.

.

25 de jan. de 2021

Meu diário, minha pirâmide *


Há anos que quase começo a escrever um diário.  Antes porém passo um tempão imaginando o caderno que vou comprar. Depois me pergunto: por que não um virtual?  Hoje em dia é tudo na internet. Mas diário de internet não tem o mesmo charme do diário de papel.  Diários são registros secretos que existem justamente para ser encontrados. Se Anne Frank tivesse feito um diário virtual ele jamais teria sido encontrado. E se fosse estariam até hoje discutindo se era dela mesmo ou não.

Não, diário de moral é no papel. Caderno capa dura e de preferência sem linhas.

Decidi que quero um.

Diário é uma coisa bem íntima. É o receptáculo do nosso eu inconfessável.  Lá estão nossas confissões e sonhos, desilusões e vaidades. Lá estão impressões e opiniões que depois mudarão radicalmente, e delas nos envergonharemos.  Por que escrever algo que posso me envergonhar depois? Não sei. Aprendi que nessa vida a gente precisa de um monte de coisas das quais não precisa.  E teorizar demais é inútil.  

Sim, há coisas humilhantes que precisam ser ditas e em seguida caladas.

Todo diário é como uma pirâmide:  tanto esmero em fazer, em decorar e encher de tesouros. Pra quê? Pra enterrar tudo no deserto. Qual o sentido? Não sei. Talvez o sentido seja a esperança inconfessável de ser encontrada, descoberta, decifrada. Ah, a estranha necessidade de fazer e ocultar, revelar e sonegar.  E a esperança não dita de um dia renascer nos olhos de um apaixonado por histórias. 

Essa é a função do diário: guardar e revelar. Registrar pra esconder. Não me pergunte de novo.

Por isso nunca escrevi um: porque ainda não havia entendido essa contradição.  Agora entendi. Sou uma pirâmide. 

Talvez só por hoje eu tenha concluído o seguinte: um diário é para ser lido sim. Ponto final. A gente quer que alguém se interesse tanto por nós a ponto de violar aquele frágil cadeadinho. Somos como a mocinha antiga que, por pudor, não se permite beijar mas sonha romanticamente com o homem que a desejará a ponto de ignorar regras e roubar-lhe um beijo.  

Mesmo assim todo diário é secreto.

Se é secreto, pra quê escrever? Se não é secreto, pra quê ocultar?

A gente escreve um diário para alguém. Alguém que não sabemos quem é ou quem será mas é alguém muito querido.   Ele lerá com total interesse todos os meus suspiros e impressões. Todo diário é uma homenagem a esse alguém que, ao contrário de milhares, quis saber como me sinto.  

Escrever um diário é dizer para si mesmo que essa pessoa existe. Ou existirá. Pensar nisso deixa tudo muito mais relevante. Esse alguém vai sentar quieto, cheio de tempo e boa vontade, e vai se interessar pelo que digo.  Sua curiosidade virá com simpatia por tudo o que está ali, em suas mãos. Ele estará propenso a concordar comigo e acolher minhas ideias. Será uma propensão carinhosa, gentil. Ele vai achar interessante a minha visão do mundo mesmo que não concorde. Folheará minhas páginas com cuidado para não se soltarem, de velhas que são. 

Talvez isso leve anos para acontecer. Tomara que leve. Mas seja quando for, meu espírito estará por perto. Vou sentar no ladinho só pra ver o jeito dele, essa pessoa sem face.

É, vou escrever um diário.  Vou amanhã comprar um caderno bonito e começar. 

Obviamente será tudo pra ninguém, pois é segredo. 

Obviamente será para aquela pessoa, pois eu sou uma pirâmide.

Nenhum comentário:

Páginas