudo certo. Ufa!

Me ensina a continuar sendo mãe mesmo nessa fase em que eles não precisam mais de mim. O que mais eu ainda posso fazer?  

E me ensine a ser mãe para quem passar pelo meu caminho precisando de uma mãe, porque o senhor tem tantos filhos!!!

Grata para sempre. 
Amém.

4 de jan. de 2024

CADEIRA DE BALANÇO (Depois daquela foto) *

Lá pelos quarenta anos a gente se olha no espelho, confere tudo e se promete: nunca vou envelhecer. Eu fazia essa brincadeira comigo mesma, de fazer-me esse juramento. Parecia divertido porque eu, de fato, me sentia ótima. Ótima com quarenta anos, ótima com quarenta e cinco, ótima com cinquenta.  Meu Deus, eu me senti ótima por tanto tempo!

Só fui começar a notar  a passagem do tempo lá pelos 55 anos.  Só a partir daí admiti que as coisas estavam mudando. 

Eu sempre disse que não me incomodava com o passar do tempo. Não era mentira. Como eu poderia me incomodar com algo que não percebia? Fiquei assim, nessa doce dormência, por vários anos. 

Mas... os 50 foram passando. Sem alarde, mas passando. Então vieram os 56, 57, 58...     Foi quando comecei a notar umas "pequenas imperfeições estéticas" aqui e acolá. Não me importei, afinal de contas até adolescentes têm imperfeições.  Mas lentamente fui admitindo que tudo aquilo que eu chamava de "imperfeições" eram na verdade indiscutíveis sinais de envelhecimento.   Aceitei com certa tranquilidade até porque a minha disposição não mudara e minha saúde continuava intacta.  Nada daquilo era suficiente para que eu me sentisse velha. Apenas eu deixara de ser jovem. Isso não me parecia tão grave.

Até que um dia uma simples foto derrubou toda a minha auto imagem.   

Eis que eu estava em um evento com pessoas tirando fotos aleatórias.  Lá pelo final do dia desejei ver tais fotos.  Foi quando me deparei com uma senhora. Não uma mulher, mas uma senhora.  Claro, era eu no esplendor da minha decadência. Vi e conferi, de uma vez e sem anestesia, tudo o que deixei de ser e que agora sou. Vi tudo o que o tempo me fizera e que eu, até então, alegremente ignorara.

Agora seria necessário alinhar as coisas: o físico com a alma. Não era possível ignorar tal revelação.

Sem fazer força alguma o meu espírito se vestiu de senhora.  Eu nem tive tempo de pensar a respeito. Simplesmente aconteceu.    Aquela camisolinha de cambraia desceu do céu lentamente, veio flutuante e com muito jeitinho encontrou o rumo da minha cabeça e desmoronou sobre mim se amoldando ao meu corpo muito gentilmente. Achei gostoso e me vi então sem os espartilhos. Houve um realinhamento interior. Era algo como uma despedida destrambelhada mas que  se tornou confortável com a descida da camisolinha branca. 

Nunca mais consegui me sentir da mesma forma.  Agora abraço sem muita relutância algumas novas tentações; a tentação de pensar que posso descansar o quanto quiser, que a magreza não é mais uma dívida que tudo passou, não vou melhorar mais, não preciso mais me sentir culpada por não ir para a academia. Toda gordura será perdoada, toda flacidez está justificada, "você fez o que pôde, a gente entende, agora relaxe vovó".  Não preciso mais sentir incômodo nem culpa nem obrigação de coisa alguma.  Posso deixar tudo escoar nessa ampulheta fatal.

Já não terei mais aquela angústia, tão comum aos jovens, do medo de estar jogando a vida fora. Isso não cabe mais. O que vivi, vivi e se não quero mais "aproveitar", ok.  Não estou jogando nada fora. Já bebi o cálice.  Não há mais nada diante de mim que seja tão incrível que não possa vir a ser desperdiçado.

Certamente a juventude pesa. Pesa de várias formas e começo a me sentir aliviada dos seus fardos. Não "tenho que" mais nada e não aceito certas cobranças.  Essa é uma boa compensação para a beleza que perdi.    E aquela bobagem de evitar certas roupas, certos sapatos e certos costumes por ser "coisa de velha"?  Essas bobagens colavam em mim  e eu nem notava o quanto eram incômodas.  

Pois então abracei com alegria todas as generosas desculpas que a vida jogou no meu colo. Preguiça é permitido. Tenho o direito, pessoas idosas cansam mais mesmo. Engordei?   Sim, e você queria o quê? Faz parte. E na suas idade eu estava melhor do que você. Não quero ir hoje para a academia. Não vou. E mesmo que eu vá não vou virar Garota Verão então dane-se. 

E tem mais!  Sinto nos mais jovens uma certa disposição em relevar certas coisas, meu jeito ou algo que eu diga, assim como eu relevava as manias e falas da minha avó. Isso também traz conforto. É mais uma almofada que a vida coloca gentilmente nas nossas costas.

Essa é a parte boa mas é bom lembrar que é de desculpa em desculpa que uma pessoa desmorona. É isso que eu quero? Não. Ainda me sobrou uma dose de vaidade.  Então entre o conforto das desculpas e o medo do desmoronamento vou me cuidando, me equilibrando entre a rebeldia e o auto cuidado. Ainda frequento academia.

Nem sempre sou minha amiga. Vez por outra ainda me lanço o "fogo amigo" da auto crítica inclemente:

"- Pare!   Pra quê esse batom ridículo? Vermelho não vai mais ficar bem em você. E pra quê outro par de brincos? Eles não vão te melhorar em nada. Vista qualquer coisa, ninguém se importa.  Sim, esse anel é lindo mas em sua mão só irá reforçar o fato de que a pele envelheceu. Que alegria pode haver em coloca-lo em suas mãos enrugadas?   Não vai ter o mesmo efeito da juventude, querida. E convenhamos: você realmente não precisa de mais outro vestido. Qualquer coisa que você vista não farás mais diferença. Acabou."   Em várias ocasiões, mesmo com dinheiro na bolsa, já deixei de comprar anéis e vestidos por causa disso.

