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23 de nov. de 2011

Nelson Rodrigues - um delicioso texto


"Entro na redação e vejo uma estagiária  (...) Quando eu entrei a primeira vez numa redação, acabava de fazer 10 anos. Com a trágica inocência das calças curtas, tive a sensação de que entrava numa outra realidade. As pessoas, as mesas, as cadeiras e até as palavras tinham um halo intenso e lívido. Era, sim, uma paisagem tão fascinante e espectral como se redatores, mesas, cadeiras e contínuos fossem seres submarinos.

Com o tempo, houve uma progressiva acomodação óptica entre mim e os vários jornais onde trabalhei. E as coisas passaram a ter a luz exata. Sempre restou em mim, porém, um mínimo de deslumbramento inicial. Até hoje, os seres da redação ainda me parecem de um certo dramatismo e têm não sei que toque alucinatório.
(...) Nós, de jornal, estamos      meio-tom acima da rígida normalidade.

E, ontem, ao entrar na redação e ao ver a estagiária, imaginei que também ela é um ser admirável. Sua dessemelhança do resto da redação é escandalosa. Por exemplo – meu caso. Trabalho na imprensa desde os treze anos. Depois de 43 de atividade, tenho uma euforia profissional bem escassa,
(...) Ao passo que a estagiária, com seu delicioso odor da PUC, desliza entre as mesas e as cadeiras com a leveza irreal , a agilidade incorpórea das sílfides.

Mas o que me assombra, na estagiária, não é sua graça pessoal
(...). O que me assombra são as suas perguntas. O leitor há de imaginar que exagero. Nem tanto, nem tanto. Mas uma dessas meninas irreais de redação é bem capaz de atropelar um presidente, um rajá, um gangster, um santo e perguntar: -- “Que me diz o senhor, ou a senhora, de Jesus Cristo, do Nada Absoluto, do Todo Universal ou da pilula ?”.

Chego à redação e vejo a estagiária.

Ela pergunta, numa satisfação absurda :
   Deus está superado?  A princípio não liguei as duas coisas, isto é, a pergunta à minha crônica de ontem. Não sei se vocês leram. Mas contei na minha última crônica, que Domingo passado, em Belo Horizonte, um jovem padre fez esta declaração:   Depois da Apolo-8 [foi a segunda missão tripulada do projeto Apolo da NASA que decolou em 1968 e os tripulantes não pousaram na lua] não se pode mas acreditar num Deus superado!
 

A igreja transbordava de católicos. E ninguém insinuou o mais vago protesto, nem se ouviu um platônico muxoxo. Pelo contrário. Os presentes se entreolhavam como se dissessem. É mesmo ! É mesmo !. O jovem padre de passeata sentiu o sucesso e o agarrou pelos cabelos. Com a Apolo-8  morrera um Deus e nascera outro Deus. De um momento para outro os valores da véspera se tornaram caducos. O sacerdote estava propondo, como réplica à Apolo-8, um Deus-8. E, quando viesse a Apolo-9, a Igreja providenciaria um Deus-9. O nosso padre de passeata era nítido e era profundo:   A Igreja não pode ficar insensível à tecnologia !
                                                                       
Eu ia responder, quando ela se ergueu:
 Volto já, volto já.
 

Volta a estagiária. Esquecida da primeira pergunta, fez uma outra:      Pra que serve a tecnologia?            Digo,    cauteloso:  Depende. A estagiária não me deixou prosseguir. Achou que o "depende"  era uma resposta total e de uma clarividente originalidade. Passou à outra pergunta:  Você não achou muito cara a Apolo-8?. Fui quase agressivo: Baratíssima!. Protestou:  Mais de 1 bilhão de dólares! ...

E, então com paciência, tentei explicar-lhe o meu ponto de vista.  O comandante da nave rezara a 380 mil quilômetros da Terra. A simples oração justificava qualquer orçamento. 
Eu bem sabia que a Apolo-8  fizera dez voltas em torno da Lua. Isso foi o de menos. O importante era o gesto de amor, ou seja, a oração. 

Se, lá em cima, alguém pediu por nós, pediu pelo amor entre os homens. E pediu que cada qual amasse do próximo como a si mesmo, a Apolo-8 está salva e os milhões de dólares são um preço de liquidação da 25 de março. 

Se a tecnologia ajuda o homem a amar o seu próximo como de si mesmo, vale a pena a tecnologia. E, enquanto o homem não amar o outro para sempre, continuaremos pré-históricos. Nenhum de nós é histórico, nenhum de nós. E o pior é o deus de Belo Horizonte – deus enumerado como cápsula e como o cadáver de necrotério.
 

(O Reacionário – Memórias e Confissões, da obra de Nelson Rodrigues – Cia. das Letras – 2002 – Seleção Ruy Castro- com adaptações de Sidney C.)  
 tras – 2002 – Seleção Ruy Castro- com adaptações de Sidney C.)  

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