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17 de out. de 2023

"MATOU PARA LIMPAR A HONRA"

A um tempo atrás  era assim. 

Quando a mulher traía o marido ela corria o risco de ser assassinada por ele. Não era sempre que acontecia, mas o risco era grande.  O homem seria preso, claro. A sociedade desaprovaria o crime mas ... Sempre haveria um "mas".  Seria um homicídio causado por grave abalo emocional, portanto um crime de menor gravidade.

Hoje as pessoas, ao analisar o passado, dizem que aquilo acontecia porque a mulher era vista como propriedade do marido.  Discordo do motivo.

Não é que a mulher fosse vista como uma propriedade.  O problema é que a figura do traído era profundamente vexatória para o homem, a ponto de lhe degradar a imagem.  Era o peso de um  ridículo tão grande que se tornava insuportável  para alguns. Uma terapia ajudaria, mas um machão jamais recorreria a ela. 

Para o homem antigo era como se da noite para o dia ele fosse transformado de cidadão, pai de família e trabalhador honrado em um simples palhaço.   O papel de traído era ridículo demais para a época.  

Já quando era o homem que traía, a reação da sociedade era completamente diferente.  Pra começar ninguém ridicularizava a mulher. Pelo contrário:  as pessoas sentiam pena, se solidarizavam.  E mais: se ela não abandonasse o marido e continuasse a cuidar dos filhos, passaria a ser vista como "uma grande mulher" , mulher exemplar, símbolo de força e caráter. Isso por priorizar a união familiar, se sacrificar pelos filhos e aguentar a situação.  

O homem traído virava palhaço e a mulher traída virava santa. Ok, posso estar exagerando, mas era mais ou menos isso.

A mulher só se tornava vilã quando traía.  A traição feminina era muito mais grave do que a masculina. Não havia perdão. 

Então o crime - a meu ver - não tinha nada a ver com a ideia de posse mas com o rótulo humilhante que a sociedade da época colocava sobre o homem. Para se livrar do peso da humilhação, alguns enlouqueciam.    No conceito de muitos machos, só o assassinato ("lavar a honra")   tiraria da cara da sociedade o risinho de deboche.  Ele passaria a ser o monstro, mas não o palhaço da história. 

Assim funcionava grande parte das cabeças masculinas. Obvio que um homem equilibrado, bem resolvido e seguro de si jamais mataria a própria esposa. Simplesmente lhe viraria as costas e seguiria a vida de cabeça erguida, afinal o erro não foi dele, mas dela.  Mas infelizmente nem todos tinham essa firmeza interna e o peso da opinião alheia era mais importante do que tudo na vida. 

Penso que era assim.  Mas e hoje,  como é?

Não é nada incomum as mulheres traídas matarem seus maridos adúlteros.  Pra começar, quando acontece  a mulher não sofre grande repulsa por parte da sociedade. Parece até que há um certo  consenso na ideia de que "provavelmente ele mereceu. Ele deve ter levado ela a loucura, coitada." A mulher não mata pela honra mas pelo ódio de ter sido enganada. E pela dor do ciúme e pela dor de imaginar o risinho "da outra" pelas suas costas.

O homicídio praticado pela mulher e o praticado pelo homem não são vistos da mesma forma pela sociedade. Quando a mulher mata ninguém a acusa de "sentimento de posse" sobre o marido. Já quando o homem mata já uma certeza geral de que foi por ele se sentir dono dela. Quando a mulher mata as pessoas reagem como se o homem tivesse feito por merecer e ela é a vítima, por ter sido quase empurrada àquele ato tresloucado.  Quando o homem mata, ninguém acha que houve alguma contribuição externa para tamanha vilania. Ninguém diz que a mulher contribuiu para a desgraça ou fez por merecer. A mulher nunca merece. Só o homem merece.  

Se antes a sociedade era injusta com as mulheres, agora é injusta com os homens. O vilão é sempre ele seja como for:  matando ou morrendo.  No caso da mulher,  se  ela matou é porque "não aguentou mais o sofrimento" e se morreu era porque ele era tão ruim que acabou tirando-lhe a vida.  

Sendo assim, parece-me que a situação é mais injusta hoje do que a de antigamente.  Porque antigamente pelo menos o papel de vilão se alternava! A mulher conseguia ser vilã quando traía. Hoje não.  

Não evoluímos NADA.  A evolução está na  imparcialidade. O sentimento de que "agora chegou a nossa vez de dar o  troco" é  profundamente adoecido e socialmente nocivo.

Agora me pergunto: quanto tempo ainda deverá se passar para pelo menos começarmos a desejar a JUSTIÇA e a trabalhar por ela? 
 

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