A MOÇA DOS PÉS FALANTES
Missa de formatura de filho de amigos. Lá estava eu na belíssima Basílica de Nazaré. O lugar é lindo e solene e eu coloquei a roupa mais linda e solene que meu dinheiro conseguiu comprar.
Em
um momento de cumprimentos
mútuos, antes de iniciar a cerimônia, deixei
meu lugar e me dirigi ao final do
templo para andar um pouco e me resguardar da balbúrdia daquela
multidão inquieta.
Eu observando tudo “de rabo de olho”. Nos últimos bancos o que a gente menos vê é missa. Entre santos e pecadores notei, a uns quatro metros, um par de pernas morenas, cruzadas e imóveis. Era uma moça e era pobre.
Eu
estava entediada com a missa que não começava. Minha
mente, inquieta e criativa,
queria ter em quê pensar. Como
um gato na coleira,
minha imaginação começou
a miar exigindo o direito de vagar entre os bancos e saber de tudo.
“Meu gato” se soltou sozinho. Aí começou.
Comecei
a romancear.
Aquela moça só pode ter sido levada por um forte impulso de amor pois não tinha roupa adequada para estar ali. Atribuí a ela, então, um enorme coração e um rosto puro e sereno (que eu não conseguia ver de onde estava sentada). Continuei: atrás de si ela deveria trazer toda uma história de ternuras e sacrifícios pela família. O formando deveria ser um irmão mais novo. Ou primo que ela criou. Não, dão podia ser, por causa da idade. Talvez um irmao mais velho outrora perdido mas que venceu a bebida e conseguiu diploma. Ou um namorado pobre e sofrido? Não havia dúvidas de que para ela aquele momento era muito significativo, mais do que para todos os outros.
Ela estava ali com a renúncia da sua vaidade. Os demais não. Destoava do grupo. As roupas eram muito, muito simples, visivelmente baratas. Nas unhas, esmalte de quinze dias. Os cabelos depois notei: não receberam cuidado especial. Foram lavados e secados ao vento como qualquer coisa selvagem. Assim era porque assim imaginei. Mas mais do que os supostos cabelos, seus pés falavam. E muito. Contaram-me do orgulho da formatura, do sonho realizado e da exigência do seu coração amante, que a fez arrastar-se até ali naquele estado simplérrimo. As sandálias eram empoeiradas e gastas. Chegou de ônibus, claro, com seus pés jovens e desidratados. Eram desertos morenos que falavam de distâncias. Pousavam na igreja como passarinhos na caverna de olhos arregalados. Quem inspirava aquela moça a estar ali, sozinha, e tão desvestida de solenidade? Seus pés queriam explicar por que tinham todo o direito de estar ali, sem sandália dourada, em um desafio altivo a todos os trajes sociais.
Ela estava ali por alguém.
Começara a cerimônia. Entre um “amém” e um “glória a vós, Senhor” deduzi que sua coragem de deixar-se ver tão despojada viria do fato de ser bonita. Porque uma mulher jovem e bonita tem perdão para quase tudo nessa vida. E toda mulher já nasce sabendo disso. Imaginei então um rosto moreno de pele lisa e levemente suada, olhos grandes e meio tristes, mas de cílios espessos. Boca fina e sem batom. Cintura fina, quadris imponentes. Uma flor d’água. A heroína do meu micro romance não poderia ser menos que isso. Resolvi então conferir.
Quando finalmente vi seu rosto acabaram-se as divagações. Não era bonita. A seu favor só havia a juventude e a altura. Mas meu romance não estava perdido. Era uma cabocla comum - mas amava! E como amava!
Retomei
a história.
A moça dos pés falantes chorava sem parar.
Meigo. E mais: chorava
sem
contrair o rosto! Essa é uma arte que jamais consegui dominar. Ela
então cresceu
mais ainda em meu conceito!
Antes
de mirá-la descaradamente só pude notar que chorava pelo movimento
das mãos, que levou ao rosto várias vezes para tirar da rota
algumas lágrimas ligeiras. Ela o fazia com calma, sem preocupação
nenhuma de
esconder que chorava.
Ela
era alta mas nesse momento me pareceu mais alta ainda. Virou uma
palmeira.
Não era a única pessoa comovida.
Mas só ela saiu de casa com roupas de pobre, pegou ônibus com
sandálias surradas e tomou posse da
Basílica de Nazaré de cabeça erguida.
Aquele
momento era tudo pra ela.
Decididamente ela era a heroina de
uma linda história de amor.
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