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20 de set. de 2019

A morte

Penso muito na morte. Não com medo, mas com uma curiosidade invencível. Pareço uma criança olhando a porta do armário trancada, sem saber o que tem dentro. Ninguém lhe  diz o que realmente tem lá dentro.  E olha... sabendo que não pode abrir a porta impunemente.

Admita: a morte é um tema fascinante. Ok, pode ser assustador também, mas continua fascinante. Detalhe: "fascinante" não é sinônimo de bonito. Nem de feito.  

Pra  vocês verem o nível: estou seguindo um canal no Youtube  que traz diversas entrevistas com pessoas que viveram a instigante experiência da "quase morte". Que coisa!

Mas juro que não sou amante de caveiras, sangue escorrendo, punhais ou outros símbolos do Halloween.  Estou mais para a riponga colorida do que para o gótico.

Às vezes penso na morte pela esperança cristã da glória eterna mas em outras apenas me abismo com o fato de que mais cedo ou mais tarde não farei mais parte do mundo dos vivos. Quando penso nisso me ataca um sentimento de urgência. Hoje posso mover o copo em cima da mesa, mas um dia não poderei mais. Então mova logo o copo! Mova tudo! Faça o que tem que ser feito  porque o mundo ainda é seu mas amanhã todas as leis da física ignorarão você.

Um dia terei que me despedir. Aí perderei completamente a relevância que eu penso que tenho hoje. Hoje posso dar um sanduiche para aquele mendigo. Amanhã terei que me conformar em vê-lo morrer de fome e "passar pro meu lado".

Os objetos que me são tão caros serão pulverizados entre parentes e doações. Todos os meus rastros sumirão de forma inclemente. Outros usarão minhas joias, minhas  roupas, lerão minhas anotações, olharão constrangidos a minha nudez gelada e se apressarão em cobrir-me com uma roupa qualquer. Um dia todo esse mundo que me abriga, lindo e confuso, me expelirá de si mesmo como um furúnculo. E o meu corpo, que tanto lavo e perfumo, se desfará horrivelmente.  Como não pensar nisso?

Morre um amigo, morre um parente... Vai chegar a minha vez. Vai ser estranho. Estou tão acostumada com a vida e suas manhas! O mundo material me é tão familiar!

Há pessoas por demais apegadas à vida. Acho que é por isso que alguns tem que morrer aos poucos, sofrendo, refletindo, cansando... Para ir aceitando a ideia até que por fim chegue a pedir pra ir logo pelo amor de Deus. Outros não. Alguns partem no supetão, arrebatados por acontecimentos súbitos. Acho que esses são os que jamais entregariam os pontos, então vão ter que ir na marra, pra não ficar argumentando demais.

A morte é o mistério dos mistérios.  Mesmo crendo profundamente nas palavras de Cristo, convenhamos: ele não nos deu todos os detalhes.  Dói muito? Dá frio na barriga? Dá um susto ou um sono? Quanto tempo leva para a gente entender que finalmente lascou e não tem mais jeito?  Dá pra dar uma olhada ao redor antes de pegar o bonde pro além? A pessoa vai sozinha, puxada por um ímã cósmico ou virão guias gentis para dar uma força?   Vai todo mundo pelado ou vestiremos roupas imaginárias, como em Matrix?

Não, nada disso foi esclarecido. Isso me dá o direito de criar minhas próprias teorias a respeito.   Podemos um dia conversar alegremente sobre o assunto.

Enquanto isso continuo firme, assistindo a morte passar aqui e acolá sem demonstrar ainda muito interesse pela minha pessoa. Eu fico na minha. Sou curiosa mas não quero amizade com essa senhora. Ela anda à volta, pega um, pega outro... Segue flutuante pelos bairros da cidade fingindo que não me viu. Vai sem pressa mas sem detença, cheia de véus. Vai, mas volta.

2 de set. de 2019

Mais frio!


Precisava que a tarde morna
Transmudasse em tarde fria
Pra então justificar
Essa irmã melancolia.

Como eu, está chovendo
Só falta o dia esfriar
Mais um pouco e você chega
Saberei o que falar?

Artrose nas velhas janelas
Estéreis riachos sem peixes
E prédios com mil sentinelas
Cuidando que não me deixes

Poucas cores nas sombrinhas
Pouco tempo pra almoçar
Meu vestido sem florinhas
E um rádio a cochichar

A tarde parece gripada
Encharcada e reticente
Chove grosso, chove fino
E chovem sentenças na gente

Deveria esfriar mais
E nevar a não poder
E sumirem os transeuntes
Até tudo esmaecer

Meu rosto agora sombrio
Riria então pra neblina
Irmanado com o frio

Um véu de camada fina.
Meu corpo seria de inverno
Petulante e transparente
Riacho gelado no ermo
Frio, nu e displicente.

Mas falta chover bem pesado

Com mais frio, até doer
Até que o mundo em meus braços
Eu sentisse esmaecer.

Cristina Faraon

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