O consolo é que essas flechadas ácidas continuarão tendo influência sobre mim só por mais um pouco de tempo. Estou caminhando para aquela fase do "tudo posso".  

Minha realidade agora é essa cadeira de balanço mental, que oscila entre o conforto da condescendência e a auto crítica cruel, entre a rebeldia e o auto cuidado.  Vou para a varanda da vida mais ou menos resignada, sem saber direito se esse vai-e-vem é ou não é para deixar no automático, se é ou não é para ser assim. 

Cadeiras de balanço não servem como símbolo de indecisão mas de descanso. Acho melhor eu abraçar essa compreensão.




12 de jun. de 2022

Pois que seja! *

Olhe a imagem. O que é aquele pontinho branco?

Do quê sua alma precisa hoje? 

Se você precisa que seja um pássaro, faça disso um pássaro.  Visualize voos e evoluções que  só você consegue notar.   Ele terá as asas mais longas,  penas imaculadas e o planar mais suave.  Construa cuidadosamente  para a sua memória, a lembrança daquilo que você nunca viu.  E acredite com força. É dessa força que nascem os encantamentos.

Se você precisa que esse ponto branco seja um mistério, algo  como um ET, ameaçador ou amigo,  tudo bem.  Ele pode ser a salvação da humanidade ou o anúncio do seu fim.  Pois  que seja! Às vezes tudo o que precisamos é do estranho,  do instigante, daquela coisa que nos tire do óbvio e nos leve a formular as teorias mais delirantes.  Isso dá sentido às coisas!   E que essa curiosidade capture teus sentidos e que nessa excitação toda a tua vida ganhe fôlego.   E que o mistério, ou até mesmo o medo, te façam esquecer  a dor.   É possível sim. 

Mas se for de uma estrela que você precisa então que seja.  Ei-la! É toda sua , para consolo e deslumbramento. Sente sozinho no gramado e não chame ninguém! É hora de dizer a si mesmo que não quer companhia.  Isso faz a gente se sentir mais forte. Isso mesmo: dispense o mundo e imagine sóis,  planetas,  essas coisas longínquas e flutuantes que você não tem com quem imaginar .  Essas coisas  encantadoras das quais ninguém quer te ouvir falar. 

Pegue seu pássaro,  seu ET ou sua estrela ou seja lá o que for e depois vá dormir, feliz por ter sido o escolhido. Você viu o que ninguém mais viu. Você recebeu uma certa luz. 

É assim que se dribla o mundo. 

Diga a si mesmo aquilo é um  sinal, a resposta a uma indagação ou um bom agouro.  Um presságio.   O "sim" que você tanto esperou do universo.

E que isso  te sirva  pra vencer mais esse dia. O milagre de amanhã é sempre uma surpresa mas ele se anuncia nessas coisinhas que só a gente vê.
 

17 de jan. de 2021

Quando as bolhas espocam *


Não, eu não sou escritora. Tive uns surtos tempo atrás mas perdi a mão. Perdi o trem.   Houve vários trens em minha vida e todos se foram.

Há um momento ideal para as coisas acontecerem. Elas se insinuam, brilham, permanecem suspensas por alguns momentos no ar e por fim espocam sem muito alarde, como bolhas de sabão.

Revirei meu blog desde o início. Descobri que lá atrás, no começo, eu escrevia muito, mas muito mal. Ridiculamente. Desejei apagar aquele monte de banalidade mas não o fiz.  Não consegui me renegar. 

Pois bem, segui viagem e percebi minha fase áurea.   Consegui ver aquele tempo quando "as coisas estavam suspensas no ar" sorrindo e me convidando a seguir em frente, me aperfeiçoar, evoluir.   Tirei do sepulcro uns textos muito bons, de minha autoria. Tão bons que humilharam-me enormemente pois hoje não me sinto capaz de repetir as façanha. Os tais textos olharam-me de cima para baixo, meteram o dedo em minha cara e disseram: acabou pra você.   Foi uma coisa pesada perceber que a fertilidade passou e que a alma também envelhece. Não me sinto mais capaz de escrever nada com aquela qualidade.  As bolhas espocaram e fiquei aqui, com o copinho de sabão na mão, sem ação.

Sinto certa saudade daquela Cristina angustiada que escrevia coisas mais sensíveis.  E aqui estou eu, com a sensação estranha de que não adianta correr atrás. Que a vida segue sempre em frente e isso não é necessariamente bom.  Em algumas estações ela deveria parar um pouco, mas não para.   

Só tenho então o computador diante da cara e um impulso tênue de dar mais uns passos só pra não perder muito o jeito de andar. Preciso continuar mesmo que não valha nada, que ninguém queira nem precise.  É uma espécie de missão que tenho que cumprir, com ou sem glória.   Porque a vida continua marchando feito louca e ela não quer ser esquecida. Ela quer que eu a registre mal ou bem, para a minha glória ou humilhação.

Pois registro sem glamour que é noite, tenho azia e cansei de querer coisas. Olho para trás e vejo tristezas. Sim, há alegrias bem risonhas, mas os véus da tristezas não saem da frente e atrapalham um pouco a olhadela. O futuro é um fim-de-festa onde não preciso me preocupar em limpar o salão. Só quero tirar os sapatos e tomar um banho.  E ninguém quer saber o que virá.

Nada incrível vai acontecer amanhã. O que tinha que ser, já foi. E isso é tudo.

3 de jan. de 2021

Floresta âmbar *



 Essa imagem me fez lembrar de um sonho que tive há muitos anos. Muitos anos. Nem lembro quantos. 

