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31 de out. de 2015

Pablo Neruda

(Hoje estou com Neruda na veia)

"Oh maligna, já terás achado a carta, já terás chorado de fúria / e terás insultado a memória de minha mãe, / chamando-a de cadela suja e mãe de cachorros, / já terás tomado sozinha, solitária, o chá do entardecer / a espiar os meus velhos sapatos vazios para sempre (...)
Maligna, em verdade, que noite tão grande, que terra tão só! / Cheguei mais uma vez aos dormitórios solitários, / a almoçar comida fria nos restaurantes, e uma vez ainda / atiro no chão as calças e as camisas, / não há cabides no meu quarto, nem retrato de ninguém nas paredes. / Quanta sombra da que existe em minha alma não daria para recobrar-te, / e que ameaçadores me parecem os nomes dos meses, / e a palavra inverno tem um som de tambor lúgubre."


28 de out. de 2015

Encantamento

Mas pensando bem, pra quê serve mesmo um artista?

A gente olha e só vê problemas. Gente morrendo em filas de hospitais, dentro dos hospitais, fora dos hospitais; crianças abandonadas, cidadãos acuados, doença, desemprego e mil formas de maldade. Precisamos fazer alguma coisa! Ai meu Deus o quê que eu faço? Precisamos entrar em guerra, precisamos combater! Olha a crise hídrica aí, gente! Pra quê serve um artista?

Enquanto a gente não decide o que fazer ou enquanto o que fizemos não deu resultado, bora ali ser feliz?

A gente só sabe mesmo pra que serve um artista quando, cansados da vida, nos encontramos com a arte "inútil" deles. Aí...ai, menina!

Já sorri para desconhecidos embrulhada num samba colorido. A felicidade parecia tanta que eu só queria rebolar e que o mundo parasse pra ver ou rebolasse junto. Num instante a raça humana era a coisa mais linda de Deus.   Aê gente! Vamos sobreviver! Sempre haverá música, gente linda e dentes brilhantes no salão.

Se eles - os artistas -  forem argumentar com a gente e quiserem, palavra por palavra, meter na nossa cabeça que "a vida é bela e o amor vale a pena" - ah! podemos matar rapidinho todo o romantismo bobo deles. É fácil metralhá-los com argumentos duros e rápidos, resumindo tudo em projéteis afiados. Temos argumentos, muitos argumentos. Temos estatísticas, temos boletos e dados da ONU. Temos a vida real. Não, eles não tem argumentos razoáveis que nos convençam de que isso aqui não está condenado e que vale a pena ter esperança. Eles que não me venham com palavras!

Mas claro que eles não vem com palavras! Eles vem com flautas, violinos, violão, batuque e ginga. Eles não argumentam: só mostram a vida na sua versão mais bonita e nos trazem pra dentro dela. Uma vez sequestrados, somos felizes! Felizes demais, pelo menos enquanto durar aquele êxtase. Se é breve? Que seja. Já vale.

Pois eu, moço, já cheguei num local triste demais e saí encantada, rindo para os urubus. Já cheguei pessimista e saí doce, doce. Já sorri para desconhecidos no meio da música e a pessoa sorriu de volta - ó que legal! - só porque entendeu o que eu estava sentindo e sentia igual. Estávamos todos conectados, sem disputas, bebendo da mesma água, só querendo ser felizes do jeito que Deus planejou. Enquanto estamos lá, tá valendo. Naquela hora é tudo lindo e isso basta. E se não bastar, depois a gente vê o que faz.

Quem nunca sorriu de felicidade à toa para um desconhecido à toa não sabe o que é encantamento. E é de encantamento que estou falando.  "Por isso não me pergunte por quem os artistas se desgastam. Eles se desgastam por ti."

Bem, é pra isso que serve um artista. Pra fazer nossa vida mais leve e nos mostrar o que não estávamos conseguindo enxergar.

