.

.
Mostrando postagens com marcador Memórias. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador Memórias. Mostrar todas as postagens

21 de mai. de 2025

"Botton"

Agora entendo os velhos. As pessoas criticam dizendo que precisamos de novos sonhos,  novos planos e alvos. É esse o conselho: fazer de conta que a vida não está se esvaindo e que ainda temos muita coisa pela frente. 

Creio que sempre fui - no passado - uma pessoa cheia de vida. Era algo bem real, que exalava. Era isso, não propriamente beleza, que me tornava uma pessoa interessante.  Então eu concordava com quem aconselhava os velhos a se animarem. O que eles não sabiam, e  agora sei, é que se animar cansa e nem sempre dá frutos. É um fenômeno interior  empapado de expectativas e a maioria das expectativas são pneus furados: não vão muito longe. 

Os velhos não querem mais vibrar nada, querem apenas que não lhes encham o saco.

Até uns 15 anos atrás eu ainda cultivava a ideia de que uns fatos animados poderiam me sobrevir.  Coisas poderiam acontecer. Eu então poderia plantar coisas para coisas acontecerem.   Com esse pouco de matéria-prima eu ainda consegui ir levando por mais um tempo. Toda expectativa alegre joga uma baforada de juventude na cara da gente. De fato algumas coisas legais aconteceram. Só não me disseram que elas eram "a rapa do tacho". 

O tempo está escoando como areia em uma ampulheta arrombada. Não dá mais tempo de nada e como eu não quero mais nada mesmo, está tudo bem. O trem já está em movimento. É seguir viagem com o que  tenho em mãos e seja o que Deus quiser.

Não acho que esse texto seja triste. Não estou triste por isso mas pelos grupos animados de amigos, que viraram pó. Não os amigos que viraram, pó mas os grupos. Entenda. 


Ah, os amigos...  Flutuávamos por perto uns dos outros como um sorridente sistema solar.  Parecia haver uma lei da gravidade que nos mantinha assim.  Ninguém nunca ia longe demais, ninguém nunca ia para sempre. Depois de uma temporada circundando o sol o retorno era garantido.  

Bem, não somos astros e não há nenhuma gravidade que nos grude para sempre uns aos outros. Nosso sisteminha solar - coitado - é frágil como um ajuntamento de bolhas de sabão.  Um simples sopro e vai cada um para um lado.   

Depois de uma temporada visitando o sol alguns corpos celestes simplesmente não voltam mais.  São capturados, talvez, e vão integrar outras orbitas - tchau e bênção.   

Eis que os amigos evaporam como gelo no asfalto. De fato amizade não é para sempre.  É bonito dizer que é, mas não é. Culpa de ninguém. Gelo no asfalto.  

Aí vem o lance da solidão. Mas calma, ela não chega cedo. Ela demora e se anuncia com muita antecedência. A solidão é aquela hóspede que nem chegou, mas já começou a incomodar. Começa desde quando você percebe que, aos poucos, os seus amigos vão abandonando a ciranda, um a um. "Vou ali fazer xixi e já volto" - mas não volta. É aí que você começa a entender o que vai acontecer.   Sim, ela demora a chegar, mas já te chateia bem antes.

Então saiba que essa cobrança otimista de "olhe para o futuro" não cola mais. Tudo agora se resume a uma despedida arrastada.   É o momento em que a vida se assemelha a uma "dança de rato", que dá voltas e mais voltas pra no fim acabar indo mesmo para o brejo. 

No momento está caindo uma chuva espalhafatosa lá fora. Lembro do tempo em que eu adorava pular na chuva. É uma das sensações mais maravilhosas do mundo! Não entendo por quê cargas d'água a gente para de pular na chuva!

Bem, ainda olhando para trás eu posso já afirmar que tive uma vida muito boa. Agradeço aos envolvidos.   Milhares de coisas lindas aconteceram. Tudo bem, várias outras, ruins, também aconteceram  mas elas fizeram o favor de "desacontecer", então fiquei no lucro.  Posso classificar minha passagem no planeta como BEM SUCEDIDA.  


Quanto ao mais, o melhor da pior idade é poder dizer o seguinte em relação a todos os convites e a todas as sugestões:  não sou obrigada

Vou criar um "botton" com isso.

30 de dez. de 2024

Meu Instagram

 Dei uma revisitada nas postagens mais antigas do meu Instagram. Recomendo que você faça o mesmo e observe a sutil mudança pela qual passou ao longo dos anos.  Pode ser melancólico, pode ser engraçado. Certamente será interessante.

Notei que em um primeiro momento, sem entender muito qual a finalidade do Instagram, eu postava algumas coisas muito bobas, dando conta do meu dia-a-dia (hoje apaguei um monte delas).  A segunda fase foi a melhor:  tirava fotos muito aleatórias de coisas que eu achava interessantes ou só bonitas. Tirava foto mais das  cores do que das coisas em si. A cor da tarde, a cor da água através do vidro da garrafa, a cor da flor, do vaso, o reflexo do sol ou da lua.  

Havia uma foto que tirei de dentro do meu carro, enquanto estava no lava jato. Fotografei aquele imenso escovão azul que limpava o para-brisas. Por que fiz isso? Porque me encantou a profundidade do azul turquesa do escovão! Você precisava ver.  E as gotículas de água espirrando, escapando dele, fugindo gargalhantes para todos os lados.  Parecia haver vida ali. Estava tudo animado. E eu ali,  inerte e contemplativa curtindo minha fatia de felicidade. 

Amei aquela capacidade de me encantar com coisas simples e "invisíveis". Havia várias outras fotos semelhantes e acabei me perguntando se em algum momento o meu olhar se perdeu. A gente pode "perder o olhar" assim como as cozinheiras "perdem a mão."  É um perigo isso.

A  beleza está em todo lugar. O belo de verdade aparece sem querer, sem aviso e sem ajuda. 

Postei foto da minha chaleira branca por causa das suas curvas graciosas. Gostei também de um certo urubu que plainava no céu pouco antes de a chuva cair. Ele ia muito sem pressa e conseguiu parecer majestoso naquele momento. Todos sabemos que os urubus são feios mas aquele ali conseguiu driblar o estereótipo.   Apreciei também umas rabanadas, que de tão bem fritas mereceram registro. 

Depois veio a sequência de fotos minhas  e de familiares. Tantas fotos minhas eram desnecessárias ao mundo mas faz parte. Integram nossos costumes modernos. 

Depois disso fui amargando. Foi o que me pareceu.  Comecei com denuncias das injustiças da politica e não parei mais. Tudo foi ficando desconfortável de se acompanhar. Misturei essa amargura com diversas piadas e memes. Cobri também com camadas de versículos bíblicos,  aqueles que me traziam alívio pra isso tudo. Poderiam ajudar mais alguém.  Mas mesmo assim o meu Instagram parecia aflito, meio perdido e triste. Aos poucos isso foi me afligindo. Todo dia eu recebia notícias ruins da parte do governo e do resto do mundo, de tal forma que o belo aleatório parou de me tocar. Aparecia pouco e por ser pouco não conseguia aliviar a tensão da minha página.  Quando uma foto mais doce aparecia vinha com um ar meio deslocado, desconfortável no meio daquela tristezarada toda.   Foi quando comecei a sentir necessidade de ir embora.

Sair das redes sociais é ir embora.

Estou agora em ritmo de jejum. Não sei se quero voltar a me manifestar sobre assuntos da atualidade.  Centenas de pessoas que eu via nas telas e curtiam minhas postagens sumiram.  Ou porque se cansaram de mim ou porque se cansaram da internet. Ou quem sabe "o sistema" nos cortou uns dos outros. Ficamos todos mais sós em nossas celas, falando para as paredes.  Todos esses motivos juntos formaram um caldo de desencanto que só o jejum pode curar. Preciso parar. 

Não entendi muito bem se estou só cansada ou enojada. Mas quero trazer de volta a Cristina das formiguinha, do bule branco, da foto da pamonha, da fogueira.  

Depois que o navio afunda nada mais importa.

Por enquanto é isso.



7 de nov. de 2024

Sonho esquisito

 Essa madrugada tive um sonho esquisito. Posso classificar como "pesadelo". Foi rápido mas por algum motivo me sinto impelida a registrar a experiência. Alguns detalhes acabei esquecendo mas ... vamos lá.