Eu estava em uma floresta maravilhosa. Sozinha. Era noite completa, escura e estranha mas eu conseguia ver claramente tudo ao redor: as árvores, o riacho, as folhas, o chão.  Não lembro se sentia medo. Só lembro do meu deslumbramento com aquele lugar. Era como se tivesse finalmente entrado em um mundo mágico. Eu estava ali e aquilo era a prova de que tudo o que li era verdade. Nunca estive ali antes mas o lugar me parecia de certa forma familiar. 

"Eu sei do que se trata, mas não lembro...preciso de mais tempo aqui."  

Eu não sabia se havia mais alguém ao longe ou se eu estava ali com algum propósito.  A impressão era de ter caído aleatoriamente naquele outro mundo. 

Não sei se os elementos ao redor era fluorescentes... Não, não eram.   Eu não via foco de luz algum mas era possível enxergava tudo, como se um holofote cor de âmbar iluminasse ao redor de onde eu estava, de baixo para cima. Era tudo muito escuro mas para onde eu olhava havia uma misteriosa iluminação.  Era tão comovente! Era como se as árvores percebessem a minha presença. Havia ali uma possibilidade real de aventura.  Eu realmente precisava de mais tempo ali.  

Agora, ao lembrar, parece-me que aquela floresta estava dentro de mim como um subproduto de todos os meus sonhos, leituras e sentimentos. Ela foi criada inadvertidamente ao longo dos livros que li. Então, numa noite, com a alma vagando distraída,  entrei acidentalmente por um portal que me levou àquele lugar de onde bem poderiam surgir  de repente princesas e bruxas.  

Ah, eu daria tudo para voltar lá e finalmente descobrir. Descobrir o quê? Descobrir o que houvesse para ser descoberto. Porque havia aquelas árvores enormes cheias de saberes, com um silêncio típico de quem quer nos contar alguma coisa proibida. Havia pedrinhas e riachos, olhos e negritude profunda. E tudo sabia de "algo'.  A saudade daquele lugar era como a saudade de uma pessoa. A floresta era como "alguma pessoas" que me conhecia bem, que me esperava ali desde a minha meninice. 

E agora, enquanto escrevo, sinto tudo de novo. Sinto dor de saudade por aquele lugar mágico.




 

7 de out. de 2019

Janela vermelha *

É isso mesmo o que eu quero: uma janela vermelha, bonita e vivaz, que quando eu acorde me acolha assim, de batom, apontando para mil possibilidades lá fora: flores, caminhos, caminhozinhos, trilhas, cantinhos.

Uma janela vermelha é um bom começo de dia e é, por si só, um bom sinal. Ninguém tem uma janela vermelha a toa. Há de possuir também colcha de retalhos e pote de biscoitos caseiros. Ninguém as tem se não sai para passear de repente, de cabelos soltos, e come bolo no final da tarde olhando o sol poente enquanto as mães passeiam com seus bebês.

Quem tem janela vermelha tem incenso e fotos de muitas férias. Tem caixas com bugigangas, livros sublinhados, uma almofada bordada. Tem também chapéu para ir à feira e ingressos para o teatro.

Ninguém se sente só com uma janela vermelha pela qual olhar o mundo imenso e convidativo.

Hei de ter a minha, sorridente como ela só, com uma linda cadeira de madeira por perto. Hei de ter brincos indianos e vestido de cigana para sair só para comprar revistas quando der vontade. E quando, lá embaixo, eu estiver molhando as flores, hei de olhar pra cima e ver de relance na janela vermelha a minha imagem feliz e sozinha sorrindo de volta.

*

3 de fev. de 2018

Migração


Olho para o céu e, parece-me: todas as aves voam para ti.

Há uma festa para onde elas estão indo, mas elas não dizem nada. Se eu pudesse segui-las chegaria a ti, mas não posso.

Sinto inveja das aves que pousarão no teu ombro e brincarão nos teus cabelos. Sinto inveja desse vôo silencioso, cheio de segredos. Sinto inveja desse caminho certeiro, dessa ausência de dúvidas que só as aves têm.

Sigo meu caminho na Terra. Cumpro a minha sina, que nem tem sido penosa. A vida é boa, embora fique aquela dor antiga incomodando o sapato. Mas é assim mesmo: todos os sapatos doem e as dores nem sempre se despedem.

Sinto saudades, mãe. A senhora sabe disso.

Um dia o meu caminho na Terra me levará ao caminho das aves. Nesse tempo darei o último passo aqui e descobrirei, finalmente, onde você respira e quais os ventos que sacodem as suas roupas brancas.

1 de jan. de 2018

Primeiro de janeiro



O dia de ficar melancólica era, indiscutivelmente, ontem. O último dia do ano é quando a vida dá licença para lembrar, ficar triste e até chorar.  Em meio aos fogos de artifícios todas as dores podem vir à tona fantasiadas de emoção deslumbrada. Vale tudo, todos se saúdam e pronto. Não chorei ontem. Nem hoje, para ser sincera. Mas estou sentindo um peso, uma dor. Uma angústia de saudade, uma sensação de subtração.  Estou me sentindo profundamente só porque quando nossos pais se vão a gente fica só para sempre. Nada conserta isso. A gente se apaixona, a gente casa, tem filhos, se envolve tanto com o presente que o passado fica suspenso, pairando no ar. Por um tempo ele não nos incomoda. Por um tempo esquecemos e pensamos que mudamos, que somos outra pessoa e não precisamos tanto do que aquelas pessoas nos davam em termos de amor e aconchego de alma.  Mas tudo que sobe, desce. Toda água que vai para o céu acaba voltando, mais cedo ou mais tarde, levemente ou destrutivamente. Um dia a vida diminui o ritmo, um dia os problemas se resolvem (ou solidificam), um dia os afazeres se acalmam
, dão um tempo. Aí você senta na varanda para tomar um chá olhando para o céu e descobre que esse foi o seu grande erro. É na varanda do repouso, da reflexão e da cadeira de balanço que tudo o que estava suspenso cai sobre você como uma avalanche.

