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24 de nov. de 2008

Cigana


Olho em seus olhos e vejo tudo, ainda que eles fujam de mim, perturbados.

Houve uma pessoa em sua vida que jamais foi esquecida e dói muito não saber onde ela está. Tomara que esteja feliz... mas se não estiver, pensará em você?

Pensará em você com a mesma melancolia, com a mesma dor da perda, com esse choro estéril, essa dor seca?

Será que você salta em seus pensamentos durante o dia em inesperados flashes e, assim como você, em um segundo ela vai para um passado do qual retorna desconsolada?

É isso o que te consome quando precisas parar. Eu sei, eu vejo.

Às vezes você pensa que não aconteceu; - "Nada aconteceu!" E tenta misturar tudo às confusões de um passado desarrumado. Nem sempre funciona. Ela existiu sim, com todos os detalhes, todos os suores, todas as ansiedades, todas as fibras, vozes e demoras que tornam uma história real.

Essa pessoa existiu indiscutivelmente e você lembra dela quando chove muito e não há nada a fazera não ser esperar a chuva passar. Lembra também quando o dia está acabando e o mundo parece cansado, cansado. O céu se contorce em alaranjados sem fim e tudo o que lhe resta é voltar para casa.

Você amou, era recíproco mas escapou-lhe das mãos. Nenhum detalhe explica o inexplicável. Fica uma esperança de retomar, de juntar cacos, de voltar ao não-sei-onde onde o elo se quebrou.

Sei sobre você. Sei da sua esperança tímida que não se anuncia nem bate no peito, mas espera e espera como criança teimosa que não acredita que a mãe morreu e abre os olhos de madrugada esperando até de novo ser engolida pelo manto do sono. É uma coisa só sua lá no fundo do coração. Ninguém sabe, nem seu filho mais querido.

Talvez essa pessoa esteja lhe esperando no mesmo silêncio, na mesma esquina enevoada das suas memórias mútuas. Talvez espere alguém sem rugas, sem filhos, sem vinte anos de financiamento a pagar. Alguém jovem, do passado. Talvez esse alguém não seja mais você.

Cristina Faraon

22 de nov. de 2008

Peliculóide


(Leia o comentário)

Sábado a tarde


Estou em casa sábado a tarde cumprindo a promessa que fiz a mim mesma de não sair nem por decreto, nem se minha tapera pegasse fogo.

São 17:50 e até agora, promessa cumprida: estou enclausurada e a casa está pegando fogo. Calor insuportável, o inferno em vida.

Fiquei para descansar da semana cansativa de mil compromissos, coisinhas e coisonas para resolver. Agora questiono minha decisão. Deveria ter ido para o clube em trajes mínimos. Ou ido ao shopping, geladinho, tomar sorvete e estourar o cartão. Mas não, fiquei aqui toda preguenta de suor. E tem mais: a prisão voluntária em regime domiciliar acabou por me levar a abusar novamente do tempo em frente ao computador. Tô pra pegar nojo dessa maquininha. Estou usando óculos e a culpa é dela!

Poucas coisas me deixam mais estressada do que calor, suor escorrendo, abafado. Sob essas condições eu saio do sério, me descontrolo; tanto posso matar quanto confessar o pior crime.

Essa foto aí é refrescante por si só. Postei só pra aliviar mas acho que depois vou trocar. Ela refresca mas dá falta de ar...

17 de nov. de 2008

Ondas concêntricas


Acabei de ver um filme: "O Vidente". Bom.

O que gostei mesmo foi de uma frase especial que é dita tanto no inicio quanto no final da história. Algo assim:

"O lance do futuro é que toda vez que você olha pra ele, ele muda - porque você olhou para ele. Olhar altera tudo."

Instigante.

Por isso não podemos olhar o futuro. Talvez até pudéssemos, mas ele não se deixa observar longamente, só em relances, borrões indiscerníveis quando muito. Porque direcionar-lhe o olhar é o mesmo que matá-lo. Isso é a coisa mais lógica e redonda deste mundo.

Para não matar o futuro deveríamos olhá-lo do lado de fora, não do lado de dentro onde estamos, onde as coisas acontecem. Quem olha o futuro não pode estar dentro do tempo sob pena de dissolver o observado.

Não adianta: por mais imóveis que tentemos ficar, ao nosso redor formam-se ondas concêntricas totalmente fora do nosso controle. Como a pedra no lago.