No sonho, devido aos problemas da vida, eu estava decidida a buscar mais as Deus  me dedicando mais à oração. Então, no sonho, eu saía a procura de um lugar propício, onde eu poderia me ajoelhar e orar pelo tempo que minha alma desejasse. Meu marido estava comigo. Ele me seguia, vinha sempre atrás de mim embora eu não o visse. 

Eu me vi em um local que parecia ser uma espécie de "condomínio de capelas". Não havia casas, só capelas para oração, de diversas denominações cristãs.  O condomínio era um lugar calmo e limpo, um lugar agradável.  Passei por várias "igrejinhas"  dando uma olhadela em cada uma, escolhendo onde eu iria ficar. Todas eram pequenas, limpas, agradáveis e simples. Quando eu abria cada porta sempre havia algumas poucas pessoas reunidas orando em silêncio.  Depois de olhar algumas opções finalmente escolhi uma - que na verdade era bem semelhante às demais.  Só escolhi porque achei que no final das contas era tudo mesmo muito parecido, não haveria uma melhor do que a outra, além do mais eu já estava cansada de procurar e queria começar logo a orar.

Só quando entrei é que percebi que a capela que escolhi era católica. Não havia santos nem nada que indicasse isso, mas eu simplesmente sabia.   


Por fora a capela escolhida não se destacava de nenhuma outra. Era toda dentro do mesmo estilo:  Bem pintada de bege, simples ,  de aspecto bem cuidado, silenciosa e convidativa.  Mas por dentro era completamente diferente, o que me deixou surpresa e decepcionada. 

Por dentro era tudo muito velho. As paredes pareciam não terem sido pintadas há séculos.   Não era possível sequer definir a cor das paredes, do piso e dos bancos. Tudo parecia meio cinza, empoeirado, muito gasto e soturno.   O lado de dentro não se parecia em nada com o lado de fora. Por fora era uma construção de poucos anos mas por dentro parecia um compartimento esquecido e recém descoberto de alguma construção medieval.  Os pouco de bancos que havia eram antiquíssimos,  de tábua corrida e sem encosto. Gastos, desconfortáveis, mofentos, empoeirados, como se há séculos ninguém tivesse feito uso deles.  Não era possível ter certeza se eles eram mesmo de madeira ou de pedra.  O ambiente não era nada aconchegante, mas até mesmo um tanto hostil,  como se  tudo dissesse "fique se quiser, mas ninguém te chamou."  

Percebi que havia no local algumas poucas pessoas. Umas cinco ou seis, talvez.  Nenhuma delas estava ajoelhada. Nenhuma estava nos bancos da frente. Estavam todas sentadas mais atrás, próximas às paredes laterais. Todas de olhos fechados. Pareciam estar ali há muito, muito tempo. Suas roupas eram velhas como tudo ali. Pareciam camponeses antigos e cansados.    Todas dormiam. Pareciam defuntos, sentados e imóveis, indiferentes a tudo, de olhos fechados.   Eu sabia que aquelas pessoas não estavam mortas, estavam dormindo, mas o aspecto era mesmo de defuntos. Sabia que elas não me ofereciam perigo algum. Nem perigo nem companhia. Algumas tinham a cabeça pendendo para o lado como passageiros de ônibus sonolentos, cansados, voltando do trabalho.  Eu não tinha intenção de incomoda-las, sabia que elas não me incomodariam de forma alguma e que eu poderia permanecer ali pelo tempo que quisesse. 

Imagino que arqueólogos, ao entrarem pela primeira vez em uma tumba egípcia, sentiram o mesmo que eu senti ao entrar naquele lugar sombrio. 

Decidi ser prática. Deixei para lá o nojo, as más impressões e toda a contrariedade por ter caído no pior lugar mesmo depois de ter feito tanta seleção. Escolhi um lugar para ficar e ajoelhei para começar a orar. Foi quando comecei a sentir uma sensação muito ruim. O ambiente foi ficando mais pesado e eu sendo tomada por um medo crescente.  

Senti que havia ali uma "entidade", um espírito ruim no canto da parede, bem perto de mim. Eu não via, mas sentia claramente  sua presença. Fui me enchendo de pavor.   Então não aguentei ficar ali e levantei  para ir embora, Enquanto me virava para sair eu chamava baixinho pela minha mãe. Comecei baixinho mas fui aumentando o tom de voz  a medida que o medo aumentava: "Mãe! Mãe! Mããããe!"    Eu já estava completamente apavorada mas não conseguia sair rapidamente dali. Nenhuma das pessoas se importou comigo. Nenhuma acordou, nenhuma me olhou.    

Enquanto eu chamava desesperada pela minha mãe, acordei. Meu marido me sacodiu, pois eu estava gemendo na cama. Graças a Deus ele me acordou.

Credo.






 

11 de mar. de 2021

Hoje é o último dia da minha vida *

Essa noite sonhei que fui condenada à morte, então resolvia escrever minhas últimas palavras. As pessoas que eu mais amava iriam ler minhas declarações, inclusive minha mãe (que no sonho ainda não havia morrido). Isso aumentava muito a importância e a responsabilidade do que eu iria dizer.

A primeira frase já estava decidida. Seria "Hoje é o último dia da minha vida". Ponto. Daí eu começaria a desenvolver o resto.

Comecei a escrever mas logo joguei tudo fora porque o papel não era adequado. Depois recomecei porque eu estava em uma posição desconfortável e a letra estava saindo horrível. Depois joguei tudo fora de novo e recomecei porque a caneta estava falhando e acabou a tinta. E por várias vezes tentei escrever mas não passava da primeira folha. Eu queria algo marcante, sensível, poético, algo que resumisse minha vida e meus sentimentos e onde pudesse dizer tudo o que sinto por cada pessoa que amo. E também tinha que dar tempo de pedir desculpas e explicar certas coisas.  Bem, isso tudo daria um livro mas eu só tinha um dia para escrever!   "Amanhã" eu seria executada. Não daria tempo de fazer  nada perfeito, nada com valor literário.  Por fim, então,  tomei a decisão correta: simplesmente escrever o que me viesse à mente sem me preocupar com nada mais. E se não desse tempo de terminar, paciência. Anne Frank também não "terminou seu diário" e mesmo assim ele se tornou um best seller.  Não, nem Anne Frank eu queria ser. Queria apenas abrir o coração para o mundo e mostrar que existi.

Recomecei, por fim. Resoluta. Passei a registrar vários momentos da minha vida. Eu pulava de uma lembrança para outra, recomeçava, comentava sentimentos, mencionava pessoas. Não me importava mais com a ordem das coisas. Quem precisa de "ordem das coisas" no último dia da sua vida? Os pensamentos iam e vinham, tudo fluía imperfeitamente com deveria ser.  

Em determinado momento eu não sabia mais se ainda estava acordada mesmo ou não. Porque eu continuava pensando, lembrando e selecionando com a minha mente tudo que deveria ser registrado. Em algum momento o sonho acabou mas eu continuava na cama com os mesmos pensamentos de escritora, de olhos fechados, redigindo mentalmente minhas memórias e declarações. Meio acordada, decidi que iria escrever tudo aquilo de verdade, em um caderno ou blog. Queria me lembrar de tudo, então eu entrava e saía do sonho sem saber se meus pensamentos eram uma continuação dele ou se eu ainda "estava lá".

 A partir de algum momento indefinido acordei e fiquei pensando no significado daquele sonho. Ele não é a história de todos nós? 

Estamos todos "condenados à morte". Todos vamos morrer. E não temos chance de voltar atrás para corrigir tudo. Poderíamos até tentar mas seria como na escrita: toda vez que eu tentava recomeçar para escrever melhor, escrevia novo texto cheio de erros que seriam rejeitados na própria revisão. E sempre haveria uma revisão. A capacidade de olhar para trás é infinita e paralisante.  Meu texto jamais ficaria perfeito. E se eu ficasse presa ao passado remoendo tudo jamais escreveria "minhas últimas palavras." O livro da minha vida jamais avançaria nesse eterno recomeçar. 

Acho que é por isso que Deus não nos deixa voltar ao passado para remendar as coisas. Não é por maldade. Ele apenas sabe que não adiantaria. Ao retornar eu corrigiria erros antigos mas cometeria erros novos.