Cadê minha mãe? Cadê meu irmão? Onde estão meus padrinhos que faziam tudo por mim?


Estou aqui, pequena e assustada, horrivelmente carente nesse corpo de senhora.  O presente é um castelo cheio de fantasmas amigos. Eles sopram e dizem que sou um personagem de outra trama. Minha trupe se foi.

Minha saudade caiu sobre mim como chuva de gotas grandes.

Quando estou assim não lembro imediatamente das pessoas. Elas vem depois. O que lembro  é de lugares, cenários, sensações, músicas, vozes, coisas muito íntimas, muito minhas, incomunicáveis. Essa incomunicabilidade me aflige imensamente porque impede que eu me alivie. Eu quero te dizer, falar pra você, fazer você conhecer e ficar com parte dessa dor. Mas é impossível. 

Lembro muito, muito mesmo de como eu me sentia. E sinto um cheiro de guardado enquanto isso. Cheiro de caixa de relíquias. Lembrei da dor na barriga antes de entrar no palco para aquela apresentação de Natal. Lembro das crianças, dos holofotes, das asas de anjos de cartolina e papel crepon e o tempo que levamos para preparar tudo aquilo. As roupas de cetim barato.  Droga! Lembro do que eu era, de como eu era e de como me sentia. Só depois, bem depois, vem as pessoas com suas caras e jeitos compor esse caldeirão. Lembro das expectativas do Natal, da árvore, dos presentes novos, do primeiro dia no colégio, da pasta de couro, da raiva que eu tinha das minhas pernas finas. Tudo se acende de novo, se ilumina dentro de mim só para doer mais. Lembranças por si só não doem. Mas há um algo mais que dá realidade a tudo. Há um componente misterioso que faz a gente re-sentir e re-ver.  Aí é um tapa.

Estou mal. Estou vendo a cozinha da casa da minha madrinha com aquele monte de panelas. Estou vendo meus vestidos novos, a mamãe vindo do salão. Sinto o cheiro do glacê do bolo. Mas o que me arrasa é lembrar daquela sensação de acolhimento e segurança que não tenho mais. Estou vendo minhas amigas, o quintal com duas palmeiras. Estou sentindo novamente aquela felicidade meio dolorida, meio misturada com uma melancolia onipresente que eu nunca entendi. Quero o meu pai.

Me sinto só. Me sinto órfã de todos os que me amavam. Me sinto tão criança que você nem pode imaginar. E tenho um sentir de abandono, de "sozinha no mundo", de "todos se foram e eu fiquei".  Por dentro eu sou uma menina esquecida na estação de trem.

Eu poderia continuar escrevendo meses sobre isso e repetir pensamentos e frases como um pêndulo ou roda gigante cujos assentos sempre voltaram ao mesmo lugar. Ir e vir é o seu destino. Posso falar sobre isso novamente e te enfadar com minhas lembranças repetidas. Preciso fazer isso! Preciso dizer tudo de novo até conseguir me esvaziar dessas coisas e me sentir melhor. Acho que o esquecimento vem depois do cansaço. Se eu cansar de lembrar talvez isso canse de doer.   Preciso escrever de novo e de novo até que se esvaiam todos os cheios, até que sequem todas as flores, até que tudo vire apenas fotos amareladas e cansativas. Deve haver algum jeito de isso tudo se perder ou ficar apenas banal.

Dizem que envelhecer é assim, quando o passado volta com mais força, quando você se sente sozinho, quando você tem a impressão de que sua alma ficou lá atrás, desnorteada. Envelhecer é quando você não quer absolutamente nada em troca do que perdeu.  É quando você prefere a boneca velha de um olho só porque de todos os que sabiam de você, só ela sobrou. A boneca encardida é a única que sabe de tudo. É a última tabua nesse oceano. Envelhecer é quando você não quer nada novo e se torna uma menina inconsolável exigindo o que não pode ter.  Envelhecer é quando a saudade fala mais alto do que tudo. É quando todo consolo se torna um insulto.  É quando você não se sente mais mais desse mundo e prefere mesmo que seja assim.

8 de out. de 2017

Explorando a fé alheia


Preâmbulo:

Há muitas coisas nessa vida que podem ser exploradas. Praticamente tudo. Seu corpo pode ser explorado. Sua sensibilidade, seus dons, seu trabalho, seus sentimentos, sua fé, sua beleza, sua juventude, sua saúde pode ser explorada.   Há muitas coisas que podem ser exploradas. Há muita gente que se deixa explora. Precisamente por exploradores sempre haverão.

Claro que exploradores não merecem defesa mas não nos esqueçamos: cada pessoa tem que valorizar a si mesma. A maior interessada em mim, sou eu. Se eu descuido de mim, por que esperar que outro tenha mais consideração por mim do que eu mesma?

Sobre pregadores que "exploram a fé alheia": 


1)    Primeiramente a fé alheia sempre foi explorada através dos séculos e não foram os pregadores evangélicos que inventaram isso. Claro que isso não os inocenta mas um é fato.  Alguns deles só fazem, de forma mais desinibida, o que sempre se fez no mundo em TODAS AS RELIGIÕES.   Por exemplo: não vejo diferença entre vender "água do rio Jordão" e vender um santinho. Em ambos os casos tem alguém ganhando dinheiro com a fé de alguém. Uns ganham mais, outros menos... mas em essência não é a mesma coisa?

Fé é fé. Só que a fé dos outros é feia e a nossa é sempre linda. Somos parciais. Somos injusto na maioria das vezes.

