.

.

20 de mai. de 2012

Mal secreto

Esses dias fui assaltada quando parei no semáforo. Cometi o atrevimento de deixar a janela do carro aberta. Erradíssimo. Todos sabemos que nós não temos esse direito e se fizermos isso corremos o risco real de sermos castigados com a perda de alguns bens.

É nessas horas que nos deparamos com o que temos de pior. É nessas horas que a nossa ilusão de bondade cai por terra. É nessas horas que checamos a quantas anda nosso sentimento cristão. É nessas horas que desejo a total ruína do próximo.

A ira e os maus sentimentos que assombraram minha cabeça foram assustadores. Minha mente virou, imediatamente, uma sala de projeção de filme de terror. Logo eu, que vivo falando de amor. Não amei aquele que me fazia mal. Não quis dar a outra face: quis destruir a face dele. Imaginei contra ele as piores atrocidades e pior: deliciei-me com a fantasia.

Fantasias existem para nos suprir daquelas coisas que não temos no momento. Ou que jamais teremos. Então imaginamos, desfrutamos e depois vamos dormir de touca. Pra quem não sabe, fantasias de vingança podem ser muito mais "divertidas" do que fantasias sexuais. Veja só:

1- Pensei em ter sempre à mão uma pequena bomba caseira disfarçada de celular. Eu entregaria o celular para o ladrão e quando me afastasse um pouco, detonaria o artefato. Ele perderia os dedos, ou seja: estaria imediatamente reabilitado para viver em sociedade sem fazer mais mal a ninguém. Todos sabemos que deficientes físicos podem ser cidadãos produtivos e felizes.

2- Pensei em puxar uma faca ao invés de puxar o celular. E enfiar a faca na garganta dele. O sinal abriria e eu sairia dali tranquila e vingada.

3- Eu puxaria uma arma e antes que o rapaz pudesse articular qualquer frase, BUM! Ele cairia para trás com um buraco no meio da cara. Até alguém tentar entender o que aconteceu eu já estaria longe.

4- Eu contrataria umas três pessoas para viajarem no banco de trás escondidas. Aí passaria depois pelo mesmo local dando a mesma bobeira. Sim, uma armadilha. Quando o ladrão se aproximasse os trogloditas contratados saltariam em cima dele e o quebrariam em vários pedacinhos. Pelo menos por uns oito meses ele estaria regenerado.

(Essa idéia da armadilha para bandidos é muito boa. Sempre configuraria legítima defesa.)

5- Ao invés de entregar o celular para o ladrão, eu espirraria ácido em seu rosto. Boa também, né?

6- Eu também poderia dar a volta no quarteirão e quando o avistasse novamente simplesmente jogaria o carro em cima dele. Essa idéia não é muito boa porque geraria prejuízo.

7- Seria legal também eu descer do carro logo em seguida e fazer um escândalo incitanto os transeuntes a linchar o bandido: "Fui assaltada! Foi ele! Foi ele! Ele é ladrão! Desgraçado! Pega ladrão! Mata! Esfola! Apedreja!" Sim, eu faria um escândalo e insuflaria todo mundo contra o rapaz. Multidões costumam ser valentes e cruéis como animais selvagens. Eu jogaria todos contra ele e ele se arrependeria de ter nascido.

Depois de pensar em dezenas de formas de acabar com a integridade física do rapaz, o que me vem à mente é uma grande vergonha. Vergonha de mim mesma e dos pensamentos baixos que acolhi. Vergonha do imenso prazer de fantasiar o mal. Vergonha de ter sido capaz de sentir tanta raiva. Vergonha do prazer mórbido de imaginar o sangue do ladrão escorrendo pela calçada. Um trapo humano.

Toda essa vergonha me fez  lembrar que tudo tem um lado positivo. E qual o lado positivo desse episódio? Ele me fez olhar novamente para o espelho e redescobrir que não sou uma pessoa boa. Estou longe demais do ideal que afirmo buscar.  Matei, incendiei, mutilei, espanquei e com prazer.  Isso é triste.

O mal existe dentro de nós. O mal exteriorizado não nos define. A verdade é o que jaz no escuro.

Eu jamais sentiria vontade de matar se o homicídio não habitasse meu interior.  Pecado não é o que você faz, mas o que você é.   Pecado é o seu potencial para o mal, não importando se isso foi ou não transformado em ação.

Ninguém é capaz de turvar uma piscina agitando suas águas se dentro dela já não houver sujeira. Se a piscina fosse limpa você poderia agitar as suas águas o dia inteiro e ela continuaria clara como cristal. Se as águas claras ficaram turvas foi porque o sujo já estava lá, caladinho, quieto, mas pronto para vir à tona na primeira oportunidade.

Uma pessoa pode ser péssima como o diabo, mas aparentar águas límpidas. Por outro lado, alguém  "ligeiramente turvo" pode ser muito mais puro do que certas piscinas "claras" que vemos por aí.

Em suma: esse é o tipo de espelho que detesto olhar. Porque olhei e não gostei nada do que eu vi.




Mal Secreto
Raimundo Corrêa


Se a cólera que espuma, a dor que mora
N’alma, e destrói cada ilusão que nasce,
Se tudo o que punge, tudo o que devora
O coração, no rosto se estampasse;

Se se pudesse o espírito que chora
Ver através da máscara da face,
Quanta gente, talvez, que inveja agora
Nos causa, então piedade nos causasse!

Quanta gente que ri, talvez, consigo
Guarda um atroz, recôndito inimigo,
Como invisível chaga cancerosa!

Quanta gente que ri, talvez existe,
Cuja a ventura única consiste
Em parecer aos outros venturosa!





Nenhum comentário:

Páginas