Siga em frente, Cristina. Apenas olhe para a frente e viva!  Não vale a pena revisar infinitamente seus atos.   O "livro da sua vida" não será perfeito. Não vai haver tempo de dizer tudo, justificar tudo  nem consertar tudo. 

Viver é escrever.     Apenas "escreva" e quando o tempo acabar, acabou.  Não se preocupe com o "carcereiro". Ele sabe a hora. Concentre-se no que você ainda tem de vida - e você tem pouco tempo! Abandone a pretensão boba de produzir uma obra prima. Apenas faça o seu melhor e deixe mensagens de amor. É o suficiente.

Estou começando a achar que esse sonho foi uma orientação do além.

10 de mar. de 2021

Maria *

Sou uma pessoa de sorte. A maior parte dos meus sonhos se realizaram. Houve frustrações homéricas, é bem verdade, mas não importa. Sou uma pessoa de sorte.

Todo mundo tem, ou teve,  um sonho secreto que nunca aconteceu nem vai acontecer.  Sério. Não vai. Sejamos realistas.   Vou confessar um dos meus sonhos que, de tão bobinho e antigo, deveria ser esquecido. Mas como todos sabemos, sonhos entalados não morrem. 

Era uma bobagem... mas era a MINHA  bobagem romântica!  Há algo de sagrado nisso. 

Meu sonho era casar igual Maria  no filme A Noviça Rebelde.   Pronto, agora todo mundo já sabe.  

Entrar na igreja como ela, oprimida por tanta felicidade, compenetradíssima ao som do "Processional and Maria"  (https://open.spotify.com/track/13aKlygoQB1yeU4MEpW8in?si=Sa51jBRFTnCdBrR1Z-R69g).   

Nossas bobagens preciosas não são para serem jogadas fora.  Elas nos traduzem, denunciam nosso verdadeiro "eu". São nossos hieróglifos. Não se joga fora uma coisa assim. 

E lá ia Maria, reluzente em sua simplicidade e despretensão de ser bonita.  Resoluta deslizando pela igreja, soprada por aquele órgão imponente. Sozinha, sem pai nem mãe, deixando tudo para trás.  Gloriosa e humilde. Maria.

Casei duas vezes mas em nenhuma delas essa música tocou.  Por quê? Porque eu não disse a ninguém que queria. Por ser um sonho sagrado demais eu o guardei em meu compartimento secreto.  Não poderia correr o risco de  ouvir um "não".  Ouvir um "Ah, não vai dar!"   ia acabar comigo.  Quem iria entender em plenitude o que aquilo significava para mim ? Melhor não arriscar.  

O fato é que sempre fiz isso comigo mesma. Quando o desejo é muito intenso, não falo. Quando muito, insinuo.  Porque se não acontece e a culpa é minha, eu me viro com meus fracassos. Mas se a culpa é do outro, temo que a mágoa seja eterna. 

Bobagem. A mágoa foi eterna do mesmo jeito. Por que não tentei? Eu poderia ter casado ao som do Processional da Maria, ora!








Christopher Plummer *

 Confissão:


Quando criança eu era muito apaixonada por este homem: Christopher Plummer. Por causa do filme A Noviça Rebelde, que marcou a minha vida. Ele era o Capitão Von Trapp e me lembrava demais o meu pai. Por quê? Só Deus sabe. Não há semelhança física nenhuma entre os dois. Mas por alguma curiosa associação mental quando eu o via em alguma foto o meu cérebro se apressava em fazer uma improvável link com a figura do meu pai. Quando ele cantava era meu pai cantando. Ele era o meu ideal de homem perfeito.

Talvez essa esquisitice se deva ao fato de que meu pai gostou muito do filme e por isso nos levou para assistir. Foi a primeira vez que fui ao cinema. E ele ainda comprou a trilha sonora, que tocava em casa o dia inteiro. Eu e meus irmãos sabemos cantar todas as músicas em "inglês". Pouco depois meu pai morreu... Aí misturei tudo dentro da cabeça e me apaixonei perdidamente pelo Capitão Von Trapp.

(Christopher Plummer morreu aos 91 anos, em fevereiro de 2021)

3 de jan. de 2021

Floresta âmbar *



 Essa imagem me fez lembrar de um sonho que tive há muitos anos. Muitos anos. Nem lembro quantos. 

Eu estava em uma floresta maravilhosa. Sozinha. Era noite completa, escura e estranha mas eu conseguia ver claramente tudo ao redor: as árvores, o riacho, as folhas, o chão.  Não lembro se sentia medo. Só lembro do meu deslumbramento com aquele lugar. Era como se tivesse finalmente entrado em um mundo mágico. Eu estava ali e aquilo era a prova de que tudo o que li era verdade. Nunca estive ali antes mas o lugar me parecia de certa forma familiar. 

"Eu sei do que se trata, mas não lembro...preciso de mais tempo aqui."  

Eu não sabia se havia mais alguém ao longe ou se eu estava ali com algum propósito.  A impressão era de ter caído aleatoriamente naquele outro mundo. 

Não sei se os elementos ao redor era fluorescentes... Não, não eram.   Eu não via foco de luz algum mas era possível enxergava tudo, como se um holofote cor de âmbar iluminasse ao redor de onde eu estava, de baixo para cima. Era tudo muito escuro mas para onde eu olhava havia uma misteriosa iluminação.  Era tão comovente! Era como se as árvores percebessem a minha presença. Havia ali uma possibilidade real de aventura.  Eu realmente precisava de mais tempo ali.  

Agora, ao lembrar, parece-me que aquela floresta estava dentro de mim como um subproduto de todos os meus sonhos, leituras e sentimentos. Ela foi criada inadvertidamente ao longo dos livros que li. Então, numa noite, com a alma vagando distraída,  entrei acidentalmente por um portal que me levou àquele lugar de onde bem poderiam surgir  de repente princesas e bruxas.  

Ah, eu daria tudo para voltar lá e finalmente descobrir. Descobrir o quê? Descobrir o que houvesse para ser descoberto. Porque havia aquelas árvores enormes cheias de saberes, com um silêncio típico de quem quer nos contar alguma coisa proibida. Havia pedrinhas e riachos, olhos e negritude profunda. E tudo sabia de "algo'.  A saudade daquele lugar era como a saudade de uma pessoa. A floresta era como "alguma pessoas" que me conhecia bem, que me esperava ali desde a minha meninice. 

E agora, enquanto escrevo, sinto tudo de novo. Sinto dor de saudade por aquele lugar mágico.




 

9 de mai. de 2019

Sonho recorrente *



De um modo geral acho meio bobo dar muita importância para o significado dos sonhos. Sonhos são apenas produções de uma mente desocupada. É como deitar no chão e jogar bolinhas de papel na parede: não há missão especial nem significado. Mas quando os sonhos são recorrentes fica difícil achar que não tenham algum significado psicológico ou espiritual.

Sonho frequentemente com casamento.   E nos sonhos sempre há um quê de tristeza ou aflição. É sempre uma situação muito ruim.   Eu deveria ter anotado todos os meus sonhos com esse tema mas não o fiz. Vou tentar agora resgatá-los na memória. Deu vontade de fazer isso porque essa noite sonhei de novo com coisas relacionadas a casamento.

