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23 de dez. de 2020

Viver

É difícil convencer pessoas cheias de vida de que elas não podem viver. Devem se enterrar em vida  para poder viver um pouco mais.  Viver MAL um pouco mais. 

Enterrar-se em vida por um tempo, tudo bem.  Ainda vai. É tática de sobrevivência.    Mas viver assim por tempo indeterminado!?  Complicado.  

O ser humano se arrisca desde que o mundo é mundo.  Em guerras,  em caçadas,  em viagens pelo mar em embarcações toscas,  usando drogas,  em esportes radicais,  indo para um baile e voltando de madrugada... Nossas vidas estão por um fio desde sempre.  Isso já está escrito e carimbado em nosso genes.  O mundo SEMPRE FOI UM LUGAR PERIGOSO. 

A vida é frágil mas IRRESISTÍVEL.  O encanto pela vida extrapola o medo.
Viver é correr riscos. 

Nem sempre o medo da morte consegue convencer homens livres a viverem como toupeiras.

A liberdade é um vício.

9 de dez. de 2020

LAMPEJOS e considerações *

Às vezes pensando em Deus percebo em mim uns lampejos de compreensão. Lampejos. Mas tão rapidamente quanto a luz veio, ela vai. Como um flash, um raio, e tudo fica escuro e confuso de novo. Então me sinto incapaz de explicar o que há pouco parecia ter entendido tão perfeitamente. Mas isso não me frustra nem entristece. O que fica é o prazer de constatar que tudo tem uma explicação sim! Uma explicação muito reta e coerente e que um dia não me escapará mais. 

 Acho que morrer é assim: a luz brilha e tudo passa a ser compreendido de uma vez só. Como se acendessem todas as luzes do casarão ao mesmo tempo. Só que na morte o flash não apaga. Ele continua para sempre. O gozo do conhecimento é maior do que todos os gozos da vida. Depois, a paz. 

Tento manter o instante de iluminação através da escrita mas não funciona muito. A luz da lembrança não é tão clara quanto a luz da revelação, que por sua vez não é nada duradoura. 

Hoje vejo que os fracos precisam dos fortes e os fortes precisam dos fracos. Existe uma harmonia perfeita entre os menos capazes e os mais capazes, de tal forma que nem sei se fraqueza é mesmo fraqueza ou se força é mesmo força.  Não há sentido em viver se ninguém precisa de você. A maior angústia é a inutilidade.  É ela que dobra os velhos e lhes tira a alegria de viver.  O sujeito sem causa dá voltas em torno de si mesmo  e se perde num triste labirinto. 

É um ato de caridade divina que os mais aptos possam conviver com os menos aptos. Só assim os dois encontram sentido para a vida.  Através do socorro mútuo as pessoas passam a confiar no amor, na amizade, no bem sem interesse, na generosidade sincera. E acreditar nessas coisas é que nos traz esperança em tempos difíceis. Acreditar nisso pode ser a diferença entre a vida e a morte. Note então que praticar o bem é plantar vida para nós mesmos.  

O fraco e o forte...  A felicidade não existiria sem esses dois lados da moeda. É absolutamente necessário que o rico encontre o pobre, que o inteligente encontre o tolo, que o feio encontre o bonito, que o alegre encontre o triste. É nos encontros que todos se salvam. A vida na terra não teria sido preservada se não fosse assim. Nenhum ser inteligente suportaria o peso do vazio existencial, da inutilidade, da solidão. O peso de não fazer amigos - pois amigos se faz com atos de generosidade também. Eu preciso muito de quem precisa de mim. Eles não são um estorvo, mas a minha salvação.

O inferno começa quando as pessoas não se misturam. O isolamento leva as pessoas a desconhecerem por completo o motivo de estarem no mundo.  Quando cumprimos nossa função todas as dúvidas filosóficas perdem seu interesse. As perguntas mais profundas da nossa existência existem para se resolverem por si mesmas, no chão da vida. Elas se diluem sozinhas quando postas em ambiente próprio. A resposta para todas as dúvidas é a luz. Elas nascem no escuro e derretem frente à luz.  No exercício intelectual solitário nenhuma resposta é satisfatória. É como caminhar em círculos.  A melhor resposta  é aquele momento no qual a pergunta deixa de ter importância. Derreteu. 

Outra coisa que aprendi foi sobre essa coisa de  "salvar a alma". Ninguém tem seu espírito salvo antes de ter sua alma salva. Salvar a alma é salvar o emocional da perversão, dos vícios do pensar, das doenças emocionais, das taras, dos traumas, medos, covardias, egoísmos. Salvar a alma é como salvar do fogo o projeto original de uma casa.   "Salvar a alma" não é construir uma casa em um dia, depois da morte. É construi-la aos poucos ao longo da existência.

Fazer o bem salva a alma. É o que preserva a nossa humanidade, aquilo que somos de verdade. Quem faz o mal se dilui no mal. Perde suas características originais. O mal é altamente corrosivo: esburaca, empena, encarde, resseca.   Possivelmente é por isso que só Deus tem o direito de tirar a vida das pessoas porque só ele consegue fazer isso sem se sujar ou diminuir.  Ele é imutável.   Não digo que o criminoso não mereça morrer. Merece pena de morte sim. Teoricamente sou a favor, mas ...  quando penso na prática da coisa sempre pergunto se eu aceitaria a missão de matar.  A resposta é "eu não!  Que outro faça isso!"  Por que eu não posso me perder mas meu irmão pode?  Por que eu posso preservar minha alma e o outro não? Alguém teria que sujar as mãos e se embrutecer. "Ah, eu não!"    Se não eu, então quem?   Quem seria o desgraçado condenado a se perder de si mesmo, se amesquinhar e ressecar por dentro? Quem seria o desafortunado, condenado a despedir-se de si mesmo a cada execução?   Não, ninguém poderia matar o criminoso sem se tornar menor, mais torto, mais doente da alma.  Todo verdugo, com o tempo, seria igualmente digno de morte porque matar avilta.

Agora entendo que fazer o bem até a quem nos faz mal não é um mandamento piegas. Não é um mandamento cuja finalidade seja preservar o outro. É um mandamento que guarda o próprio praticante e o protege da oxidação livrando-o de virar "outra coisa". Sendo assim, tanto faz se minha boa ação foi aproveitada ou reconhecida. Isso nem faz diferença. Enquanto o mal é corrosivo, o bem é um poderoso conservante. Precisamos nos conservar porque ninguém é feliz se estiver descaracterizado, sendo outra coisa que não ele mesmo. A autenticidade é a única beleza verdadeira, Eu preciso fazer o bem porque isso preserva a minha alma, isso me salva, isso não deixa eu me perder. 

O mal se acumula imperceptivelmente como placas bacterianas. Não percebemos, não sentimos que estamos nos metamorfoseando. O bem , ao contrário, acho que não nos transforma: ele nos conserva, nos protege das mudanças.

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