24 de out. de 2015

Mulher translúcida

Quando os filhos crescem eles se vão. Todo mundo sabe disso.  Mas como não poderia deixar de ser, para amenizar esse fato a vida nos  concede umas  míseras compensações. Por exemplo: enquanto os filhos são pequenos nossa presença parece ser mais que fundamental. Estamos colocados no centro do mundo e de tal forma revestidos de importância que se morremos eles morrem, se sumirmos eles piram, se falhamos eles afundam. Qualquer deslize é fatal e pode semear traumas incontornáveis. Megalomania? Neurose? Não sei. Só sei que naquela fase tudo o que fazemos ou não fazemos pode ser catastrófico. Todas as nossas atitudes deixam rabichos que se arrastas pela vida como um rabo de papel que a gente não consegue descolar da calça.  Lembra da brincadeira?

Ah a cruel e doce passagem do tempo!  Quando eles crescem nós somos gentilmente apresentados à realidade e tomamos consciência do nosso próprio tamanho - e ele é mínimo.  Se um dia fomos grandes, indiscutivelmente encolhemos. Para o nosso descanso encolhemos. Alívio!  O destino do mundo não está mais em minhas mãos - dá licença que eu vou pescar.

Bem, mas há um probleminha: a coisa não pára.  Não paramos de encolher. Para o bem ou para o mal esse processo continua, incontinenti.  Até quando, meu Deus?  Resposta: até o "estágio final" que não é outro se não a completa invisibilidade - oh minha filha.

Como todos sabem, a invisibilidade é o estágio mais avançado da liberdade, só que de tão avançado ninguém quer esse bagulho. Mas não tem jeito: tornamo-nos invisíveis com o tempo. Primeiro é bom, porque perdendo importância ganhamos leveza. Mas depois... Não sei como me sentirei ao atingir esse estágio  tão avançado da existência. Por enquanto acho que estou no máximo translúcida. Funciona assim: éramos o centro do mundo; depois fomos perdendo importância e ganhando a liberdade; mas mais depois ainda essa liberdade vai se acentuando de tal forma que ninguém mais precisa da gente. E por não precisarem e estarem ocupados demais sendo fundamentais para os próprios filhos, nós vamos ganhando transparência, transparência ...  até sumir. Não, sumir não é a morte. A morte vem depois.

As mães são translúcidas. Não, isso não é um lamento.

Estive pensando que talvez a coisa toda seja parecida com uma lenta viagem de volta ao escurinho do útero.  Solidão, satisfação completa e invisibilidade. Ninguém se lembra de como era mas todos concordam que era uma gostosura. Então vamos lá.

20 de out. de 2015

Soberanos


A questão de hoje é a respeito dos soberanos do passado: por que existiam?  Quem construía a escada que os elevava acima dos demais?  Por que lhes eram dados tais privilégios? Não nos parece anti natural que uns poucos se imponham sobre os demais para sugar-lhes os bens e a liberdade? Sim, parece. Mas se a maioria pensa assim por que esse estado de coisas se perpetua?

O povo é vítima - mas vítima de quem? Quem, se não o próprio povo, construiu tal monstrengo? E se construiu, por que se queixa?

Em algum canto obscuro da mente humana foi implantando um chip que nos faz desejar estar sob autoridade. Mas tem que ser uma autoridade reluzente e opressora. Se não tiver alguém assim, a gente arranja.

A humanidade caminha em círculos.  Estamos eternamente condenados a repetir a história. Estamos aprisionados em um filme. Tirem-me daqui!

Ninguém gosta de chefes mandões. Ninguém gosta de imperadores sanguinários. Por isso nos insurgimos contra eles.  Fazemos levantes, revoluções sangrentas e  bla bla bla. Quando a poeira baixa recriamos o mesmo estado de coisas. Alteramos uma nomenclatura aqui, um rótulo ali, tentamos parecer mais "modernos e evoluídos" mas é tudo uma piada. Um grupo sempre é servido pelos demais. Chamem isso de república, império.  Chamem como quiserem.