2) Em segundo lugar: Tenho um pouco de dificuldade em concordar com essa teoria de que tais líderes religiosos exploram "a inocência das pessoas".    Não sei se estão mesmo explorando a "inocência". Acho que estão explorando mesmo é a cobiça, a PREGUIÇA de pensar. Na idade média as pessoas comuns não tinham acesso a livros A maioria nem mesmo sabia ler. Hoje ninguém tem mais desculpa para ser otário.   Quem rejeita o conhecimento come dos frutos do seu próprio desvario - é o que vemos na Bíblia, no livro de Provérbios.   

Semelhantemente o traficante não está explorando a inocência de ninguém. O viciado não é "vítima das drogas".  Ele é vítima da sua própria arrogância em desafiar leis. Ele é vítima do próprio espírito rebelde, que debocha das autoridades. Ele é vítima da vaidade tola que tem em "desafiar o poder". Aí se estrepa. O traficante só entra aí, cobrando ingresso quando o circo já está todinho armado. Entra nesse vácuo. Esse que é o caminho do lucro. Rebeldia gera riqueza - para uns. E ruína para outros.


Ou seja: o explorador geralmente explora o que as pessoas tem de PIOR, não de melhor. Vaidade, preguiça, indolência, rebeldia, raiva, vontade de aparecer, etc.  Nada disso me parece com essa coisa bonitinha chamada "inocência".


12 de mai. de 2017

Parábola do amor (atenção: esse texto não é de minha autoria!)


O Semeador do amor saiu a semear.

Ao semear a sua semente, uma caiu à beira do coração, e, na mesma noite veio um sedutor e a roubou.

Outra caiu num coração que parecia estar aberto. Mas as muitas alternativas logo inibiram a semente, pois, no fundo, o coração não queria se deixar penetrar pelo amor.

Outra semente caiu entre muitos concorrentes. Sementes de todos os tipos de espinho, e que pegam em qualquer lugar, especialmente no chão seco, carente e desértico. Assim, sufocada, a semente do amor morreu antes de morrer no chão da umidade fértil.

Enfim, uma das sementes caiu num coração que queria amar, e que estava limpo e preparado; pois, nele, não havia sementes de enganos. Esse amou, foi feliz, e conheceu o sentido do encontro entre um homem e uma mulher.

Quem tem coração para sentir e entender, que sinta e entenda!

Caio Fábio

13 de jul. de 2016

Feixe: crônica de uma mãe


Ele era um pequeno feixe de inquietudes. Precisava de uma dose maior de aconchego. Precisava precisando mesmo, não era onda. Era coisa lá de dentro, dessas que a gente enxerga e não duvida. Era um precisar comovente pulsando dentro daquele corpinho frágil e por mais que eu o socorresse nunca era o suficiente. Eu via que não era, mas não sabia o que fazer. Às vezes era como se ele estivesse perdido na noite. No cúmulo da sua inocência ele se expunha assim, tão sem medo de se mostrar, tão sem medo de que usassem sua fragilidade contra ele mesmo. Às vezes eu me expunha, a mim mesma também, porque às vezes eu me via nele e não queria que se sentisse sozinho.  Ele era eu mesma, só que sem disfarces. Nele encontrei a mim, desnuda e pequena.  Ele era o meu retrato mais inquietante e foi por isso, e nessa época, que passei a me vestir de preto.

Ele existia e eu o amava e não poderia deixar que ninguém lhe fizesse mal.

Ele era um pequeno feixe de nervos e amor e a vida lhe pesava embora ele não soubesse disso. Seu coração pequeno batia na caixinha de ossos.  Eu não  sabia se o abraçava apenas, se isso lhe bastaria. Eu queria tanto que bastasse!  Eu não sabia se o melhor era ralhar para força-lo a ser forte, prepará-lo para o mundo, ou se deveria deixar claro que aquilo afligia a humanidade toda e que a vida é assim mesmo.   Eu me inquietava considerando se era exigir muito de uma criança abraçá-la dizendo que aquele abraço deveria lhe bastar.

Eu não tinha respostas nem abraços que lhe bastassem e na maioria das vezes meu coração doía profunda e longamente em seus bracinhos finos que nada podiam fazer por mim. Então diante de mim eu tinha um feixe de sentimentos tremulando, inquieto e cheio de vida. O potencial de angustia que poderia me sobrevir por causa dele era incomensurável. Melhor que não soubesse disso. E eu seguia não sabendo como agir e me desesperando em querer ser  para ele a maior bênção da vida.   Eu, solícita e desajeitada.

Ele todo era feito para sentir e me lançava, sem saber, num mar de aflições pelo passado, pelo presente e pelo futuro.

9 de jul. de 2016

Tudo que há nesse mundo

Tudo o que há de bonito nesse mundo foi feito por amor. Pode reparar.  Ou foi o amor às pessoas ou amor à arte, ou amor ao belo, amor ao desafio, amor ao conhecimento.  Sem esse sentimento, que vai muito além do dinheiro, nada que presta existiria.
A tinta linda com a qual você pintou a sala não existiria sem alguém apaixonado por química. Alguém amava as cores desde criança e sabia diferenciar nuances e nuances. Foi alguém com um olhar especial que estudou, se dedicou e jogou no mercado,  vitorioso,  algo que te fez parar e sorrir.  Você está bebendo dessa fonte cada vez que chega em casa, acende a luz e se sente satisfeito com sua parede. 
Você não voaria se alguém não amasse o conhecimento,  o desafio, se não amasse entender aerodinâmica, física, pássaros. Com certeza foi uma pesquisa apaixonada,  que absorveu uma vida inteira,  que te levou para dentro de uma aeronave e possibilitou que você observasse as nuvens de cima para baixo. O nome disso é amor.
Você não existiria se alguém,  romanticamente,  não se apaixonasse pela idéia de te abraçar,  te amparar, segurar em sua mãozinha e ser relevante para pelo menos uma pessoinha nesse mundo de meu Deus.
Mesmo quem quer apenas ganhar dinheiro precisa do conhecimento de inventores, cientistas, artistas, artesãos... Precisa beber na fonte disponibilizada pelos amantes da vida, dos cheiros e sensacoes, de pessoas que simplesmente adoram o que produzem, adoram os calos que tem e não conseguem parar de fazer o que fazem e o fariam ainda que não recebessem nada em troca. 
O amor está na raiz de tudo que é bom e belo. Cada música maravilhosa foi o produto desinteressado de uma alma encharcada de amor pelos sons e ritmos.
Mesmo na pior situação sempre existirá um rastro de amor que te sustenta. Num caminho árido e cinzento você poderá, mesmo cansado, encontrar um papel de bombom jogado no chão. Um papel amassado e colorido que te lembrará de beijos, de crianças em recreios,  festas, doceira. Essas lembranças delicadas te dirão novamente o quão caro você  é à vida.  Porque tudo foi feito pra você.  É por você que os sinos dobram.