Certa vez tive um sonho que hoje me parece o mais aflitivo de todos:


Sonhei que eu estava noiva e com o casamento marcado há muito tempo. Meu noivo ela bonito, rico e jovem, mas morava distante. Nós nos amávamos. Ele deixou comigo todo o dinheiro necessário para que eu providenciasse a melhor e mais rica festa do mundo; o melhor vestido, a melhor ornamentação, o melhor local. Absolutamente tudo! O prazo era enorme e suficiente para todos os preparativos. Foi então que a coisa complicou porque quem tem muito tempo acaba desperdiçando tempo.  Como eu sabia que tinha tempo de sobra para tomar as providências, fui deixando tudo para depois e de tal forma fui irresponsável que passavam dias e dias em que eu praticamente esquecia do casamento. Eu dormia, saída pra passear, ia a festas... e passava períodos enormes sem fazer o menor planejamento.  Então certo dia meu noivo entrou em contato comigo avisando que já estava vindo ao meu encontro para nos casarmos e isso seria já no próximo final de semana. Não deveria haver surpresa porque JÁ ESTAVA TUDO PREVIAMENTE COMBINADO. Ele ligou só pra confirmar e me tranquilizar.   Ele chegaria exatamente em cima da hora da cerimônia,  já pronto.    Eu levei um baita susto. Eu sabia que ele estava voltando, sabia da data, mas estava tão distraída que não tomei nenhuma providência. Ele contava comigo. Ele confiou em mim porque sabia que eu tinha família e um monte de amigos que poderiam me ajudar nos preparativos. Só que relaxei e quando vi já era sexta feira e o casamento seria no sábado e eu não tinha feito absolutamente nada. Jamais conseguirei descrever a ANGÚSTIA que senti nesse sonho, a dor no coração. Era inenarrável o desespero. Horrível!  Eu estava atônita como se tivesse acordando de um longo sono, de um estado inexplicável de letargia. Não conseguia entender como eu me esquecera de algo tão importante do qual dependeria todo o meu futuro e felicidade.    Então era sexta feira e eu me pus trêmula a tentar telefonar para mil pessoas implorando por ajuda e tentando fazer tudo às pressas. Primeiro achei que o mais urgente era o vestido, mas as lojas todas já estavam fechando naquele final de tarde. Eu não encontrava nada adequado em lugar nenhum. Não dava tempo de ficar experimentando nem escolhendo vestidos. E eu não poderia comprar qualquer coisa pois meu noivo era muito rico e distinto, uma pessoa importante e ele esperava poder me apresentar com muito orgulho para a sua família.  Ele me amava e confiou em mim.  Então eu corria desesperada implorando  para as costureiras e donos de loja me atenderem mas ninguém conseguia me ajudar. Só diziam que não havia tempo pra fazer nada, que estavam fechando os estabelecimentos, que estava tudo alugado, que as costureiras já tinham ido embora da loja. Eu não sabia o que dizer nem a quem apelar. Ligava para os amigos mas nem todos me atendiam e quando atendiam a coisa não andava. Todos queriam me ajudar mas ninguém sabia como fazer algo as cinco da tarde de uma sexta feira! Depois de muito sacrifício consegui um vestido numa loja empoeirada e muito brega. Tentei olhar com bons olhos mas ele estava largo e me caía muito mal. Seria um vexame entrar na igreja com aquilo. Pedi para uma costureira me ajudar mas ela morava longe e eu ainda tinha que providenciar salão, buffet, ornamentação, convidar as pessoas... Minhas mãos tremiam ao pegar no celular porque eu não sabia nem pra quem ligar primeiro, não sabia o que fazer primeiro e a hora estava passando.  Decidi que iria me arrumar sozinha mas aí lembrei que tinha que contratar o jantar... Como não havia mais tempo decidi comprar pelo menos um bolo. Mas onde?  Pensei em pegar um bolo de padaria mesmo, com uns salgadinhos,  mas seria um vexame, uma indignidade, uma prova de que eu era preguiçosa, relaxada, irresponsável e pior: não amava meu noivo.   Seria indigno do noivo que me deixou com tanto dinheiro em mãos e não merecia passar aquela vergonha.  Mas ou eu tratava do vestido ou tratava do bolo e da festa ou tratava de convidar as pessoas. Se perdesse tempo pedindo ajuda não conseguiria resolver as coisas que só eu poderia resolver.  Era impossível fazer tudo na ultima hora. Eu tremia angustiada, minhas mãos tremiam.   Então entendi que estava tudo perdido, que ele não ia aceitar casar comigo naquelas condições. Uma tristeza imensa caiu sobre mim. Tristeza e vergonha, muita vergonha.  Quem iria me consolar? Iam rir ou condenar a idiota que jogou fora o bilhete premiado da loteria. Eu não poderia contar nem com a solidariedade das pessoas. Meu noivo iria entender aquela situação como uma demonstração inequívoca de que eu jamais o amara, portanto não o merecia.   Eu dizia para mim mesma "não posso perde-lo! eu o amo!" mas ao mesmo tempo me vinha á cabeça que "mas se eu o amasse de fato não teria me preparado? Que amor é esse? Qual a noiva que esquece do seu casamento desse jeito?"  Eu sabia que não tinha nem como pedir desculpas porque NÃO HAVIA DESCULPA!    Eu o via chegando completamente pronto para a cerimônia, lindo e banhado, muito elegante e perfumado mas olhando decepcionado bem dentro dos meus olhos, baixando a cabeça, virando as costas e indo embora para bem longe e eu nunca mais o veria. Ele não vinha de tão longe para uma festa sem convidados, com uma noiva suada,  despenteada, com um vestido ridículo, sem adorno algum, maquiagem, unhas por fazer, bolo de padaria. Não, era muito vexame. Era uma afronta.    Planejei me jogar aos seus pés e implorar perdão e jurar que o amava mas eu não teria coragem. Seria inútil e meu desespero só realçaria minha falta na frente de todos os convidados. Eu só conseguiria ser patética. Perdi tudo. 



Só consigo me lembrar da minha angústia inominável, que perdurou até mesmo depois que acordei. 

Tive um outro sonho semelhante, mas dessa vez eu ia me casar mas me considerava muito bem preparada para o evento. Eu me julgava dessa vez super prevenida porque eu tinha no armário vários vestidos de festa. Dentro da minha cabeça os vestidos que eu tinha estavam ótimos e eu não precisaria me preocupar com mais nada: bastava tomar banho e me vestir quando chegasse a hora. Só que quanto chegou a hora reparei que todos os vestidos que eu tinha no armário estavam muito surrados, guardados há muito tempo. Eu tinha me sentido tão confiante que nem me dei ao trabalho de pelo menos experimentá-los.  Escolhi um deles, muito bonito, mas usado, com cara de vestido que está há muito tempo no armário. Se pelo menos eu o tivesse levado à lavanderia ele ficaria com cara nova, mas não o fiz.  Eu sabia que todos os convidados na festa iriam se lembrar do vestido, pois eu já o tinha usado (parece que eu já o tinha usado em meu próprio casamento anterior). Eu poderia tranquilamente repeti-lo em outros casamentos mas usá-los no meu próprio casamento ficaria muito feio e deselegante. Era prova de descaso. Demostraria que eu não estava dando importância nenhuma para a ocasião e que eu não me preparei como qualquer noiva apaixonada se prepararia. Eu sentia que aquela atitude sem graça e sem paixão poderia desapontar meu noivo e até tirar o brilho do evento. Era como se tudo amarelasse, ficasse velho e "requentado".   Mas não havia mais tempo de ir atrás de um vestido novo...

Outra noite sonhei que eu iria casar com o Luis Alberto.  Estava tudo certo e eu estava tranquila e feliz . Seria uma festa familiar, bem simples e animada, num terreiro parecido com esses terreiros de São João. Um lugar agradável mas simples, de chão batido. O vestido que eu ganhei (não lembro se ganhei do noivo ou se ganhei da irmã dele) era cor-de-rosa e bem  simples, até mesmo feio, de algodão cru. Parecia que tinha sido feito desses sacos de farinha de trigo. Mas como era uma festa íntima resolvi não me importar com aquilo pois por mais feio que o vestido fosse eu sempre poderia dizer que foi um presente da família dele e eu tinha que prestigiar. Só que depois ganhei outro presente, dessa vez do irmão  do meu noivo  e da minha cunhada: o véu. Era do mesmo material do vestido: algodão grosseiro, só que era amarelo e não combinava de jeito nenhum com o vestido. Quando eu experimentava os dois juntos ficava uma coisa ridícula, como se eu fosse um palhaça, como se eu quisesse avacalhar com o casamento.  Então começava a minha aflição: ou eu usaria o vestido ou usaria o véu?  Não dava para usar os dois de jeito nenhum. As pessoas iam pensar que eu estava de gozação querendo ridicularizar o evento. Vestido cor-de-rosa e véu amarelo. Eu não queria problema com a família do noivo nem com o próprio noivo mas eu ia ter que desagradar ou ele ou a família dele. Foi horrível. A hora se aproximava e eu não sabia o que fazer. Por mais que eu tentasse conciliar o vestido com o véu, eles eram incompatíveis. Eu tinha que fazer uma escolha. Estava aflita. Então acordei. 