Não venha me dizer que as leis "emanam do povo". Pelo amor de Deus. As leis servem para acalmar o povo que se considera moderno. Servem para a gente acreditar que um limite é posto às autoridades. Balela.  Estamos tão sujeitos aos caprichos dos poderosos quanto nossos antepassados.

A maldição que nos aprisiona é o nosso fascínio pela riqueza.  É esse fascínio que nos enfeitiça e nos torna súditos de quem vem folheado a ouro. Também por isso eles nos roubam: porque sua permanência no poder depende de continuarem nos fascinando. Invejamos os poderosos e dessa forma, sem querer e sem sentir, lhes damos carta branca.

Demora um bocado até entendermos que estamos em situação semelhante à dos antigos camponeses de pés sujos. Ah: os camponeses de pés sujos eram até mais livres do que. Eles não eram vigiados 24 horas por dia por câmeras fofoqueiras nem eram catalogados como somos hoje, num controle absurdo. Somos quase galinhas de granja.

Realmente é uma grande jogada esse discurso de  "eles são o povo no poder! Vamos apoiá-los! Fora, ricos!"  Enquanto os jumentos acreditarem nisso, a nova nobreza terá uma liberdade ilimitada para fazer o que bem quiser.  

O povo quer. É genético. Basta derrubar um que aparece outro, igual ou pior, louvado pela plebe ignorante e esperançosa.  

Em todos os níveis parece haver  uma disposição natural para pisar e ser pisado, adorar e ser adorado, pôr coleira e usar coleira. Se por um espaço de tempo não houver nada assim, alguém aparece para inventar.  Incrível como a liberdade nos entra quadrada goela abaixo!  

Tudo bem, faz bem à auto estima lutar contra as injustiças sociais e exploração. Vá lá, lute! Só estou dizendo que seus compatriotas não fazem outra coisa na vida a não ser idealizar uma forma de fazer tudo acontecer de novo.

Isso é uma grande pena porque nem todos pensam assim. Faço parte de uma minoria impotente que se vê diante de um povo feliz demais usando coleira desde que possam comer capim de vez em quando. Se puderem, aplaudirão com gosto os comedores de caviar.

17 de out. de 2015

Mal escrito *

Muito desconfortável quando me vejo diante de um texto meu que tenha sido mal escrito. Pra quase tudo existe perdão nessa vida: debates manjados, questionamentos  esgotados, pieguice,  declarações desinteressantes , rimas pobres e equívocos gerais. Tá,  acontece.  Mas um texto mal escrito dói diferente.
Não me refiro exatamente a erros de português,  problemas com concordância ou cedilhas atravessados. Refiro-me a idéias mal expostas, parágrafos desconexos, comparações impróprias,  divagações cansativas. Quase sempre releio várias vezes meus textos antes de publica-lo. Quando algo assim me escapa fico com a impressão de que fiz a coisa certa mas o texto entortou depois, como um bolo que murcha no forno depois que a cozinheira abre sua porta para checar seu o progresso. Ela fecha a portinhola do forno e o bicho entorta em seguida por conta própria.  Sim, se acontece com bolos por que não crer que aconteça com textos?
Esse texto aqui não passa de uma coisa dispensável. Sem graça sim, mas não exatamente "mal escrito". Ele veio à luz só para que vocês saibam que tenho auto crítica e as vezes até fico cabisbaixa.
Por algum motivo acordei acreditando que vocês precisavam saber disso. Obrigada e até a próxima.

16 de out. de 2015

Dinheiro = Poder

Em primeiro lugar: não me xingue.

Li esses dias a seguinte frase: "Sem sombra de dúvida, a vontade do capitalista consiste em encher os bolsos, o mais que possa..." (Karl Marx).  Discordo. Mas posso concordar se em seguida Marx emendar dizendo que todos somos capitalistas. Não são "os capitalistas" que querem encher os bolsos. TODOS queremos. 

