"Entro na redação e vejo uma estagiária (...) Quando eu entrei a primeira vez numa redação, acabava de fazer 10 anos. Com a trágica inocência das calças curtas, tive a sensação de que entrava numa outra realidade. As pessoas, as mesas, as cadeiras e até as palavras tinham um halo intenso e lívido. Era, sim, uma paisagem tão fascinante e espectral como se redatores, mesas, cadeiras e contínuos fossem seres submarinos.
Com o tempo, houve uma progressiva acomodação óptica entre mim e os vários jornais onde trabalhei. E as coisas passaram a ter a luz exata. Sempre restou em mim, porém, um mínimo de deslumbramento inicial. Até hoje, os seres da redação ainda me parecem de um certo dramatismo e têm não sei que toque alucinatório. (...) Nós, de jornal, estamos meio-tom acima da rígida normalidade.
E, ontem, ao entrar na redação e ao ver a estagiária, imaginei que também ela é um ser admirável. Sua dessemelhança do resto da redação é escandalosa. Por exemplo – meu caso. Trabalho na imprensa desde os treze anos. Depois de 43 de atividade, tenho uma euforia profissional bem escassa, (...) Ao passo que a estagiária, com seu delicioso odor da PUC, desliza entre as mesas e as cadeiras com a leveza irreal , a agilidade incorpórea das sílfides.
Mas o que me assombra, na estagiária, não é sua graça pessoal (...). O que me assombra são as suas perguntas. O leitor há de imaginar que exagero. Nem tanto, nem tanto. Mas uma dessas meninas irreais de redação é bem capaz de atropelar um presidente, um rajá, um gangster, um santo e perguntar: -- “Que me diz o senhor, ou a senhora, de Jesus Cristo, do Nada Absoluto, do Todo Universal ou da pilula ?”.
Chego à redação e vejo a estagiária.
Ela pergunta, numa satisfação absurda : — Deus está superado? A princípio não liguei as duas coisas, isto é, a pergunta à minha crônica de ontem. Não sei se vocês leram. Mas contei na minha última crônica, que Domingo passado, em Belo Horizonte, um jovem padre fez esta declaração: — Depois da Apolo-8 [foi a segunda missão tripulada do projeto Apolo da NASA que decolou em 1968 e os tripulantes não pousaram na lua] não se pode mas acreditar num Deus superado!
A igreja transbordava de católicos. E ninguém insinuou o mais vago protesto, nem se ouviu um platônico muxoxo. Pelo contrário. Os presentes se entreolhavam como se dissessem. É mesmo ! É mesmo !. O jovem padre de passeata sentiu o sucesso e o agarrou pelos cabelos. Com a Apolo-8 morrera um Deus e nascera outro Deus. De um momento para outro os valores da véspera se tornaram caducos. O sacerdote estava propondo, como réplica à Apolo-8, um Deus-8. E, quando viesse a Apolo-9, a Igreja providenciaria um Deus-9. O nosso padre de passeata era nítido e era profundo: — A Igreja não pode ficar insensível à tecnologia !
Eu ia responder, quando ela se ergueu:— Volto já, volto já.
Volta a estagiária. Esquecida da primeira pergunta, fez uma outra: — Pra que serve a tecnologia? Digo, cauteloso: — Depende. A estagiária não me deixou prosseguir. Achou que o "depende" era uma resposta total e de uma clarividente originalidade. Passou à outra pergunta:— Você não achou muito cara a Apolo-8?. Fui quase agressivo:— Baratíssima!. Protestou: — Mais de 1 bilhão de dólares! ...
E, então com paciência, tentei explicar-lhe o meu ponto de vista. O comandante da nave rezara a 380 mil quilômetros da Terra. A simples oração justificava qualquer orçamento.
Eu bem sabia que a Apolo-8 fizera dez voltas em torno da Lua. Isso foi o de menos. O importante era o gesto de amor, ou seja, a oração.
Se, lá em cima, alguém pediu por nós, pediu pelo amor entre os homens. E pediu que cada qual amasse do próximo como a si mesmo, a Apolo-8 está salva e os milhões de dólares são um preço de liquidação da 25 de março.
(O Reacionário – Memórias e Confissões, da obra de Nelson Rodrigues – Cia. das Letras – 2002 – Seleção Ruy Castro- com adaptações de Sidney C.)
tras – 2002 – Seleção Ruy Castro- com adaptações de Sidney C.)
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