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4 de jun. de 2020

Prédios, macaquinhos e a anti-beleza *


Ontem, final de tarde, eu transitava em um dos viadutos da cidade. Do carro olhei e vi o céu desistindo do turquesa como quem deixa o véu cair sem olhar pra trás.  Escurecia devagarzinho, tudo meio embaçado por nuvens e poluição. Vi e amei os prédios. Pareciam tão imponentes ignorando o cansaço, a sujeira e o calor! Pareciam tão cônscios da necessidade de parecerem fortes e acolhedores  para quem vem do trabalho!

Certamente as árvores parecem belas para os pássaros cansados. Parecem lindas também para a família dos macaquinhos que fazem delas seu lar. Acho que os prédios cumprem, para nós, o papel de árvores. São onde nos amontoamos, cansados, e abraçamos os outros macaquinhos para finalmente dormirmos. 

O céu escurecido, as nuvens com cores indecisas, os primeiros postes acordando. Com meu olhar já lapidado pela cidade e sua estranha estética, achei bonitos os prédios assim, levantados contra o céu. Sim, são "árvores" rígidas onde nos amontoaremos com nossas famílias para proteção e descanso. 

Num relance vi as primeiras janelas acendendo. Mentalmente entrei em uma cozinha, levantei a tampa da panela e quase senti o cheiro da sopa borbulhando. Passei na porta de um banheiro e senti  também o cheiro dos vapores perfumados dos banhos das 19 horas. 

Prédios não são bonitos como árvores, mas foi o que conseguimos. Daqui não ouvimos riachos. Nossos passos, em sua direção, não pisam folhas. Aqui a proximidade das pessoas se anuncia de outras formas. 

Vistos de cima os prédios parecem menos maternais.   Nesse caso formam magníficos labirintos onde, incrivelmente, ninguém se perde.

A beleza mora dentro, não fora da gente. Isso me leva a pensar que talvez as pessoas cruéis tenham seu senso de beleza diminuído devido ao processo de embrutecimento que as tornou más. 

A maldade é a anti-beleza.   Não acredito então que os maus sintam o mesmo que eu sinto quando olho as estrelas ou os prédios encardidos. Não que eu me destaque pela minha bondade. Acho que estou na média,  talvez.  Mas tem gente que se destaca pela maldade.  Imagino que a vida subtraia do espírito dessas pessoas alguma coisa muito preciosa.   Imagino que elas vão perdendo a capacidade de se emocionar com o belo. É como quem sangra: a pessoa vai amarelando,  perdendo a graça.

Para piorar as coisas a ausência do senso de beleza só tornaria os cruéis mais cruéis ainda.  A beleza nos enternece e a ausência dela, na vida ou no espírito, embrutece. 

As pessoas bondosas desfrutam de mais beleza do que as más. Certamente. O mundo delas é diferente, é outra dimensão, impenetrável e incompreensível para os criéis. estes vivem em um submundo onde as cores mal são percebidas.   

Não tenho provas de nada disso.  Só sei daquela boniteza de final de tarde, dos prédios cansados,  dos vapores noturnos de sabonete e sopa.  Só sei do céu com as primeiras estrelas brotando das nuvens alaranjadas.  

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