Isto posto, tenho a dizer que ninguém quer dinheiro pelo dinheiro em si. Não há graça nenhuma em colecionar milhares de cédulas exatamente iguais. O bom do dinheiro é o poder e sensação de segurança que ele traz.  Todos querem poder e segurança, tanto os "monstruosos capitalistas" quanto os "puros comunistas" . 

Acontece que os que demonizam o capitalismo têm tanta ânsia por poder  quanto os capitalistas tem ânsia por dinheiro. Se considerarmos que dinheiro é poder, vemos o que cada um carrega de hipocrisia.

Não se deve criar nada para o homem  - muito menos as leis - sem levar em conta como o homem realmente é.  As leis não servem para modificar a nossa natureza, mas para impor limites a ela. Lei nenhuma nos tornará em anjos benevolentes. E toda tentativa de transformar os demais em anjos benevolentes transforma em demônio quem está no poder.

Justiça social é maravilhoso mas tem que ser erguida em bases sólidas, não em idéias furadas. Devemos impor limites ao capitalismo? Sim. Para isso serve um governo decente. É possível tirar proveito do empreendedorismo capitalista sem detonar a economia. Não vamos matar o cão de fome; vamos apenas limitar seu quinhão para continuar produzindo mas sem devorar tudo ao seu redor. Repito: para isso servem os governos DECENTES: para regular e tirar proveito do devorador, não para tomar o lugar dele.

Ora, se segurança e poder são desejos comuns a todos os homens, há de se concordar que todos queremos as mesmas coisas independentemente da cor da nossa bandeira.  Como não fica bem proclamar isso em discurso, laça-se mão da malícia de fazer os ouvintes crerem que só os outros têm ambições.

Enquanto o poder corrompe, o poder absoluto corrompe absolutamente (John Emerich Edward Dalberg-Acton).  Todos os que separam a sociedade em "eles" e "nós", se colocam numa posição de superioridade maligna.  

Civilizar (legislar) significa impor limites ao que somos. Somos ambiciosos todos nós, não "eles".  Deveríamos partir daí. Quem não se enxerga, não enxerga mais nada. E quem não enxerga nada, não tem capacidade nem direito de governar.

12 de out. de 2015

Os frangos, nós e os vermes




Não sou vegetariana. Comer carne é animalesco, violento, gostoso e o sangue é só um detalhe. Em minha defesa tenho a dizer que não sou o único animal carnívoro e desalmado que pisa o planeta. 

Não, não sou tão desalmada. Estive pensando na situação dos frangos...

Quantas e quantas vezes já me flagrei com um frango entre os dentes e o coração pesado a considerar a brevidade daquela vidinha tão desprovida de sentido. Tem sido doloroso imaginar que algo sagrado - a VIDA - possa acontecer sob determinações contábeis com o fim único de ser destroçado por humanos impiedosos.

Pense em toda aquela expectativa da galinha, do "coito" à constatação de que mais um lindo ovo viria ao mundo! E para quê? Pra ser quebrado em minha frigideira. Ou sadicamente alimentado e espionado até atingir a idade do abate. Que porcaria de vida é essa?!

Podemos dizer o mesmo do boi e de tantos outros desafortunados que pisaram esse mundo sem perceber que nenhuma de suas qualidades seria apreciada, a não ser o valor nutritivo.

Do nascimento à morte, o que pode haver de interessante na vida de um bicho desses? Por que desenvolveram inutilmente habilidades? Por que aprenderam a andar, nadar ou voar? Por que ter lindas penas ou pelos macios se tudo se acabará no Auschwitz da nossa cozinha?!

Qual a especial ventura que eles experimentaram? Qual o plano de existência, o ato de bravura ou sonho a ser registrado? Quem se interessa pelo que cada um desses animais possa ter de singular? Manias, preferências, fobias, sobressaltos... De nada disso restará lembrança. Passam pela vida como coisas vãs.  

Sabe, isso me inquieta. Não o suficiente para passar fome, mas inquieta.

