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6 de nov. de 2017

Salvando a própria pele


Sobre a afirmativa de Jesus, de que "quem quiser salvar a sua vida vai perde-la e quem a perder por causa de mim e do evangelho vai achá-la":

É interessante notar que isso não se aplica apenas  ao evangelho. Gostaria de tirar  da conversa  a questão espiritual ou religiosa e refletir no seguinte:

Pra tudo na vida essa máxima pode ser aplicada. Se nossa existência  se resume  a "salvar a própria vida", a gente simplesmente não vive. Se tudo o que eu fizer ou deixar de fazer tiver a ver com encompridar a existência,  acabarei  sendo enterrada viva, dentro de casa.  

Há pessoas que não vão a lugar algum "por causa da violência". Há os que não comem uma lista imensa de alimentos por causa dos agrotóxicos,  por causa dos hormônios ou dos aditivos químicos ,  do meio ambiente etc. Privam-se de se arriscar em  lugares, romances, investimentos, comidas, contato humano, novas experiências... Privam-se da vida "por amor à vida". Não é uma contradição?

Não haveria heróis se todos pensassem apenas em preservar  a própria pele. Porque "dar a vida" não significa exatamente morrer por alguém. Dar a vida é também disponibilizar a vida, arriscar a vida, meter a cara.

As maiores personalidades do mundo, os grandes aventureiros e revolucionários não colocaram a própria sobrevivência em primeiro lugar. Quem o faz não passa de uma vela apagada, na maioria das vezes. Uma bola murcha.   Os grandes homens preocuparam-se mais com o tipo de vida que queriam leva  do que com  longevidade. Mais qualidade do que quantidade.  O resultado é que viveram vidas muito mais intensas e interessantes do que a da maioria das pessoas.

Não sugiro que vivamos irresponsavelmente, mas dedicar toda a vida a apenas resguardar a vida realmente não é  viver .  

Há pessoas que morreram jovens mas viveram muito. E há os velhos que se preservaram tanto que hoje tem cheiro de naftalina, dinheiro guardado para os outros  e um album de recordações chocho.  


2 de nov. de 2017

"Sozinha deles"

Isso era um mistério até um dia desses:  solidão.  Tenho sido perseguida por um sentimento pesado de solidão, uma coisa triste mesmo. É como um manto que cai sobre a minha cabeça enquanto eu estou distraída.  O estranho disso é que eu não estou sozinha. Não sou sozinha.

Custei a entender que saudade e solidão são praticamente a mesma coisa. Dói do mesmíssimo jeito. A solidão diz que tem motivos diferentes da saudade pra doer, mas ela está enganada. A gente não sente solidão por estar sozinha. A gente sente solidão por estar SOZINHA DE ALGUÉM. É como a saudade, só que mais completa. A saudade é uma lembrança que dói. A solidão é um fantasma dentro da alma. Não é uma lembrança mas uma realidade constante. Como os ossos dentro da gente. Quem lembra pode tentar não lembrar, mas quem sofre de solidão carrega essa coisa consigo.

Se você estiver afastado das pessoas do seu coração então vai sentir solidão pra sempre, mesmo que esteja cercada por outras tantas pessoas maravilhosas. Não há substituição. Nada entra em você. A ausência de algumas pessoas gelam nossa cabana. Fica faltando pra sempre aquela chama na lareira.

Não sinto saudade da minha mãe; sinto "solidão da mamãe", "solidão do meu irmão", do meu pai, solidão dos meninos quando eram pequenos. Nada me salvará disso. Aqueles meninos me abandonaram quando cresceram. Tenho rapazes, não tenho mais as crianças, então sempre terei solidão por eles.

Hoje, Finados, o dia foi silencioso e cinzento. A chuva cobriu o dia todo. Sem trovão, sem alarde. Apenas deslizou sobre o asfalto e os prédios para ninguém esquecer o motivo do feriado.

Os mortos não comparecem no dia de Finados. Eles se mantém teimosamente ausentes e não se importam com nossas homenagens. Não vêm colher nossas flores. A chuva caiu inconsolavelmente.

Passei o dia tranquila e de bom humor. Fiz minhas coisas, lavei o cabelo, preparei uma sopa. Tudo certo. Mas lá no fundo havia aquele incômodo, como uma doença com a qual tenho que aprender a conviver. Lá estava a lâmina insolúvel, enfiada enquanto eu sorria.

Alma também sente frio.

Chego a pensar que, com o passar dos anos, essa coisa só tende a piorar. Em algum momento a gente começa a achar que não vale mais a pena continuar. É a velhice: quando a gente começa a fazer as pazes com a morte.

Quando eu viajar  não vou mostrar as fotos das férias para a mamãe.  Ela não vai se alegrar por mim, nem ganhará lembranças. Ela será lembrança. Não vamos mais planejar, com meu irmão, o cardápio do próximo Natal. Estou "sozinha deles". Sozinha de pessoas que me amavam mas morreram. Sozinha dos meus padrinhos. Sozinha da minha avó.

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