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28 de fev. de 2014

Síndrome de Down *

Hoje vi um menininho com síndrome de Down.
Antigamente eu sentiria pena dele ou pena dos pais dele. Antigamente eu não conseguia absorver a necessidade de alguém vir ao mundo naquelas condições. E eu olharia seus pais imaginando a tristeza que era jamais se alegrarem porque ele passou no concurso ou casou ou fez um bom negócio.Hoje raciocino de forma tão diferente!

O que é ter um filho que jamais cometerá um ato de maldade e jamais será odiado? O que é ter um filho que nunca vai experimentar a dor do fracasso, mas viverá sempre em um mundo mais simples onde não há pressão por resultados? O que é ter um filho que permanecerá ao seu lado enquanto você viver e, na sua inocência, jamais sentirá a dor, o medo e a angústia que você sente quando assiste o jornal? Também não passará anos preso em um casamento infeliz nem atropelará nenhuma criança.

Não sei se é bem assim que eles são, mas isso me passou pela cabeça aplicando-se a todos aqueles que tem limitações mentais.

Ninguém escolheria ter um filho com Down. Eu não escolheria. Sou felicíssima por ter os filhos que tenho como são, inteligentes e saudáveis. Mas é claro que tudo na vida tem seu ônus e compensações. Olhando para o menininho de sorriso mole imaginei que talvez fosse um anjo que Deus colocou no mundo sem que percebêssemos.  Quem sabe Deus queria "descobrir" qual seria nossa reação diante de uma pessoa pura, mas que já tivesse perdido a aparência irresistível de um bebê.

Quem sou eu diante de uma pessoa assim? Passo ou não passo no teste?

Talvez a pureza sejam coisas muito estranhas aos nossos olhos mas nem percebemos isso. O que você diria de um amigo que doou todos os bens aos pobres? O que você diz de uma mulher que perdoa infinitamente o mau marido?

Talvez a pureza seja incompreensível para nós e nos pareça tão mole e desajeitada como os gestos dessas crianças. Quem sabe se é por isso que vivemos em um mundo tão mal?    Os bons muitas vezes são vistos como portadores de alguma doença crônica que  lhes colocaria em desvantagem perante a sociedade. A rejeição aos Down é a seta que aponta para a raiz do nosso problema.

Talvez os Down sejam nosso teste e treinamento. Quando aceitarmos serenamente a bondade inocente como ela é, quando não mais a acharmos estranha ou desajeitada, só aí tenhamos condição de começar a construir uma sociedade mais benigna.

Os Down são a prova do nosso fracasso e ao mesmo tempo nossa chance de redenção.

24 de fev. de 2014

Preparação

Aos poucos, querendo ou não, a gente vai se sentindo muito bem e à vontade no papel de tia, mãe, vovó, senhora. A vida é muito bonita, principalmente quando descobrimos que a maioria dos nossos antigos medos não tinham razão de ser.

Lembro da primeira vez que ouvi alguém me chamar de "coroa". Era um rapazinho de uns 16 anos mais ou menos. Eu ia passando e ele exclamou: "ô coroa gostosa!"  Não morri. Tô vivinha, pra contar a história.

A vida é como uma grande caixa onde jogamos objetos de vários formatos todos os dias. Fazemos isso sempre muito preocupados achando que não vão caber; "a caixa" não suportará tudo o que lhe está sendo imposto.  Quando a sacudimos, percebemos que as coisas se acomodam por si mesmas e no final das contas tudo encontra o seu lugar. Um dia caixa fica cheia: não faltou nada, não sobrou nada.

Não há o que temer. Quando cada coisa que tem que acontecer, acontecer de fato, estaremos simplesmente preparados.

Quando eu tinha 17 anos pensava com horror nos meus 50. Era como o fim da vida, o fim da linha, a decreptude, um mundo cinzento e triste. Quando pensava nisso eu sabia que não estava preparada para viver aquilo. "Cinquenta anos? É demais para mim! Será possível alguém ser feliz com cinquenta anos?"

De fato aos dezessete eu não estava mesmo preparada. Aliás, alguém que consegue ter um pensamento tao equivocado como esse não está preparado pra nada na vida! Mas então o tempo passou. Devagarzinho, dia apos dia, como naqueles programas de computador em que um rosto se transforma em outro rosto mas a gente não consegue entender como nem a partir de quando. Fui sendo trabalhada pelo tempo e aqui estou eu - muito bem, obrigada.

Aos dezessete fui tola e sábia: fui sábia em perceber meu despreparo, mas fui tola em olhar o futuro imaginando que seria jogada lá de repente pela máquina do tempo.

Agora olho para a velhice e sinto a mesma tentação de achar que enfrentarei o horror dos horrores e concluir, por fim, que não estou preparada. Sinto a tentação, mas dessa vez não cedo a ela. Aprendi a lição. Já não tenho mais medo. Sei que nos sacolejos da vida eu estarei preparada, perfeitamente preparada.