Ah como é confortável ser contada entre os humanos! Eu: um ser superior! Os reis da floresta somos nós! Que chique mandar no pedaço, escolher quem morre e quem não morre, se é com fritas ou farofa. Somos quase divinos. Pelo menos em comparação a uma lula eu sou. Falo por mim - não sei você.

Então...  Enquanto pesarosamente eu comia e lamentava a má sorte daqueles azarados, me ocorreu o seguinte pensamento:  é possível que esse tipo de consideração também ocupe a mente dos vermes que nos comerão. Talvez entre uma mastigada e outra eles imaginem qual seria nossa reação se descobríssemos que nascemos apenas para alimentá-los  e que todas as nossas lutas e conquistas são só passa-tempo enquanto engordamos - para eles. Talvez sintam por nós a mesma peninha cínica que eu sinto pelas galinhas e bois. 
- "Pobres humanos... Que sentido tem suas vidas? Tanta correria, privação e aborrecimento por nada! Se eles soubessem que a única finalidade das suas existências é servirem de alimento para nós! Ô vidinha mais besta a dos humanos! Se soubessem a verdade da sua própria insignificância eles deixariam de levar seus problemas ridículos a sério. Coitados..."

Que mundo estranho o nosso!

8 de out. de 2015

Incompartilhável

O ser humano é gregário.

Embora a necessidade de estarmos juntos possa ser motivada também por questões práticas, parece certo que o "estar juntos" se destina a atender exigências humanas de caráter mais emocional.

Os emocionalmente reclusos que me perdoem mas compartilhar experiências é fundamental. Há dois níveis de compartilhamento de experiências: um deles é bem básico e se resume apenas em contar o que aconteceu. Ao fazer o outro saber o que eu sei, me sinto mais irmanada com ele de alguma forma.  Teremos algo em comum: conhecimento. Acho lindo quando chego na casa do meu filho e minha neta me olha sorrindo e bate no peito para mostrar seu vestidinho. Ela quer que eu veja, simplesmente. "Olhe que legal meu vestidinho novo!"  Claro que eu digo "oh, que vestidinho lindo!" E ela vai-se embora feliz e satisfeita.

Mas nem sempre contar, ou mostrar, satisfaz. O segundo nível de compartilhamento é quando a gente consegue que o outro sinta o que sentimos. Precisamos que ele saiba a dimensão e profundidade e , se possível, que sinta a mesma coisa. Só aí a solidão acaba e nos sentimos finalmente acompanhados e compartilhados.

Talvez por isso a morte seja a experiência mais solitária de que se tem registro...

É aflitivo não conseguir partilhar. É aflitivo explicar, detalhar e ainda assim ver a outra pessoa impassível, não-tocada, virgem da nossa emoção. É como um muro entre as pessoas. Estar condenado a experimentar algo sozinho é ruim. Os filmes geralmente nos condenam a isso. Como? Veja:

Tente explicar para os mais jovens (por exemplo) aquele filme que marcou a sua juventude. É frustrante. Primeiro porque a trilha sonora será totalmente fora do gosto do momento. E o padrão de beleza? Lembro do quanto eu e meus irmãos ríamos quando a mamãe tentava nos fazer ver o quanto Clark Gable era bonito e sensual. A gente achava ele um bundão. Ela mandava olhar de novo e não entendia que não víssemos o que ela via. Outra coisa são os figurinos. Uma princesa medieval de um filme de 1930 vai nos parecer muito breguinha perto de uma princesa medieval retratada agora no século XXI. E não me pergunte qual a versão verdadeira. Os dramas do passado parecem ridículos aos nossos olhos. As virtudes do passado parecem falsas demais, inverossímeis ou simplesmente babacas.

