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22 de mar. de 2021

A moça dos pés falantes *


A MOÇA DOS PÉS FALANTES


Missa de formatura de filho de amigos. Lá estava eu na belíssima Basílica de Nazaré. O lugar é lindo e solene e eu coloquei a roupa mais linda e solene que meu dinheiro conseguiu comprar.


Em um momento de cum
primentos mútuos, antes de iniciar a cerimônia, deixei meu lugar e me dirigi ao final do templo para andar um pouco e me resguardar da balbúrdia daquela multidão inquieta.


Eu observando tudo de rabo de olho”. Nos últimos bancos o que a gente menos vê é missa. Entre santos e pecadores notei, a uns quatro metros, um par de pernas morenas, cruzadas e imóveis. Era uma moça e era pobre.


Eu estava entediada com a missa que não começava. Minha mente, inquieta e criativa, queria ter em quê pensar. Como um gato na coleira, minha imaginação começou a miar exigindo o direito de vagar entre os bancos e saber de tudo. “Meu gato” se soltou sozinho. Aí começou.

Comecei a romancear.


Aquela moça só pode ter sido levada por um forte impulso de amor pois não tinha roupa adequada para estar ali. Atribuí a ela, então, um enorme coração e um rosto puro e sereno (que eu não conseguia ver de onde estava sentada). Continuei: atrás de si ela deveria trazer toda uma história de ternuras e sacrifícios pela família. O formando deveria ser um irmão mais novo. Ou primo que ela criou. Não, dão podia ser, por causa da idade. Talvez um irmao mais velho outrora perdido mas que venceu a bebida e conseguiu diploma. Ou um namorado pobre e sofrido? Não havia dúvidas de que para ela aquele momento era muito significativo, mais do que para todos os outros.


Ela estava ali com a renúncia da sua vaidade. Os demais não. Destoava do grupo. As roupas eram muito, muito simples, visivelmente baratas. Nas unhas, esmalte de quinze dias. Os cabelos depois notei: não receberam cuidado especial. Foram lavados e secados ao vento como qualquer coisa selvagem. Assim era porque assim imaginei. Mas mais do que os supostos cabelos, seus pés falavam. E muito. Contaram-me do orgulho da formatura, do sonho realizado e da exigência do seu coração amante, que a fez arrastar-se até ali naquele estado simplérrimo. As sandálias eram empoeiradas e gastas. Chegou de ônibus, claro, com seus pés jovens e desidratados. Eram desertos morenos que falavam de distâncias. Pousavam na igreja como passarinhos na caverna de olhos arregalados. Quem inspirava aquela moça a estar ali, sozinha, e tão desvestida de solenidade? Seus pés queriam explicar por que tinham todo o direito de estar ali, sem sandália dourada, em um desafio altivo a todos os trajes sociais.


Ela estava ali por alguém.


Começara a cerimônia. Entre um “amém” e um “glória a vós, Senhor” deduzi que sua coragem de deixar-se ver tão despojada viria do fato de ser bonita. Porque uma mulher jovem e bonita tem perdão para quase tudo nessa vida. E toda mulher já nasce sabendo disso. Imaginei então um rosto moreno de pele lisa e levemente suada, olhos grandes e meio tristes, mas de cílios espessos. Boca fina e sem batom. Cintura fina, quadris imponentes. Uma flor d’água. A heroína do meu micro romance não poderia ser menos que isso. Resolvi então conferir.


Quando finalmente vi seu rosto acabaram-se as divagações. Não era bonita. A seu favor só havia a juventude e a altura. Mas meu romance não estava perdido. Era uma cabocla comum - mas amava! E como amava!


Retomei a história.

A moça dos pés falantes chorava sem parar. Meigo. E mais:
chorava sem contrair o rosto! Essa é uma arte que jamais consegui dominar. Ela então cresceu mais ainda em meu conceito!


Antes de mirá-la descaradamente só pude notar que chorava pelo movimento das mãos, que levou ao rosto várias vezes para tirar da rota algumas lágrimas ligeiras. Ela o fazia com calma, sem preocupação nenhuma de esconder que chorava. Ela era alta mas nesse momento me pareceu mais alta ainda. Virou uma palmeira.

Não era a única pessoa
comovida. Mas só ela saiu de casa com roupas de pobre, pegou ônibus com sandálias surradas e tomou posse da Basílica de Nazaré de cabeça erguida. Aquele momento era tudo pra ela.

Decididamente ela era a heroina de uma linda história de amor.


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