5 de jun. de 2016

Não é pra entender


Ainda hoje, ainda agora, mesmo nessa idade sinto em mim coisas que não deveriam mais ser encontradas. Há coisas que sempre fui. Venha aqui e testemunhe. Fixe o olhar e me diga se vê o que vejo. Lá está. Testemunhe o que ficou lá dentro.
No telão das possibilidades...
"I don't want to miss a thing"
"Sweet Child O'Mine"
"Knocking on heavens's door"
Em algum lugar incerto, não sabido,
Me perdi, como quem se perde da própria mãe, do pai, do jardim, do jabuti, do canequinho de leite com a beira mordida, do casaquinho de mangas já curtas que não chegam nas mãozinhas geladas. Nunca mais me achei. Não sei onde ela está. Ela falhou. Como um aborto miserável e só volta raramente, quando não é chamada. Como as dores antigas. Enquanto ela canta e corre livre me embaraço nos cipós. Me confundo com os sons e nas coisas duras e espinhentas desse lugar.

20 de mar. de 2016

Brincadeira das sete horas


Deitei, fechei os olhos. Aquela preguiça das sete horas da noite. Aquela, antes de a gente resolver tomar banho, jantar, fazer umas coisas e finalmente dormir. Não vou dormir agora. São só sete horas!

Eu gostava de ficar assim, sozinha, parada, nessa hora mágica, desde quando ainda era pequena e ninguém que eu amava ainda havia morrido.

Fecho os olhos e trago para cá meu mundo imaginário. Nessa hora tenho muito poder de  "fazer de conta". É fácil. Basta ficar quietinha e se concentrar. Você comanda tudo com a mente e ela lhe leva para onde desejar e para a época que você quiser. Basta querer muito, mas muito mesmo. A saudade ajuda.

Faz-de-conta que sou criança. Sou pequena e estou deitada na cama dos meus pais. Não é hora de dormir. Ainda não jantei. Mamãe vai me chamar daqui a pouco. Tomei banho, estou perfumada e a cama dos meus pais tem um cheiro muito acolhedor. Adoro aquele lugar.

(Está funcionando!)

A luz do quarto está apagada mas a da sala está acesa e clareia parte do meu corpo. Sinto o cheiro gostoso da sopa que vem da cozinha. Sinto-me querida e segura e só vou abrir os olhos quando minha mãe me chamar. Quero que ela me chame, não quero levantar sem isso. Quero que se lembre de mim, que sintam minha falta, que mencionem meu nome. Meu vestidinho está limpo, minha calcinha é de algodão e a cama dos meus pais é tão cheirosa! Quero ficar aqui pra sempre. O quarto está em ordem e sinto o cheiro do chão recém encerado. Minha  boneca nova está guardada no armário, dentro ainda da caixa. Ela também tem um cheiro gostoso. Estou feliz demais com minha boneca nova. Amanhã vou brincar com ela. Sinto um aconchego dentro de mim, uma coisa gostosa me oprimindo o peito. Quase dói. Acho que é felicidade.

Meu pai saiu agora do banho. Ele entra no quarto com uma nuvem de aromas úmidos. O vapor da água quente chega a mim quase como um carinho, quase como um ser vivo e percebo o cheiro da loção que ele passou no rosto. Rio de mansinho porque ele pensa que estou dormindo. Não estou! Estou aqui sentindo a presença dele, achando-o maravilhoso com os olhos fechados mas com a mente aberta e alerta.  Reconheço-o, vejo-o enrolado na toalha sem precisar abrir os olhos. Ele me parece tão forte, tão grande! Seus cabelos escuros e cheios estão ainda ensopados. Ele está cansado mas feliz, faminto e em paz. O mundo lá fora não existe e ele me ama. Não abro os olhos mas sei que ele é o homem mais bonito do mundo. Sua voz está dentro de mim.

Continuo assim, deitada e vendo tudo. Ouço ele abrir a gaveta. Cai um talher na cozinha. Maurício diz alguma coisa para a mamãe. Minha mente passeia pela casa.

Chegou uma visita para estragar tudo. É uma mulher. Sei que minha mãe vai me chamar para cumprimentá-la mas eu não quero. Quero ficar aqui, assim, sentindo minha casa, adivinhando onde está cada pessoa, o que estão fazendo, percebendo-as, amando-as, tendo medo e me preocupando com elas. Sei que meu irmãozinho está quase dormindo e que minha irmã brinca com as bonecas.

Daqui a pouco vão me chamar. Daqui a pouco terei de beijar a visita. Daqui a pouco iremos jantar. Ele penteou os cabelos e respingou aqui em mim. Água geladinha.  As pessoas estão rindo na sala.  Acho que eles estão falando nas crianças - falando em nós! Acho que somos muito importantes.

Vou contar: um... dois... três... quatro...


Cristina Faraon

16 de mar. de 2016

Dois mundos



É mais ou menos como duas mulheres lindas em mesas opostas.