Impossível jogar uma pedra no lago e observá-la afundar em um movimento solitário. Nunca um movimento é solitário. A água não fica imóvel, mas engole a pedra entre convulsões irreprimíveis. Círcuros ondulantes se formarão a partir dali denunciando a origem da irregularidade. Espalhar-se-ão, mudarão o posicionamento das folhas nas margens, o trajeto dos peixes, o reflexo da lua, tudo! Muda tudo.

... Círculos formando pequenas ondas que alterarão bilhões de pequenos fatos desnorteando-os... e o futuro esvaecerá irremediavelmente como se nunca tivesse existido.

Nossos olhos assassinos são o centro, o "buraco" na água onde cai a pedra da verdade. Assim como no lago, olhar o futuro é jogar uma pedra no lago do presente.

É meio triste saber que nosso olhar é cáustico, destrutivo, alterador, que ele faz com que o que será deixe de sê-lo antes de ter sido.

É a pior das mortes. Nós nos transformamos em lembrança mas ele - o futuro - quando morre vira apenas ilusão. Porque o futuro que não acontece é o que? É um delírio, uma idéia vaga, é quase nada.

Fora do tempo não há círculos. Quando você sair do tempo poderá olhar tranquilamente o futuro. Só que aí ele também deixará de ser futuro para ser, teimosamente, um eterno presente.

Cristina Faraon

11 de nov. de 2008

Bolha de felicidade


Cansados, cansados. Tiramos oitocentas fotos, transamos no hotel depois do cochilo e saímos pelas redondezas. encontramos poetas de bigode, poetas de violão, poetas encaracolados, enamorados, bêbados, jovens e velhos. Estranho... Pra todo canto que olho... todo mundo é poeta!
Eu hein!
Um brinde a isso!
Chope gelado, frituras irresponsáveis, o corpo amolecendo gostoso. Cheiros, cheiros diversos: de farofa, tapioquinha, churrasquinho de gato, batatinha, pipoca, do látex dos balões das crianças, da vala, da tinta da nossa camisa recém comprada.
De tanto andar o sapato dói. A gente tira, joga longe mas depois vai buscar, morrendo de rir. Aí aproveita e ri dos velhos, dos jovens, do gato pirento, da criança chorona. Melhor sentar um pouco.
Mesa do bar na rua, é claro, e violão aveludado. Entremeamos silêncios tranquilos com impulsos falantes. Imaginamos ganhar na loteria, imaginamos perder tudo, sair do país, ficar por aqui e virar pescadores... Imaginamos situações incríveis quando olhamos para o céu ou para a rua.
Mais tarde vamos dormir agarradinhos. Todas as nossas falas vão se misturar em nossa cabeça e vão gerar os sonhos mais malucos do mundo.
Adoro sonhos malucos, desses que a gente conta e as pessoas nos olham pensando "credo, que cabeça!"
Sonhos malucos vão bem no barzinho, vão bem em roupas de algodão, vão bem na praia. Só deveríamos sonhar maluquices porque nem sempre podemos vive-las. Sonhar que morri e vivi de novo, que montei em um tubarão, viajei em um avião inflável, que comia melado com feijão, que riscava o carro do vizinho, que todo mundo ria da gente, que a roupa se dissolveu em público, que viramos cangurus saltitantes, que nossa casa era molenga e a chave era de biscoito...
Assim, passeando com o cabelo ressecado do sol, a barriga cheia de tanta besteira, o tempo não passa nem deixa de passar. Não vai nem fica.
O tempo passa quando temos pressa e deixa de passar sei lá quando. Mas quando se ama e se está feliz, feliz ao ponto da irresponsabilidade, sem segunda-feira pra encarar, aí o tempo não passa nem pára. Ele é simplesmente é jogado fora, de-fe-nes-tra-do.
Quero tudo isso, mas com o sentimento que essa foto inspira, esse ar de coisa boa, comida mineira, cuzcuz baiano, caipirinha.
Saudade das noites mornas de beira de praia. Saldade das saias longas nas noites mornas de beira de praia. Saudade de mim ontem, com uma pequena bolha no pé, uma bolha de tão feliz. Sabe como? Dessas que aliviam mansamente no geladinho do mar.
Cristina Faraon

5 de nov. de 2008

Morrer de amor



Tava pensando...

