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11 de fev. de 2019

Boechat e "o grande evento"

Morre Boechat.

Ontem, um homem famoso, um "coroa" bonito e bem conceituado. Hoje, um ilustre defunto. Um pedaço de carne totalmente sujeito às decisões dos outros. Sobras  carbonizadas que não se governam.

Claro que ele não era só isso. E o homem de verdade, cadê? Não sei. Subsiste. Certamente subsiste e isso é misterioso e fascinante.

Hoje eu vejo esse teclado e o uso. Vejo as pessoas e as toco.  Pensando nisso me vem a agradável impressão de que meu poder de influência nesse mundo é muito maior do que costumo supor.  Sou matéria atuante, posso impor minha presença, fazer-me notar de alguma forma. Posso denunciar, animar, cantar uma música.  Faço parte desse sistema, desse conjunto esquisito de seres vivos.   Sinto-me acolhida por essa ideia.

Se por aqui eu ficasse depois de morta será que olharia para esse mesmo teclado de forma diferente? Sim. Quem sabe com uma certa aflição por não poder mais usá-lo.  E eu olharia essa mesma poltrona sem sentir mais sua textura e só nesse momento começaria a perceber a brutal mudança pela qual finalmente passei.  O teclado, a poltrona e tudo o mais: nada mais me pertencia, nem meu pobre corpo alquebrado.  "Fui despojada. Completamente despojada como nunca pensei ser possível. Não sinto mais, não faço parte, não integro mais o planeta. Essa etapa da minha existência acabou".

Como seria não sentir mais nada? Não, não existe "não sentir mais nada" mas deve haver um "sentir" diferente do que conheço agora.   Talvez meus dedos passariam através da matéria sem poder tocá-la, como nos filmes de fantasmas, e isso não seria muito divertido. Isso não é brincadeira . É o extremo da impotência .

Eu sentiria uma espécie de saudade?  As coisas fora do lugar me incomodariam quando estivessem fora do alcance do meu toque? De repente o ato de lavar um copo, virar uma chave, catar um lixo, dar uma moeda, repartir um lanche, se tornariam tão grandes! Eu descobriria, chocada, que esses atos sempre foram grandes mas eu havia passado a vida toda sem me dar conta disso.  Então eu iria embora desse mundo por não poder suportar a ideia de só olhar sem poder fazer nada.

Talvez me passasse pela cabeça que "eu daria tudo o que tenho para voltar a ter domínio sobre todas as banalidades que agora me fogem" mas em seguida eu lembraria, quase rindo, que não tenho mais nada para dar em troca. Então a morte, que sempre me pareceu a libertação, poderia por um instante parecer uma eterna prisão atrás do vidro. Por isso os mortos vão embora: para não terem que se estressar com a recém descoberta impotência. Aí vão embora, meio amuados,  para poderem voltar a "ser gente" em outro lugar, já que aqui não dá mais.

Fantasias. A morte gera mais fantasias do que o sexo. Muito mais.

Impossível separar a mente de todas as fantasias que envolvem "o grande evento".

Um dia tudo o que sou não vai passar de uns quilos de carne deteriorando dentro de uma caixa de madeira. E tudo o que realmente importa de mim estará absolutamente fora do alcance de vocês.

Foi-se Boechat. Um dia também vou.  É sábio lembrar disso.

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