Hoje, essa noite,  sonhei de novo com o tema.  Eu ia me mudar. Estava fazendo uma triagem dos meus pertences, arrumando tudo e vendo o que jogaria fora ou não. Foi quando encontrei a grinalda e o véu do meu primeiro casamento. Logo em seguida , perto da grinalda e véu, encontrei o buquê. Estavam perdidos um tempão debaixo de um monte de coisas antigas. Tanto a grinalda e véu quanto o buquê estavam tão maltratados, empoeirados, amassados e encardidos... Olhei e me deu tanta pena daqueles objetos!  Mostrei para alguém e em seguida decidi que não ia jogar fora. Por mais que fosse inconveniente fazê-lo eu iria guardá-los. Eram meus!

Sonhei de novo.  Dessa vez eu tinha o vestido!   Tudo certo.  O vestido era bom,  cabia bem em mim,  era aceitável. Tinha os sapatos do casamento tambem. Eu estava tranquila.  

Estranho é que nesses sonhos o vestido nunca é novo ou realmente lindo.  No máximo é um vestido razoável de quem não está muito empolgada. 

Bem,  estava tudo certo e eu estava me sentindo segura da situação. Então uma pessoa amiga vem conversar comigo e tenta me convencer de que não era para eu ir com aquela roupa.  Dizia que o casamento era de dia,  então ficaria muito mais moderno um vestido curto. Eu  argumentava que já tinha roupa,  que já estava tudo certo mas ela insistia nisso e por fim me convenceu a experimentar a roupa mais simples e curta que ela propunha.   Eu experimentava o vestido já  com a intenção de não usa-lo mas eu evitava dizer isso para a minha amiga. O vestido era sem graça, vagabundo mesmo,  muito inferior ao que eu já tinha preparado.  Enquanto eu fazia essas considerações  chegou a hora do casamento e notei que não daria mais tempo de trocar de roupa.  E eu ficava muito chateada com isso porque eu estava realmente muito mal vestida !!!  Eu não precisava passar aquele vexame! Eu ficava tão triste por ter me deixado levar na conversa!  Agora estava em cima da hora e eu era obrigada a me casar com aquela roupa feia mesmo tendo algo melhor.  Me senti horrivelmente enganada,  iludida,  passada pra trás.  

Ou seja: em nenhum desses sonhos eu estou feliz.  A roupa é sempre de segunda mão,  nunca é nova, nunca é daquele branco brilhante.  Sempre é meio amarelado com cara e cheiro de guardado . Sempre é tudo improvisado,  às  pressas,  sem glamour,  sem encanto. É tudo pesado e meio triste.  Sempre.

Agora em março de 2021 tive um sonho mais promissor  dentro desse tema.  Finalmente sonhei que minha roupa de noiva  era apropriada para o evento. Um vestido novo e bonito, embora não fosse branco. Era um belo vestido azul "bic", brilhoso,  que não me faria vergonha como noiva.  Que alívio!  Mas no sonho eu não gostava do ornamento da cabeça. Toda vez eu tenho que mudar alguma coisa. Por quê, meu Deus? Por que não me conformo e não caso logo com o que tenho?  Bem, resolvi escolher outro véu e outra grinalda. Eram bonitos e brancos, mas não combinavam muito com o vestido azul profundo. Aí acordei. Afff!

Outro sonho -  04/09/22:  
Dessa vez não era sobre estar ou não despreparada para o meu próprio casamento. Nada sobre algum vestido estar gasto ou inadequado.   Mas é sobre despreparo, procrastinação, distração, irresponsabilidade ...  sei lá.    

Eu estava viajando com um grupo,  para o exterior. Parecia ser uma viagem turística.  Estávamos já na aeronave - não havia como retornar -  e em pleno voo eu lembrava que estava sem nem um mísero centavo na bolsa.  Nada, nem pra comer. Eu tinha algum dinheiro no banco mas eu precisava de dólares. Ou euros. E não havia providenciado a compra de moeda estrangeira. É o cúmulo viajar e esquecer de providenciar dinheiro para levar.    E para piorar eu também não havia levado meu cartão de crédito internacional.

Comecei a ficar aflita com a situação e a me lamentar.  Que sensação ruim!   Uma companheira de viagem  tentou me consolar se oferecendo para me arranjar algum dinheiro pelo menos pra eu poder comer na viagem. Eu sabia que ela não poderia oferecer muito. Obvio.   (Estou lembrando agora daquela parábola das virgens néscias.)   

Há sempre presente nesses sonhos uma ideia de CASTIGO PELO DESCASO, vergonha de mim mesma e total impossibilidade de elaborar  qualquer desculpa aceitável para o vexame. Não há desculpa. Nunca.

Nesse tipo de sonho eu sempre sinto muita angustia, muita culpa e muita vergonha. Principalmente vergonha.    Eu não conseguia entender como fui tão descuidada. Como pude esquecer de uma coisa tão básica?  Como que a empolgação pela viagem não me levou naturalmente a tomar todas as providências necessárias?  

Por que tenho esses sonhos? Por quê? Por quê?  Acordo pensando "de novo isso!? Meu Deus o que é que eu estou fazendo de errado???!!!!" 😫😩







3 de fev. de 2018

Migração


Olho para o céu e, parece-me: todas as aves voam para ti.

Há uma festa para onde elas estão indo, mas elas não dizem nada. Se eu pudesse segui-las chegaria a ti, mas não posso.

Sinto inveja das aves que pousarão no teu ombro e brincarão nos teus cabelos. Sinto inveja desse vôo silencioso, cheio de segredos. Sinto inveja desse caminho certeiro, dessa ausência de dúvidas que só as aves têm.

Sigo meu caminho na Terra. Cumpro a minha sina, que nem tem sido penosa. A vida é boa, embora fique aquela dor antiga incomodando o sapato. Mas é assim mesmo: todos os sapatos doem e as dores nem sempre se despedem.

Sinto saudades, mãe. A senhora sabe disso.

Um dia o meu caminho na Terra me levará ao caminho das aves. Nesse tempo darei o último passo aqui e descobrirei, finalmente, onde você respira e quais os ventos que sacodem as suas roupas brancas.

1 de jan. de 2018

Primeiro de janeiro



O dia de ficar melancólica era, indiscutivelmente, ontem. O último dia do ano é quando a vida dá licença para lembrar, ficar triste e até chorar.  Em meio aos fogos de artifícios todas as dores podem vir à tona fantasiadas de emoção deslumbrada. Vale tudo, todos se saúdam e pronto. Não chorei ontem. Nem hoje, para ser sincera. Mas estou sentindo um peso, uma dor. Uma angústia de saudade, uma sensação de subtração.  Estou me sentindo profundamente só porque quando nossos pais se vão a gente fica só para sempre. Nada conserta isso. A gente se apaixona, a gente casa, tem filhos, se envolve tanto com o presente que o passado fica suspenso, pairando no ar. Por um tempo ele não nos incomoda. Por um tempo esquecemos e pensamos que mudamos, que somos outra pessoa e não precisamos tanto do que aquelas pessoas nos davam em termos de amor e aconchego de alma.  Mas tudo que sobe, desce. Toda água que vai para o céu acaba voltando, mais cedo ou mais tarde, levemente ou destrutivamente. Um dia a vida diminui o ritmo, um dia os problemas se resolvem (ou solidificam), um dia os afazeres se acalmam
, dão um tempo. Aí você senta na varanda para tomar um chá olhando para o céu e descobre que esse foi o seu grande erro. É na varanda do repouso, da reflexão e da cadeira de balanço que tudo o que estava suspenso cai sobre você como uma avalanche.

Cadê minha mãe? Cadê meu irmão? Onde estão meus padrinhos que faziam tudo por mim?


Estou aqui, pequena e assustada, horrivelmente carente nesse corpo de senhora.  O presente é um castelo cheio de fantasmas amigos. Eles sopram e dizem que sou um personagem de outra trama. Minha trupe se foi.

Minha saudade caiu sobre mim como chuva de gotas grandes.

Quando estou assim não lembro imediatamente das pessoas. Elas vem depois. O que lembro  é de lugares, cenários, sensações, músicas, vozes, coisas muito íntimas, muito minhas, incomunicáveis. Essa incomunicabilidade me aflige imensamente porque impede que eu me alivie. Eu quero te dizer, falar pra você, fazer você conhecer e ficar com parte dessa dor. Mas é impossível. 