Pior do que não conseguir transmitir o encantamento do passado para a nova geração é não conseguir fazê-lo para nós mesmos. Lembro de alguns constrangimentos que já passei nessa área. Eu falava há anos da emoção e suspense que foi assistir O Iluminado. Marcamos uma "seção pipoca" - eu e meus filhos - para que eles vissem o que é um filme de suspense de primeira. O resultado foi catastrófico. Nem eu consegui ver o que via no passado. Achei um porre. A questão é que este filme fez tanto sucesso que acabou sendo muito imitado.  Todos os truques de filmagem, de susto e de de horror já foram mais do que imitados, de forma que quando assistimos novamente a história parece que o original é que copiou o posterior. Sei, é injusto, mas é assim que funciona. Os jovens olham e dizem que "esse cara não é nada original! Já vi isso mil vezes!" Sim, ele foi o primeiro, copiado mil vezes pelos outros mas e daí? Quem quer saber disso? E lembra da heroína da história magricela, com uma roupa horrível gritando de medo com aquela cara de retardada?  Jesus, foi um constrangimento àparte!

Não, filmes são incompartilháveis.

Até hoje lamento ter assistido novamente O Iluminado. Eu deveria ter guardado para mim aquela boa lembrança de uma excelente película. Estraguei tudo vendo novamente. E ainda perdi credibilidade com a garotada.

É claro que existem exceções, como A Noviça Rebelde. Posso assistir mil vezes que vou achar lindo do mesmo jeito, mas não adianta querer transmitir isso para mais ninguém. Tenho que assistir sozinha e ficar calada porque não vou suportar que eles riam da Julie Andrews ou do Christopher Plummer!

As maiores emoções da vida são incomunicáveis. Tudo bem, isso eu já aceito, mas o pior de tudo é não conseguimos reproduzir o clima nem para nós mesmos. Lugares, filmes, amores... Melhor deixar tudo guardado na gaveta do passado. É mais respeitoso e reverente do que descobrir que o galã da sua vida não era tão galã assim ou que as sobrancelhas da Marlene Dietrich eram hilárias.

O melhor conservante para nossas mais nobres emoções é a memória. Se expostas à claridade do presente elas se desintegram rapidamente e, no final, descobrimos que ficamos mais pobres.

4 de out. de 2015

Draminha


De todos os dramas que maltratam os humanos, acho que um dos mais aflitivos é o de saber o que precisa ser mudado mas não conseguir fazê-lo.

Esse é o drama que nos acompanha sempre, nos momentos tristes e nos momentos felizes da vida. Porque até nos momentos felizes é possível melhorar alguma coisa.  Sim, mesmo na alegria há providências de ordem prática para eternizar a felicidade ou pelo menos fazê-la durar mais um pouquinho.  É como na questão do peso: não basta ter ficado magra. É necessário manter a magreza, afugentar a gordura! Isso é tarefa para sempre.

É fácil olhar para trás e entender certos erros. "Deixei de fazer porque não sabia que as coisas eram assim. Foi tolice, foi falta de informação, de maturidade!" Ok, eu te absolvo. Reze quinhentas ave-marias e siga em frente.  Mas como entender e perdoar quando eu sabia, via, tinha conhecimento, queria fazer mas... simplesmente não fiz?

O que fazer contra essa força estranha que nos impede se sermos o que queremos ser? Temos mesmo tanto poder sobre nós mesmos ou isso não passa de ficção?  É como se algo nos puxasse para baixo o tempo todo. Se sei que minhas palavras ríspidas azedam meu relacionamento e se prezo esse relacionamento, por que simplesmente não agir de outro modo? O que me impede?

Sou duas? Existe outra de mim conspirando contra mim dentro de mim?

Penso que esse drama não é apenas particular. Ele é como um vapor maldito que sobe do chão e azeda o planeta inteiro.  Conhecemos a solução para muitos males sociais mas simplesmente nos mantemos inertes. Todos sabemos como viver em paz, como preservar o planeta, como manter a saúde, como nos alimentarmos, como tratar as pessoas. No entanto esse saber de nada nos aproveita, só nos condena. Dia após dia nos tornamos mais e mais imperdoáveis. Se existe um castigo para isso, estamos fritos.