Sabem-se perfeitas mas nenhuma tem certeza de que seria a escolhida. Olham-se com curiosidade, comparam-se, invejam-se mas nunca se aproximam. Quase se amam mas se repelem.

Qual perfume ela usa? Ama? É feliz? Seria mais amada do que eu? Seu corpo é mais firme? Todas estas luzes, estes brilhos todos, são verdades que vem de dentro? Sorri deveras? Meu Deus, quanta delicadeza, quanta riqueza de detalhes, como é sedutora em suas múltiplas artes!

Quão mais atraentes me parecem essas luzes do que a naturalidade das minhas águas que jorram sem maquiagem, selvagemente! Minhas margens verdes e frias, meu barulho, meu cicio, o que seria mais desejável?

Eu represento a paz que todos procuram mas ela, a glamourosa, é a segurança, a vaidade que os homens inseguros tanto precisam ostentar. Todos a querem durante a semana. Todos lutam pelo seu brilho. Poderiam talvez matar por ela, por sua loirice refulgente mas minha paz é ardentemente desejada por noites e noites em sonhos confusos e inconfessáveis. Porque eu sou o que de mais primordial os homens precisam. Sou a mãe, a mulher nua que os quer sem terno e sem carro. Sou o desejo na terra, na água e no mato, sou tudo, o transe natural e sem insegurança; sou a completa aceitação, a plenitude. Sou tudo o que jamais deixariam de querer se não houvesse a civilização. Por isso voltam para mim como quem volta para si mesmo desesperadamente.

Mas a outra também olha do outro lado a mulher selvagem e, entre as suas jóias, pensa na exuberância daquela que precisa de tão pouco para ser amada. Daquela que com um simples canto os arranca de seus braços dourados com uma facilidade desconcertante. E eles vão hipnotizados, seguindo uma cantiga que ela mesma nem escuta. Aos finais de semana tudo o que eles querem é a paz, o sossego daqueles braços verdes. Impossível competir! Como ela é linda, meu Deus! Como é tão linda com tão pouco?  Mas terminado o final de semana, saciada, ela os devolve todos! Joga-os de volta para mim fazendo tão pouco caso... como se não me custasse tanto essas companhias.

Dois mundos... como duas mulheres em mesas opostas.

2 de fev. de 2016

Desespero e aflição


Há desespero nas águas quando saem dos esconderijos. São frias e assustadas, quase humanas. Dirigem-se à perdição, brancas e magérrimas, geladas como os condenado prestes à execução. Elas vem de um rio escondido, de ventre sofrido e arranhado por mil pedrinhas, revolvido por peixes estranhos, folhas órfãs, galhos e cabelos de moças que desistiram de viver. As águas, elas se jogam num momento de pura coragem e só são vencidas pelo medo quando já estão no ar e não há mais salvação.  Por um momento se desesperam mas depois se entregam, quebram-se,  desfazem-se em milhões de cacos redondos, gotículas de beleza preciosa. Pérolas brancas e fugazes.

Às vezes são leite espumante mas jamais champagne. Não conseguem. Abrem no ar um véu de gotículas, fina rede capaz de acolher um arco-íris inteiro.

Há desespero nas águas
Quase humanas em suas mágoas...

Gosto quando por instantes pairam no nada antes da queda final. Quando por fim despencam, suicidas, sua última visão são as pedras lá embaixo. Trêmulas. Horrorizadas. Parte do véu se desfaz . Há uma fuga envergonhada para as margens dos lagos. Desintegração e adeus.

Há então desespero nas pedras, aflitas, que não lhes pode socorrer. Quantas mortes apararam? Quantos olhos de vidro! Quantos cabelos e vapores brancos já alisaram suas cascas frias!

As pedras queriam ser parteiras mas só aparam o adeus.

Às vezes penso que toda beleza do mundo se despede o tempo todo e nunca chega a ser o que queria. Tudo são abortos sugados para o centro escuro do mundo.


29 de nov. de 2015

Moça

Não chore, moça bonita, que chorar não é esquecer. Chorar é congelar num ponto e deixar frio tudo o mais.

Chorar é olhar só para um lado. É pender, é mancar. Não esqueça da maciez da tua pele, dos teus cabelos cheirosos. Não esqueça do jasmim, do doce de leite, do leito de amor. Permita-se olhar a lua, ou o sol, ou as copas das árvores. Levante o queixo e procure qualquer passarinho que te distraia. Não contorças teu rosto, não estragues a obra de Deus.

Não chore, moça bonita, pois o mundo quer te ver passar, quer flertar contigo para se sentir importante. Cada passante espera ser salvo por um pouco de tua atenção e quer continuar considerando que ainda são possíveis visões assim, no meio do caos. Você é uma benção pra quem passa assim como uma flor qualquer, que não sabemos o nome mas ainda assim existe.

Uma flor não salva o mundo, mas pode salvar um coração.

Um dia envelhecerás mas tua beleza de hoje será um alento para a nossa memória. Tua imagem será resgatada em meio a muitas lembranças tristes, como uma linda foto perdida dentro do jornal. Não chore porque muitos ainda te amarão e crianças te beijarão o rosto com hálito de caramelo e vais rir demais, e amarás ser tia antes e depois de ser mãe.

Não chores, porque muitos precisam crer que ainda podem beijar tua boca.

Sem sonhos a vida é nada. E nada é. A vida não é mais que um sonho pesado adoçado pelas flores. Não chore, moça, porque a vida precisa ser bela e os anjos não estão mais entre nós.