Lembro muito, muito mesmo de como eu me sentia. E sinto um cheiro de guardado enquanto isso. Cheiro de caixa de relíquias. Lembrei da dor na barriga antes de entrar no palco para aquela apresentação de Natal. Lembro das crianças, dos holofotes, das asas de anjos de cartolina e papel crepon e o tempo que levamos para preparar tudo aquilo. As roupas de cetim barato.  Droga! Lembro do que eu era, de como eu era e de como me sentia. Só depois, bem depois, vem as pessoas com suas caras e jeitos compor esse caldeirão. Lembro das expectativas do Natal, da árvore, dos presentes novos, do primeiro dia no colégio, da pasta de couro, da raiva que eu tinha das minhas pernas finas. Tudo se acende de novo, se ilumina dentro de mim só para doer mais. Lembranças por si só não doem. Mas há um algo mais que dá realidade a tudo. Há um componente misterioso que faz a gente re-sentir e re-ver.  Aí é um tapa.

Estou mal. Estou vendo a cozinha da casa da minha madrinha com aquele monte de panelas. Estou vendo meus vestidos novos, a mamãe vindo do salão. Sinto o cheiro do glacê do bolo. Mas o que me arrasa é lembrar daquela sensação de acolhimento e segurança que não tenho mais. Estou vendo minhas amigas, o quintal com duas palmeiras. Estou sentindo novamente aquela felicidade meio dolorida, meio misturada com uma melancolia onipresente que eu nunca entendi. Quero o meu pai.

Me sinto só. Me sinto órfã de todos os que me amavam. Me sinto tão criança que você nem pode imaginar. E tenho um sentir de abandono, de "sozinha no mundo", de "todos se foram e eu fiquei".  Por dentro eu sou uma menina esquecida na estação de trem.

Eu poderia continuar escrevendo meses sobre isso e repetir pensamentos e frases como um pêndulo ou roda gigante cujos assentos sempre voltaram ao mesmo lugar. Ir e vir é o seu destino. Posso falar sobre isso novamente e te enfadar com minhas lembranças repetidas. Preciso fazer isso! Preciso dizer tudo de novo até conseguir me esvaziar dessas coisas e me sentir melhor. Acho que o esquecimento vem depois do cansaço. Se eu cansar de lembrar talvez isso canse de doer.   Preciso escrever de novo e de novo até que se esvaiam todos os cheios, até que sequem todas as flores, até que tudo vire apenas fotos amareladas e cansativas. Deve haver algum jeito de isso tudo se perder ou ficar apenas banal.

Dizem que envelhecer é assim, quando o passado volta com mais força, quando você se sente sozinho, quando você tem a impressão de que sua alma ficou lá atrás, desnorteada. Envelhecer é quando você não quer absolutamente nada em troca do que perdeu.  É quando você prefere a boneca velha de um olho só porque de todos os que sabiam de você, só ela sobrou. A boneca encardida é a única que sabe de tudo. É a última tabua nesse oceano. Envelhecer é quando você não quer nada novo e se torna uma menina inconsolável exigindo o que não pode ter.  Envelhecer é quando a saudade fala mais alto do que tudo. É quando todo consolo se torna um insulto.  É quando você não se sente mais mais desse mundo e prefere mesmo que seja assim.

2 de nov. de 2017

"Sozinha deles"

Isso era um mistério até um dia desses:  solidão.  Tenho sido perseguida por um sentimento pesado de solidão, uma coisa triste mesmo. É como um manto que cai sobre a minha cabeça enquanto eu estou distraída.  O estranho disso é que eu não estou sozinha. Não sou sozinha.

Custei a entender que saudade e solidão são praticamente a mesma coisa. Dói do mesmíssimo jeito. A solidão diz que tem motivos diferentes da saudade pra doer, mas ela está enganada. A gente não sente solidão por estar sozinha. A gente sente solidão por estar SOZINHA DE ALGUÉM. É como a saudade, só que mais completa. A saudade é uma lembrança que dói. A solidão é um fantasma dentro da alma. Não é uma lembrança mas uma realidade constante. Como os ossos dentro da gente. Quem lembra pode tentar não lembrar, mas quem sofre de solidão carrega essa coisa consigo.

Se você estiver afastado das pessoas do seu coração então vai sentir solidão pra sempre, mesmo que esteja cercada por outras tantas pessoas maravilhosas. Não há substituição. Nada entra em você. A ausência de algumas pessoas gelam nossa cabana. Fica faltando pra sempre aquela chama na lareira.

Não sinto saudade da minha mãe; sinto "solidão da mamãe", "solidão do meu irmão", do meu pai, solidão dos meninos quando eram pequenos. Nada me salvará disso. Aqueles meninos me abandonaram quando cresceram. Tenho rapazes, não tenho mais as crianças, então sempre terei solidão por eles.

Hoje, Finados, o dia foi silencioso e cinzento. A chuva cobriu o dia todo. Sem trovão, sem alarde. Apenas deslizou sobre o asfalto e os prédios para ninguém esquecer o motivo do feriado.

Os mortos não comparecem no dia de Finados. Eles se mantém teimosamente ausentes e não se importam com nossas homenagens. Não vêm colher nossas flores. A chuva caiu inconsolavelmente.

Passei o dia tranquila e de bom humor. Fiz minhas coisas, lavei o cabelo, preparei uma sopa. Tudo certo. Mas lá no fundo havia aquele incômodo, como uma doença com a qual tenho que aprender a conviver. Lá estava a lâmina insolúvel, enfiada enquanto eu sorria.

Alma também sente frio.

Chego a pensar que, com o passar dos anos, essa coisa só tende a piorar. Em algum momento a gente começa a achar que não vale mais a pena continuar. É a velhice: quando a gente começa a fazer as pazes com a morte.

Quando eu viajar  não vou mostrar as fotos das férias para a mamãe.  Ela não vai se alegrar por mim, nem ganhará lembranças. Ela será lembrança. Não vamos mais planejar, com meu irmão, o cardápio do próximo Natal. Estou "sozinha deles". Sozinha de pessoas que me amavam mas morreram. Sozinha dos meus padrinhos. Sozinha da minha avó.

26 de jul. de 2017

Mochila fosforescente

Se eu pudesse voltar ao passado...

De vez em quando a gente pensa isso, não é? Você já pensou.  Mas será que voltar é algo desejável mesmo?  Ou você só quer algumas cenas específicas, selecionadas?

Claro que você só quer algumas cenas. Duvido que encare o pacote inteiro.  Conheço você!  Todos temos ceninhas de cinema salpicadas ao longo de nossa vida chocha. São elas que queremos, jamais o todo. Deus sacou isso, bateu pé ("Ou leva todo o pacote ou não leva nada!")  e por fim nos tirou o direito à marcha ré.

Tudo bem, mas se você tivesse ré, voltaria ao passado?  Já sei o que vai me perguntar:  "- Passado? Mas de qual passado você está falando?"    Boa pergunta. Você é esperto.

Considere que não há um único "passadão" para nos referirmos.  Mesmo as piores novelas são divididas em capítulos. Sendo assim há um monte de "passadinhos" pra escolher em nossa tosca prateleira.  E esses "passadinhos" estão classificados e acondicionados em vidros separados: o do Passado Remoto, Passado Antigo e Passado Recente. Qual dessas velharias lhe seduz?

O passado antigo esmaece enquanto o recente é fresco e vivo. Desse ouço até vozes e cheiros. Parece estar ao alcance da minha mão. É convidativo, acolhedor e aparentemente acessível. Só aparentemente. O presente, quando vira passado, solidifica. Torna-se impenetrável como uma rocha.

Sabe, não há fantasia mais doce do que acreditar que podemos retornar a cenários antigos para retomar o fio da meada e viver feliz para sempre, dessa feita sem mancada.

Quando melancólica me dedico à nociva atividade de consolar-me com essa idéia de voltar a fita. Felizmente passa rápido.  "Felizmente" por quê? Raciocinemos: voltar ao passado sem a cabeça e as informações do presente não teria graça nenhuma. Que graça teria voltar sem a consciência dessa volta?  Não seria "voltar e curtir de novo"  mas apenas repetir a mesmíssima história sem chance de melhora-la. Você quer? Duvido.

Seria como ver novamente o mesmo filme: os personagens não sabem que aquilo tudo é repetido. Aí todo mundo repete as partes chatas. Não dá.