Eu sei exatamente o que deveria fazer para me tornar uma Cristina melhor. Mas não faço. Não sei se algo conspira contra mim ou se me falta disposição. Também não sei se a falta de disposição é justamente a prova de que não quero melhorar coisa nenhuma e só estou me iludindo. Seria a falta de disposição uma prova da minha real  falta de vontade?  Ou se é perfeitamente possível que a vontade conviva com a falta de disposição? Ora, nós os humanos somos
contraditórios por natureza, então não seria absurdo admitir essa última hipótese.

Nada sei...  motivo pelo qual acabo de decidir que a melhor coisa a fazer é ir lá na cozinha tomar um cafezinho. Com açúcar (mesmo que eu esteja querendo emagrecer).

1 de out. de 2015

Mágoa & Ódio



A gente não dá muita atenção à mágoa. Normal. A mágoa, como personagem desse teatro fétido que é a vida, é um dos personagens menos exigentes; não fala muito e raramente confronta.  Damos muito, mas muito mais atenção ao ódio. 

O ódio é explosivo e sabe se fazer notar. Ele simplesmente aparece mesmo quando não quer aparecer.  Os resultados do ódio são óbvios até aos olhos mais desatentos. Mas a mágoa ... A verdade é que não levamos a sério nada que pareça poder ser adiado infinitamente.  Se dá pra empurrar com a barriga a gente empurra e finge que pode continuar fazendo isso para sempre. 

A mágoa vai corroendo por dentro até não sobrar mais nada da estrutura original.  Posso comparar assim: é como se o ódio fosse um tremendo soco na cara enquanto a mágoa seria um câncer. Há mil analgésicos que podem funcionar por anos, de forma que é fácil fazermos de conta que não está doendo.  Se temos um "câncer-mágoa "somos capazes de sorrir, passear, manter relacionamentos. Nós escondemos "a coisa", disfarçamos, fingimos que não está lá porque se olharmos em seus olhos a vida nunca mais será a mesma. Aí sim ela exigirá uma resposta. Mas não queremos respostas, queremos apenas manter a vida que amamos até que... Até que realmente não seja mais possível.

Enquanto driblamos a mágoa ela continua seu trabalho silencioso e implacável de corroer com dentes de aço, de dentro pra fora, os mais lindos palácios que conhecemos. Não deveríamos brincar com a mágoa. 

O ódio não aceita panos quentes nem nhém-nhém-nhém.  É tudo para já, sem adiamentos. O ódio sofre muito em ser adiado - a mágoa não. Ela aceita todos os consolos e adiamentos e lero-leros. Ou melhor: finge que aceita! Enquanto isso ela vai crescendo até explodir. E enquanto ela finge que aceita os despistes, o que a outra parte faz? Geralmente magoa de novo. Só porque acha que dá, acha que pode. Só porque não vê resultados imediatos da sua ação. Então mantém a postura magoante de novo e de novo porque jura que está contornando a situação, que está tudo está sob controle. Mas não, não está. 

Há algo de profundamente masoquista na mágoa. Ao contrário do ódio, que é sádico. A mágoa dói nas primeiras vezes mas depois passa a gostar do jogo. Então ela até se expõe de novo e de novo. No fundo a mágoa queria ser ódio, mas não consegue. Por isso se expõe assim como o sujeito brigão bebe: pra criar coragem. Sim, às vezes a mágoa quer ser magoada porque sabe que ela mesma é uma bomba de efeito retardado. Para adiantar o resultado é necessário encurtar a história, encher logo a medida. A mágoa então se compraz em ser insuflada porque no fundo já percebeu que todo o sistema está condenado, então nada mais bem-vindo do que apressar o fim. 

Você pode contornar uma explosão de ódio mas a explosão da mágoa é irremediável, fatal e definitiva. Vem como cachoeira que cai porque quer cair, como o prédio que desaba porque quer desabar e se diverte com o fato de que ninguém pode frear a situação.


Resumo: se for para magoar magoe logo, magoe muito e repita o lance. Faça o serviço bem feito porque quem não aprendeu a odiar precisa disso para explodir.

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