Em meus passos pelo mundo ainda não encontrei nenhum "africano" com o estômago inchado e perninhas finas. Estranho, pois sei que eles existem. Não ouço crianças chorando de fome. Nenhuma pe apareceu suplicante, puxando a barra de minha saia pedindo um pedaço de pão. O máximo que vejo pela rua são uns pedintes (quase "exigintes") que me despertam mais receio do que simpatia.

Jamais dou de cara com essas pessoas realmente carentes. Nossos caminhos não se cruzam. Não há acaso que nos ajude. Estamos separadas por uma espécie de arame farpado social. Farpado e eletrificado.

Esses dias decidi: chega de ouvir falar. Quero ver com os meus olhos, não com os olhos dos outros. Não através de um vidro. Quero sentir, quero acordar, quero desmilinguir de amor.

Do sentimentalismo aos atos, um grande abismo.

Ao expressar a descabida intenção de "ir lá" ao vivo e a cores fui veementemente advertida. Há perigos incontáveis espreitando nessas localidades mais carentes. "Loucura, Cristina! É loucura!"

Existe uma mulher com filhos sofridos em algum lugar.Existe um pai desempregado, crianças cariadas, pés sujos. Como chegar neles?

Quando penso nisso parece-me que moram em outro planeta. Preciso de menos poesia e mais determinação. Preciso não me achar tão importante, mas minha família me acha importante. Meus amigos também. "Não vá, não invente! Não se meta, deixa de onda! Quer morrer? Pense bem."

Eles, os ultracarentes, tem as necessidades deles, mas também tenho as minhas. Preciso ser eletrificada por um amor desmedido, "um amor maior que eu". Mas como amar desmedidamente quem só existe na conversa dos outros e nas fotos?

Eu queria ver para sentir, para acionar o Alguém Melhor que deve existir (em algum lugar!) dentro de mim. Queria descobrir com o meu próprio coração que não preciso de tantos sapatos, que meus amigos podem ficar sem presentes de aniversário, que já tenho batons suficientes, que posso comer em casa, que não vou morrer se meu sofá não for trocado. Já sei de tudo isso, claro, mas quero que meu coração me diga. Ou quero ouvir isso pelos olhos da menina grávida.

Queria descobrir a minha melhor parte mas entendi que fazer o bem com as próprias mãos pode ser uma aventura de uma mente delirante. É como ser voluntário de guerra: quase uma burrice.

Enfiar-me pelas ruelas entrelaçadas do mundo é hoje meu desafio mas eu teria que fazer isso escondido.

Eu faria isso escondido? Convido alguém para ir comigo? Vou sozinha? Visto-me de freira? Ainda respeitam freiras? É burrice? "É o amor que mexe com minha cabeça e me deixa assim"? É doidice? É uma fase?

Para os muito "oculpados" há sempre a opção pré-fabricada de cooperar com uma instituição de caridade. Ajuda mas ... amar é muito mais do que isso e eu acabei de dizer que "quero um amor maior que eu".

Amar é olhar nos olhos. Dar dinheiro que passa de mão em mão e nem sei se chega lá, não me torna uma pessoa melhor nem mais humana. Serve para amenizar minha consciência, fazer com que eu me sinta bem sem precisar saber nem o nome do assistido. Dar dinheiro para instituições faz algum bem aos carentes, é verdade. Algum bem, mas não "o bem". É melhor do que nada mas não tem o mesmo valor que oferecer amizade, carinho, um ombro amigo, o meu endereço.

Sei lá... a proposta de Cristo é muito mais radical do que "isso aí". E não me sai da cabeça a proposta de Cristo. Ele disse para amarmos o próximo. Se não me aproximo do próximo ele jamais será meu próximo e eu jamais o amarei.

Jesus propôs envolvimento e isso é tudo o que não queremos. Queremos dar dinheiro. Claro, sai mais em conta, não suja as mãos nem a gola da camisa e não se perde o horário do cinema.

Confesso: não amo fotos de crianças magras nem mutiladas. O que sinto é apenas uma agonia, um grande mal estar quando vejo. Isso não é amor.

O que quero? Quero pirar, é isso. Quero sentir medo na primeira vez - só da primeira vez. Depois ser tomada pela ousadia dos apaixonados na loucura do não medir.

Eu amaria se pudesse chegar perto.
Eu quero chegar perto.
Eu quero chegar perto?
Sabe, o que eu queria mesmo era morrer de amor.

Cristina Faraon

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