17 de jun. de 2015

Pelas montanhas



Fico muito, muito emotiva quando ouço a trilha sonora do filme The Sound of Music. Esse filme me traz tantas recordações, tem para mim uma carga emocional tão grande que nunca se esvaiu. Incrivelmente por décadas não se desgastou.  Sempre o mesmo enternecimento, o mesmo calor de um abraço antigo e aquela emoção de ter o coração novamente despertado de um longo sono.  Como se alguém me trouxesse pela mão, de onde eu estivesse, para as minhas origens, para o meu eu mais simples e verdadeiro.   Sinto o mesmo deslumbramento com as canções, as mesmas lembranças - umas vívidas, outras não, mas tudo numa bruma só. E sinto vontade de chorar e choro quando não tem ninguém por perto.  Em minha garganta fica aquele resto de lágrima, aquela lágrima de criança que santifica quem chora como uma espécie de água benta.  Aflige, mas ainda assim sinto-me melhor. Sinto-me pequena, sinto-me Cristina, conectada a todos os que já amei um dia mas foram embora.

Talvez seja assim. talvez eu sinta assim para sempre, até o final da minha vida.  E quem sabe quando eu estiver livre e chegar lá do outro lado, posso até ser saudada com Climb Ev'ry Mountain  ou Something Good... ou The Sound of Music.

Um dia vou chegar no meu lugar, correr pelas colinas frescas, vou rir muito e pegar nas mãos das pessoas. Vou encontrar todo mundo de quem já me despedi e nunca mais vou precisar dizer adeus. Vou ser acolhida de novo do jeito que meu coração precisa e dar todos os abraços que não dei. Meus joelhos não vão doer, não vou mais sentir frio ou calor e o vento mais forte vai nos levantar um pouco do chão. Vai ser assim.  A natureza se tornará carinhosa para sempre e nunca mais eu terei timidez em dizer "te amo". E vou rir muito e deixar pra lá todas as lembranças ruins.

Fico tão emotiva! Era para eu me sentir uma tola mas disso não me envergonho. Não quero me livrar dessa fragilidade.  Quero chorar todas as vezes que meu coração precisar de desafogo. Quero conservar intacto esse pedaço da minha alma porque é a parte mais pura e original do meu eu. É o cordão umbilical que me liga aos meus ancestrais. É a minha essência não tocada pelo pecado. É o que vai afinal sobreviver.

11 de jun. de 2015

Fugitivos


Sabe uma coisa que cansou?  Datas festivas que nos lançam em um mar de obrigações. Nada contra as comemorações em si.  Gosto de festa e dou tudo para estar com a família e os amigos. Mas da feita que isso vira um peso, alguma coisa tem que mudar.

Eu te proponho:

Aceito sugestões para darmos nome a esse movimento. Pode ser "The day after" ou "Movimento do Outro Dia" ou "Fugitivos".  Funciona assim: a gente se insurge contra a data padrão.  Damos um chute nas correrias, preços abusivos, restaurantes lotados e cozinheiras indisponíveis. Mandamos tudo para as cucuias e combinamos com a família: de hoje em diante todas as datas comemorativas serão celebradas um dia antes. Ou um dia depois, sei lá.

Cada dia mais me convenço de que a maior parte dos nossos sofrimentos sociais poderiam ser neutralizados se fôssemos minimamente  rebeldes contra o sistema.

Natal. Essa data não deveria significar "calvário".  "Vou dar uma passada na casa da minha mãe depois na casa da minha sogra depois na casa da minha tia!... Ufa! Depois eu passo aí."

Meu Deus pra quê isso?  Todo mundo está careca de saber que Jesus não nasceu no dia 25 de dezembro, então porque não podemos fazer uma ceia em paz, com todo mundo tranquilo e feliz no dia 20 ou 23 ou 28? Porque tem que ser naquela data fatídica onde já existem cinco festas que você não pode faltar? Por que uma pessoa tem que passar o dia na cozinha preparando um jantar para convidados que já vem de duas festas cansados e com o estômago lotado?

Vamos repensar tudo! Por que Dia de Natal? Por que não Semana Natalina onde a ceia e o Amigo Invisível possam executados - no bom sentido - com tranquilidade?

- "Ah, mas se não for no dia não tem graça!"  Não tem por que? Quem disse isso? Não tem graça é ser do jeito que está sendo! A graça é a gente que faz; depende de costume e convencimento. Tudo é condicionamento e se for para o bem geral, por que não?

E Dia das Mães com restaurante lotado, fila e preços 30% mais caros? O que te obriga a isso? Por que não marcamos uma simpática homenagem para a nossa mamãe no dia anterior, com calma e em paz? Um dia com a sua mãe, outro dia com a minha. Pronto!

Dia dos Namorados: meu Deus, que suplício! Não existe restaurante viável.  Nem bar nem lanchonete nem carrinho de cachorro quente. Tudo lotado. Fila pra motel - haja viagra! Quem consegue transar sabendo que tem uma fila de cinco carros atrás de si xingando e amaldiçoando o seu desempenho? Por que se deixar subjugar por uma ditadura tão sem sentido? Que tal restaurantes mais tranquilos e românticos, cidade calma e atendimento mais atencioso?  No "Dia dos Namorados" propriamente dito vocês podem simplesmente colocar o pijama e ver um filme romântico agarradinhos com a cama cheia de pipocas.

Nunca mais esqueço daquele ano em que resolvi o seguinte: não vou fazer ceia dia 24. Cada um vá para onde quiser.  Nossa confraternização familiar será o almoço do dia 25. Foi um alívio pra todo mundo e uma alegria pra mim. Cada um foi ver a avó, a mãe, a sogra, a tia da amiga da prima, e finalmente no dia seguinte pudemos estar todos juntos. Sério: foi um dos dias mais felizes da minha vida porque todos puderam comparecer sem desespero.

Pois essa é a minha proposta. De hoje em diante, que tal darmos a nós mesmos e aos nossos parentes um NATAL REALMENTE DE PAZ?

Ou será que você é tão escravo do sistema que não pode cogitar nem nessa pequena rebeldia?



REALIDADES BRASILEIRAS