.

.

7 de out. de 2011

Eu, Maria Antonieta

"Eu, Maria Antonieta, a rainha decapitada da França, uso-me deste eficiente meio de comunicação para declarar que estou inconformada  com o modo injusto e distorcido com que minha história tem sido registrada ao longo de séculos. 


Hoje, distanciada de todos pela morte e pelo tempo, posso me desvestir da minha estupefação e traçar considerações pertinentes a respeito do que os senhores chamam de História. 


Não chamo a mim mesmo de santa ou piedosa senhora. Tive minhas virtudes sim, mas elas não vem ao caso. Só desejo exercer meu direito de resposta depois de ter sido  insistentemente enxovalhada pelos  "donos da história". 


De agora em diante não aceitarei mais ser condenada pela minha suposta futilidade, vaidade, luxúria e insensibilidade para com as necessidades do meu povo, até porque não sou pior do que os governantes atuais, apenas mais bem vestida.  Venho então requerer ser julgada pelos mesmos critérios com que os senhores consideram os criminosos do século  XXI.  Nem preciso que me equiparem aos virtuosos!  Tenho sido tratada com dureza e desdém enquanto traficantes, assaltantes e assassinos tem seus crimes aliviados por olhares condescententes. Pois afirmo aos senhores que eles não são mais humanos do que eu. 


Os senhores referem-se a eles como   "vítimas da sociedade". Pois também o sou. Não inventei a mim mesma, não pedi para nascer nem tenho culpa pela forma como fui educada e tratada.   A eles foram negadas condições de serem pessoas melhores? Também comigo aconteceu o mesmo! 


Fui assassinada, perdi casa, família e bens. Hoje nada mais disso importa mas chega um tempo no qual tudo o que uma pessoa realmente possui é a memória do seu nome.  Pois tiraram-me tudo e ainda isso.  Se mesmo depois de ter perdido até mesmo o pescoço os senhores insistem em que eu continue na posição de ré, tenho todo o direito de exigir que me julguem com os mesmos critérios utilizados para os piores delinquentes de hoje. Quero igual consideração. Isso já bastaria para me fazer descansar em paz em meu túmulo depois de ter pagado pelo crime (tão invejável!) de usufruir das riquezas não solicitadas que colocaram em minhas mãos. 


Se os assaltantes, que espalham o terror nas cidades podem ser vistos com misericórdia pelos mais letrados do seu tempo, porque também não eu?   Se se admite que a vida não lhes deu chance de serem melhores, por que presumir que em minha gaiola de ouro eu tive mais opção do que eles? Em meu tempo não existia televisão nem cinema nem internet. Os nobres não se punham a andar pelas ruas socializando com a plebe nem trocavam idéias nas tabernas com as pessoas comuns.Como sensibilizar-se com suas mazelas? Não havia nem telefones. A alienação era bem maior do que se pode imaginar hoje!   Eu poderia ser melhor do que fui? 


Sim, poderia. Assim como muitos meninos que passavam fome poderiam ser professores, bancários, médicos, atletas. Teoricamente poderiam sim, mas a maioria não consegue. Nem todo mundo consegue quebrar a maldição imposta pelo meio em que vive.  Senhores, não fui melhor do que o flanelinha que os importuna!  O luxo exacerbado também corrói o caráter e não é fácil andar em sentido contrário ao do mundo. Sejam também comigo clementes! Ou só os pobres são filhos de Deus?


Eu era pouco mais que uma menina, contava quatorze anos de idade quando fui separada da minha família para, como objeto de negociação e diplomacia, ser entregue em casamento ao rei da França, Luis Augusto de Bourbon.  Além da função decorativa, tudo o que eu deveria fazer - e fiz - foi parir herdeiros. Era praticamente tudo o que esperavam de mim. Nada mais me foi explicado, ensinado, cobrado ou imposto.


Conquistei a admiração da sociedade por meu bom gosto e excessos. Diverti-me. O que mais poderia fazer? Na época não me ocorreu outra idéia. Hoje é possível cometer todo o tipo de desatino enquanto se compra indulgência com obras sociais. Infelizmente naquele tempo isso não existia como moda. Eu deveria ter tido a idéia, mas não tive. Paguei caro pela minha falta de criatividade. 


Gastar e divertir-se; era exatamente o que as pessoas faziam no meio onde eu vivia.  As pessoas que me cercavam aplaudiam-me e procuravam imitar-me. Não consegui supor que eu deveria fazer exatamente o contrário de tudo o que eles admiravam.  Não me ocorreu que aquilo tudo pudesse ser tão absurdo. Lamento não ter convivido com nenhum santo que me influenciasse de outra forma. Fui impregnada desde criança pela idéia de que a vida ideal era a vida que eu vivia e não vivê-la era tolo e inútil, visto que não melhoraria em nada a vida dos demais. Tudo se resumia a luxo, prazer e beleza - coisas que os senhores também desejam.


Não fui uma contestadora dos costumes da minha época.  


Sei perfeitamente que nem todos os miseráveis se tornam bandidos e nem todos os ricos se tornam insensíveis, mas acontece.  Digo alguma novidade?


Nem todos os nobres se tornam insensíveis e fúteis, mas a maioria não escapa da maldição imposta pelo meio em que vive. O que esperavam de mim? Que eu fosse uma louvável exceção?  Pois saibam: não existem sementes de exceções. Ninguém planta exceção. Plantamos regras e apenas gerenciamos a surpresa. 


Notem que minha insensibilidade para com a vida do próximo não é maior nem menor do que a insensibilidade do assaltante que  esfaqueia a vítima por ela não trazer dinheiro na bolsa.  Admitamos que a minha desumanidade assemelha-se à deles. Sim, suportarei ser olhada como delinquente mas não tolero ser julgada como se eu estivesse acima da influência do meio em que vivi. Por que eu sou imune ao meio mas os assaltantes não? Sou melhor do que eles? Se sou melhor, então mereci as riquezas que esbanjei e fui morta injustamente. Se não sou melhor, exijo ser considerada com a mesma condescendência. Cada pessoa reage ao mundo do jeito que consegue.


Em suma: foram pessoas como os senhores  que me forjaram. Descobri isso lendo as idéias dos intelectuais modernos.  


Não busco absorvição, mas igualdade de tratamento. Só assim vocês provarão que são melhores do que eu. Se não são melhores, como tentam aparentar, eis aí mais um motivo para deixarem de me julgar.


Maria Antonieta." 

Um comentário:

rocky gadelha disse...

Uma excelente visão da História.

Páginas