E a segunda opção? Voltar ao passado com a cabeça e as informações do presente?  Também não dá. Eu não sou mais a mesma. Seria como colocar o personagem de uma novela em outra novela.  Hoje há novas alegrias, novas mágoas, novos personagens, novas conclusões, novos sentimentos. E ainda por cima falta um monte de persnagem da história.  Como retomar a minissérie nessas condições?

Nada de hoje cabe no que passou. Voltar ao ontem com a cabeça do hoje? Impraticável.  Ao voltar, mentalmente me vejo carregada de novas histórias que não caberiam naquele enredo. Fica absurdo, uma coisa assim como... como uma mochila fosforescente colada em minhas costas em um cenário do século XIX. Não dá.

Uma reconstrução nada mais seria do que uma imitação deprimente do filme original. Não há passado para o qual voltar. É tolice pensar que ele está nos esperando. Não está. Cada dia o nosso passado fica mais diferente de nós mesmos. Se voltássemos ele não nos reconheceria, nem nós a ele.


10 de mai. de 2017

Junho de 1983

Não pensei que aquela sensação fosse possível. Não se limitavam a meras lembranças não. Foram sentimentos intensos, como se de fato eu tivesse retrocedido anos.

Na verdade jamais cheguei a desejar, como outras pessoas, ser novamente criança. Essa vontade nunca tive por diversas razões. Só que quando entrei naquela sala tudo me emocionou.

Lá não havia nada que pudesse ser considerado bonito: era uma sala de madeira com a pintura gasta. O chão igualmente rústico. A mesa da professora era improvisada por outras duas mesinhas menores juntas, cheias de livros. Um ventilador de teto, cadeiras de fórmica azul claro com braço para escrita e o mais interessante: na sala toda um cheiro inexplicável de criança. Exatamente isso.

O cheiro foi o que mais me impressionou e emocionou também. Não me refiro a colônia com cheirinho de bebê. Era muito mais que isso: cheiro de inocência, de gente limpa do pó do tempo, de vida explodindo, de sorriso sincero, de flor abrindo, de dia amanhecendo, capim fresco, pão quentinho, gotinhas de suor na testa macia; cheiro de gente que não partilha da podridão do mundo. Era O Perfume, O Cheiro.

Não sei como essas criaturinhas engraçadas e acesas conseguem deixar rastros tão profundos por onde passam. Foi então que lembrei nitidamente do que fui e não sei como ou quando deixei de ser. Até aquela data eu ainda não havia notado o tempo passar. Estava distraída demais com meus afazeres. Ainda não havia incorporado esse costume de olhar vez por outra no retrovisor da vida.

Naquele dia me assustei. Não com um novo sentimento, mas em perceber o quanto havia mudado a minha maneira de enxergar tudo ao meu redor. Em qual momento fatídico aquele “espírito de criança” caiu fora? Como consegui afugentá-lo? Só sei que por alguns instantes “ele” voltou. Pude sentir! Não precisei fechar os olhos.

Acho que ninguém ali notou o momento mágico em que novamente fui tomada. Pelo que? Fui tomada. Senti de novo aqueles sopros do passado: o esmero em arrumar o material na pasta, a alegria do uniforme novo, a impaciência para que chegasse logo a hora de ir ao colégio, os passos largos de manhãzinha, o prazer de sentir o cheirinho dos livros e cadernos novos recém-encapados. Deu até vontade de chorar. Inesparada viagem!

Outras lembranças doídas também vieram, assim como o vento traz a poeira. Lembrei da insegurança, da timidez, da sensação de não ser aceita. Lembrei de que era desajeitada e feia mas não sofri. Cenas e cenas saltavam em minha mente como se estivessem séculos espremidas no túmulo e de repente agarrassem uma chance única de voltar à vida para serem sentidas novamente. Vi os primeiros sinais da subserviência masculina diante da beleza feminina - as meninas bonitas, os meninos iniciantes... Tudo passageiro, frágil e repetido.

Disso tudo lembrei e senti um grande carinho, de mãe para filha, por aquela menina que fui: sensível, insegura e sonhadora.

Estranhamente tive a impressão de que aquela era a minha sala de aula, aqueles bonecos e letras sorridentes estavam ali para mim. Senti muita vontade de chorar, um nó na garganta, mas ninguém entenderia essa atitude ali, numa reunião de pais e mestres. Emoção estranha, difícil de compartilhar.

Voltei a mim, vim para casa com minha enorme barriga de grávida. Pela primeira vez na vida tive saudade da minha infância.

19 de abr. de 2016

Papel-papel

Lendo um romance, esses dias, deparei-me com uma cena simples, comum, na qual alguém mencionava o uso de "papel almaço".  Foi quando lembrei que esse é mais um item simples e querido do meu passado.


Antigamente, nos dias de prova, cada aluno tinha antes que passar na papelaria e comprar uma - ou duas folhas, por precaução -  se quisesse fazer a prova. Se não levasse o seu papel, o aluno estava frito.

Qualquer papelaria decente tinha papel almaço.  

Outro item tambem sumido do meu cenário de criança é o papel carbono. Ah o papel carbono! Como eu gostava dele!  Era o que havia de mais pratico para copiar desenhos e fazer trabalhos escolares. Como trazer para o caderno um mapa do Brasil? Com papel carbono, ora bolas!  E como copiar desenhos para colorir? Datilografar trabalhos, contratos, recibos, notas fiscais, tudo em três vias? com papel carbono. E os moldes para bordados?Também. Era o salva-vidas das pessoas laboriosas. Qualquer escritoriozinho de ruela esburacada tinha que ter. Poderia faltar papel higiênico, mas jamais o carbono.  Qualquer mãe que prezasse o sucesso escolar dos seus filhos tinha também, guardadas em alguma gaveta várias folhas novinhas.

Sei que parece bobagem mas dá uma saudadezinha dessas pequenas coisas que habitavam meu dia-a-dia. Se esses itens não sairam de circulação, pelo menos do vocabulário das crianças saíram. E eu, que não imaginava como alguém poderia se virar no mundo sem eles, vejo que todos seguimos em frente e estamos muito bem, obrigada.

Ah as papelarias de antigamente... Graças a Deus as cartolinas ainda existem! Mas se quisermos decorar cartazes com decalque, ficaremos na mão. Eu adorava comprar decalques. Pedia para a moça do balcão e ela trazia da prateleira uma caixa de papelão cheia de decalques com as mais variadas figuras para ilustrar trabalhos, decorar cartas, cartazes ou sei lá mais o quê. Eu ficava um tempão escolhendo. Queria todos! Na dúvida, os ramos de flores sempre venciam.

Se você não sabe, os decalques eram os ancestrais do clipart.  O Control C + Control V da época era assim:  a gente mergulhava a figura num píres com água. Deixava mais ou menos um minuto e quando ela estava desgrudando do papel, pegávamos com cuidado e fazíamos com que escorregasse para o local onde ficaria para sempre. Depois era só pegar um paninho bem macio para secá-la e pronto! Uma maravilha.

Acho que chega uma época da vida em que reviver se torna mais divertido do que viver. Nesse ponto torna-se quase irresistível tentar seqüestrar o interesse de quem estiver por perto para o nosso baú de lembranças.  Não adianta muito.   É que não queremos sentir nada sozinhos. Quem bebe, quer beber acompanhado. Quem come também. Cinema bom é com alguém do lado, para discutir (ou explicar) o filme. Pois também queremos companhia para as nossas saudades. Nada mais compreensível!  Mas geralmente o que a gente consegue, se tiver sorte, é um ouvinte educado (educado por fora e inquieto por dentro).

A vida, às vezes, é cruel.

Junto com o papel almaço,o carbono e os simpáticos decalques, lembrei da minha pasta escolar, que era de couro!  Não, na época ainda não era chique. Você vai rir mas vou contar: lembro bem do surgimento das revolucionarias mochilas. No começo achei meio estranho andar com uma pasta nas costas.

Pra terminar: minha camisa do uniforme era de algodão puro. Na época isso também não era chique. Chique foi o que vi uma colega usando: uma leve e "inamassável" camisa de poliéster!   Bem que eu havia reparado que a menina estava sempre impecável e sua roupa não amassava nunca!  E eu, mesmo tomando todo o cuidado, amarfanhava. Foi quando descobri que o truque eram os uniformes de poliéster, que não amassavam! Ô inveja!

Como as coisas mudam...