Essa tranquilidade de hoje me leva a concluir que sou mais calma e feliz agora do que quando sofria as tolas inquietações dos meus dezessete anos. É lindo ser jovem, mas não é nada confortável.

Se tem um ditado que eu gosto e é o "meu" ditado, é este aqui: "No fim, dá tudo certo."

20 de fev. de 2014

Caminho inverso


Talvez eu tenha errado muito quando decidi viver só da verdade e desprezar todas as ilusões.  Cá pra nós, foi uma decisão muito pretensiosa.

Reanalisando a questão noto que as ilusões são o que temos de mais palpável na vida. É fácil rotular uma ideia como "ilusão".  Não há tanta dificuldade em detectarmos uma ilusão se esgueirando pelo ambiente mas e quanto aos outros rótulos da vida?   Tudo o mais é uma complicação definir.

Só enxergamos bem os nossos próprios sonhos. Podemos passar horas explanando nossas utopias, previsões e miragens. Temos esquemas, plantas, fotos, tudo arrumadinho. Sim, hoje é um daqueles dias em que declaro resolutamente que não há ambiente mais claro do que o lado de dentro da nossa cabeça.

Não sei explicar nada sobre o prédio que está ali na minha frente. Asseguro que é feito com concreto, tijolos, ferro e financiamento da Caixa. Nada mais. Também nada sei sobre meu celular, minha geladeira, a cadeira, o asfalto. Notem que o "mundo concreto" é absolutamente misterioso e cheio de surpresas. Tudo é composto por uma infinidade de moléculas irrequietas e temperamentais: no frio se comportam de um jeito, no calor de outro, na altitude têm uma personalidade, debaixo d'água já mudam a cara. Como se isso fosse pouco, costumam associar-se com outras e fazer combinações inimagináveis. Quem pode com isso?

Nem preciso do mundo inanimado para me sentir perdida: sou uma desinformada quanto aos travestis da esquina, as elucubrações dos políticos, os sentimentos caninos ou os caprichos das plantas.  Mas aqui, dentro da minha cabeça, tenho um mundo bem mais exato e compreensível. Por que abrir mão disso e privilegiar uma objetividade exterior que, no final da contas, não existe?  Meu mundo interior é mais claro, estou mais ambientada. Por ele caminho no escuro, sem acender a luz nem tropeçar nos móveis. Meus sonhos, lembranças e impressões estão organizados em estantes, acessíveis e em linguagem corrente. Com o equipamento certo eu poderia projetá-los na parede da sua sala!

Por isso decidi que vou fazer o caminho inverso: voltar atrás, revirar a lata de lixo e pegar de volta todas as ilusões que eu havia jogado fora.  Chega de arroubos.  Vou resgatá-las, dar uma boa espanada e readmiti-las no aconchego seguro da minha caixa craniana.

Cansei da "objetividade fluida" do mundo físico. Volto a recolher-me, em mim mesma, qual sábio jabuti.

17 de fev. de 2014

Reverência & Criatividade

Só é criativo quem deixa de ser reverente. Acho que a reverencia é um dos venenos mais letais contra a autenticidade.

Não é proposital, claro. Mas acho que quem admira demais uma pessoa, querendo ou não acaba se bloqueando, por causa da comparação. Ou imitando. O reverente corre sempre o risco de ficar cada dia menos parecido consigo mesmo. "Sofrer influência de" é deixar-se contaminar. Difícil fugir disso.

14 de fev. de 2014

Sociedades Alternativa

Lembro de mim mesma, adolescente, ainda no Rio. Estava passeando em um evento animado: um cruzamento de quermesse com feirinha de artesanato. Logo na chegada minha atenção foi capturada para um upo de jovens barulhentos usando roupas esquisitas e portadores de uma felicidade mais esquisita ainda. Riam muito enquanto cantavam "Viva! Viva! Viva a Sociedade Alternativa!" "Viva! Viva! Viva a Sociedade Alternativa!"! "Viva! Viva! Viva a Sociedade Alternativa!"! Um mantra. Eles se olhavam e riam  muito enquanto cantavam isso. E eu achava algo entre engraçado e assustador - inclusive porque minha mãe puxou meu braço e me tirou dali rapidinho. "Será que eram maus? Delinquentes?" - pensei, enquanto era subtraída daqueles ameaçadores metros quadrados.

O que é Sociedade Alternativa? Enquanto cantavam às gargalhadas, de braços levantados, olhavam uns para os outros como se nas entrelinhas houvesse alguma charada que os passantes não conseguiam captar. Como se estivessem esfregando na nossa cara o mapa de algum tesouro sabendo desde já que não entenderíamos. Pareciam rir de nós. Achei que riam de nós.

Eu não fazia ideia de quem eram, por que riam, porque se vestiam daquele jeito. Depois descobri que eram hippies. Passei a adolescência achando os hippies fascinantes. Pareciam livres e assustadores. E ao que tudo indicava "Sociedade Alternativa" era algo que valia a pena ser desvendado...

10 de fev. de 2014

No meu tempo

Lembro de minha mãe olhando o mundo ao redor, o mundo que não era mais dela. Ouvia os noticiários, reparava as novas tendências, modismos, a alteração dos costumes, as banalizações impensáveis, o embrutecimento das pessoas... ela olhava tudo isso e concluía: "é...  não tem mais lugar para mim nesse mundo não. Estou velha demais, estou antiquada, não me encaixo..."

Ela falava essas coisas como alguém que já passara da idade das indignações.  Passara também algumas  das esperanças próprias da juventude. Tudo parecia ruir: o mundo que até então conhecera, firmado em valores aparentemente sólidos e reconhecíveis, aquele mundo desvanecia. O sentimento é de orfandade, deslocamento. Uma espécie de solidão.  Ela falava essas coisas calmamente, em paz, como quem cansa da briga e simplesmente entrega os pontos.

Acho que a velhice se completa nesse ponto: quando termina a energia para tentar se adaptar. Porque em um primeiro momento não queremos adaptação: queremos mudar o mundo. Depois de algumas pelejas entendemos que algumas coisas mudam de qualquer jeito, é assim mesmo e tentar conter o mar é dar murro em ponta de faca. Vem então a fase das tentativas de adaptação: tentamos criar teorias reconfortantes ou entender teorias para nós impostas. Tentamos explicar as coisas para nós mesmos. É um auto catequismo teimoso. Tudo para sofrermos menos. "Vai ver que eu é que estou errada. O mundo é assim mesmo e existe sempre um lado positivo nas coisas. Talvez eu precise começar a pensar diferente, ver as questões com outros olhos. Preciso ser mais flexível."  Funciona por um tempo. Cria-se uma paz artificial. Uma espécie de sono a peso de remédios.


Quando os constantes esforços para adaptação passam a significar auto agressão... aí já é sinal de que a fórmula esgotou.  Continuar tentando é cuspir em si mesmo, renegar-se. Poucos se odeiam a esse ponto. Quem já foi feliz não consegue desprezar o ambiente onde foi cozinhada a própria ventura. Você ama até a panela de um bom cozido.

Passamos a vida tentando mudar o mundo, depois tentando nos mudar para o mundo. Por fim admitimos tanto quem somos quanto o que o mundo é.

Envelhecimento é quando a gente começa a não ver tanta graça em permanecer em uma festa esculhambada só porque a galera está lá.  É quando, no meio da zoeira, lembramos que sempre é possível voltar pra casa e repousar.


Cada dia entendo mais a minha mãe. Sou bem mais nova do que ela quando proferiu a dita frase. Mesmo assim tomo-a para mim. Não reconheço mais, em lugar algum, o mundo no qual nasci.

É com uma alegria pouco exaltada que anuncio para mim mesma minha chegada nesta estação: a estação onde a gente espera o trem para seguir adiante. A estação onde entendemos que valeu, mas já deu.

Estou começando a achar, como ela, que esse mundo não está mais tendo lugar para mim. Não me encaixo, não quero mais me encaixar. Protesto demais, canso e, por fim, me torno cansativa.

Estranho... Ao mesmo tempo em que cresço em compreensão para com o próximo, também diminuo em algum tipo de flexibilidade. Parece contraditório... Difícil de explicar. Mas quem quer a minha explicação, afinal de contas?

Portanto não critique um velho quando ele diz "no meu tempo..."  É uma expressão bem apropriada. Chega mesmo um tempo em que o tempo não é mais o nosso tempo.

E quer saber de uma coisa? Será que esse trem ainda vai demorar?

6 de fev. de 2014

Adeus, dia!


É noite e estou cansada. Tentei ver um filme mas cochilei. Ainda assim reluto em me despedir do meu dia.  Hoje eu não queria dizer "adeus" para esse conjunto de 24 horas com seu colar de minutinhos enfeitados de segundos.

Meu "hoje" está me parecendo tão ímpar! Tenho certeza de que alguma coisa eu não soube, alguém viria mas não veio, algum segredo não me contaram mas aconteceu, uma cena eu perdi, uma boa sorte me sorriu pelas costas. Sensação de que não vi tudo que poderia.

Há dias em que a gente nem percebe o fim e até torce por ele, mas há outros em que isso incomoda. Hoje é como um filme que a gente sabe que está acabando mas sente que está faltando aquele fecho, sabe, aquela última e decisiva cena. Hoje está tudo com cara de filme francês. No final a gente olha para os lados e pergunta "e aí, acabou?"

Parece que se eu for dormir, perco a cereja do bolo. Mas não aguento: morro hoje, amanhã ressuscito. Tomara que guardem a minha cereja.

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