Os adultos diziam, quando eu era menina, que sentiam saudades de um certo "papel mata-borrão". E eu perguntava pra que raios poderia servir aquilo. Alguém me explicou que eles eram necessários porque as canetas não eram esferográficas. As canetas-tinteiro, ou as penas, às vezes encharcavam com a tinta do potinho, entende? Então pra não borrar o trabalho usava-se o papel mata-borrão, que na minha opinião seria melhor denominado como "papel chupa-chupa".

Está chegando a época em que ninguém mais vai ser tão específico quanto aos papéis. "Mata-borrão, almaço, carbono, papel quarenta quilos, nada disso vai ser mencionado. O que as próximas gerações vão sentir saudade mesmo é do ... papel! Pura e simplesmente.

Pra você ver: eu estou escrevendo tudo isso sem matar nenhuma árvore?!

4 de mar. de 2016

Cavalo xucro


Reli alguns textos meus. Já notou que de vez em quando faço isso? Talvez eu seja a minha maior fã. É isso que chamo de saúde emocional!

Pois bem: gosto da série Recordações. É bom poder novamente e novamente e novamente escorregar para o passado e andar por aquelas velhas ruas. O bom dos textos de recordação é que eles direcionam a nossa emoção na carona da lembrança. Não é só lembrar, é sentir de novo! A emoção vai junto.

Mas relembrar traz um certo perigo, que é deixar a mente divagar, andar por onde quer. Qual o problema? É que daqui para acolá ela pode cair num buraco de más lembranças. Deus nos livre! Dói demais.

Todos temos cenas tristes no passado. Há coisas que adoraríamos que o mundo esquecesse. Desapontamentos, erros, maldades, arrependimentos, mancadas inconfessáveis, diarréia no momento errado, dívidas não saldadas, injustiças gerais. Sim, o terreno das recordações é bem perigoso, de forma que o prazer de recordar pode rapidamente azedar se formos acometidos pela recordação errada. Taí a grande utilidade de escrever. Escrever recordações é pôr rédeas no cérebro: ele só vai para onde a gente manda. 

Claro que é necessário! Não é tão fácil assim mandar na própria cabeça. Ela quer ter vida própria, pensa que se garante sozinha. A cabeça da gente é como um cavalo xucro. Ou será que você nunca foi obrigado a ouvir a mesma música por cinco dias seguidos só porque seu cérebro resolveu empacar? Pois é, a mente teima em nos massacrar com aquela musiquinha idiota por dias e dias seguidos sem pedir nossa concordância e a gente não consegue encontrar o botão "stop". Da mesma forma também não é fácil tirar da tela aquela cena da calça rasgada, ou da tosse encatarrada no meio da cerimônia. Pois deixo aqui meu melhor conselho: escreva.

Escreva textos contendo seus melhores momentos. Encha cadernos e mais cadernos. Você se sentirá um sucesso! Tente ser fiel aos fatos e não aumentar demais a glória do momento. Se não perde a graça, porque a graça é ser fiel. Quanto mais verdadeiro, mais clara e colorida será a cena projetada. Uma vez feito isso, você terá posto rédeas definitivas em sua mente e mostrado a ela quem é que manda no pedaço.

Em seu seu caderno - ou blog - estará registrado o filé da sua existência. Pra você e para a posteridade, o que é mais interessante! E através da leitura e releitura você poderá ser gentilmente conduzido às cenas que realmente interessam; à área VIP do seu passado!

Vá por mim: escreva. É a única rédea que seu cavalo xucro ainda aceita.

18 de fev. de 2016

A estrela e a lontra

O tempo passa. Tudo bem, todos sabemos disso.  Um tanto deprimente é quando um acontecimento aleatório, eventual, nos tira desse conhecimento teórico para a constatação visual.

Esses dias "reencontrei" no Facebook  uma antiga amiga de colégio de trinta anos atrás. Enviei a solicitação de amizade, disse quem eu era e ela me adicionou. Não se lembrava de mim, ficou claro, mas adicionou.

Ela sempre fez o tipo comportada-chique. Não se metia na bagunça nem em nenhum tipo de baixaria. Não lembro de te-la ouvido falar palavrão. Tínhamos um bom relacionamento mas não eramos íntimas. Estávamos sempre juntas porque ela sempre sentava ao meu lado - nunca entendi bem o por quê. Acho que porque eu era apagada e quietinha e ela não queria perder a aura. Conversávamos cordialmente mas sem confidências, intimidades ou risinhos.

Ela era tudo o que eu queria ser. Alta, magra, porte de menina rica. Educada. Pele alva e sem manchas, cabelos escuros, longos, sedosos, sempre limpos. Cabelos perfeitos, corpo perfeito, pele perfeita. O rosto não era perfeito; ela não era exatamente bela de rosto mas estava muito, muito longe da feiura. Seu rosto era muito anguloso, com maçãs salientes e nariz arrebitado muito pequeno. Tinha cara de gato. Mas o conjunto era maravilhoso, fresco e altivo. Nariz sempre empinado mas só por postura: não era metida. Falava com todo mundo, tratava todos bem mas pairava acima de qualquer vulgaridade. Nada sujo a tocava. Acho que nem mosca pousava nela.

Estudávamos em uma escola pública. Isso não quer dizer que a minha amiga fosse pobre. Não era. Naquele tempo as escolas públicas ainda prestavam.

Ela era dessas meninas que todos os meninos querem mas poucos tem coragem. Dessas que tratam todo mundo bem, muito polidamente, só porque é assim que as princesas fazem.

Esmalte e maquiagem era para as fracas: ela não usava. Cara lavada, imaculada. Suas roupas não amassavam, a meia não escorregava (sério!), a blusa não saia de dentro da saia, não grudava lama no sapato, a letra era redonda, os cadernos não faziam orelha. Era filhinha de papai.

Eu era sua melhor amiga, só que ela não sabia.

... Então a vi no Face. O ar sereno e altivo foi substituído por um sorriso simples, alegre e sem mistério. Boa troca. Mas o rosto está cheio de rugas. Meu Deus, quantas rugas!  Os olhos não brilham como antes. Também ficaram menos amendoados. A boca perdeu o atrevimento.O cabelo parecia outro cabelo. Era tudo, menos de seda.   Seu viço foi-se.

Fiquei triste e chocada. Claro que sou uma besta. O que eu esperava trinta anos depois? Só o fato de ter se mantido magra e sem barriga já é um grande feito.

Em seu álbum pude ver uma  foto solitária da sua juventude. Uma única foto que confirmava cada palavra de tudo que eu disse. Lá estava ela, luminosa e fresca. Brilhava serena como uma estrela neon. 

E eu, que me sentia uma lontra...  Hoje ela está menos estrela e eu, menos lontra. A vida nos faz dessas coisas.

14 de fev. de 2014

Sociedades Alternativa

Lembro de mim mesma, adolescente, ainda no Rio. Estava passeando em um evento animado: um cruzamento de quermesse com feirinha de artesanato. Logo na chegada minha atenção foi capturada para um upo de jovens barulhentos usando roupas esquisitas e portadores de uma felicidade mais esquisita ainda. Riam muito enquanto cantavam "Viva! Viva! Viva a Sociedade Alternativa!" "Viva! Viva! Viva a Sociedade Alternativa!"! "Viva! Viva! Viva a Sociedade Alternativa!"! Um mantra. Eles se olhavam e riam  muito enquanto cantavam isso. E eu achava algo entre engraçado e assustador - inclusive porque minha mãe puxou meu braço e me tirou dali rapidinho. "Será que eram maus? Delinquentes?" - pensei, enquanto era subtraída daqueles ameaçadores metros quadrados.

O que é Sociedade Alternativa? Enquanto cantavam às gargalhadas, de braços levantados, olhavam uns para os outros como se nas entrelinhas houvesse alguma charada que os passantes não conseguiam captar. Como se estivessem esfregando na nossa cara o mapa de algum tesouro sabendo desde já que não entenderíamos. Pareciam rir de nós. Achei que riam de nós.

Eu não fazia ideia de quem eram, por que riam, porque se vestiam daquele jeito. Depois descobri que eram hippies. Passei a adolescência achando os hippies fascinantes. Pareciam livres e assustadores. E ao que tudo indicava "Sociedade Alternativa" era algo que valia a pena ser desvendado...

REALIDADES BRASILEIRAS