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25 de ago. de 2007

Carta aquática


Querido homem da terra:

Escrevo-te do fundo do mar, das entranhas silenciosas do mundo, de onde surgiram as primeiras formas de vida. Agora esse é o meu lugar. Tornei-me mais uma dentre tantas estranhas criaturas.

Faz tempo que estou aqui mas o que me resta de humanidade ainda pensa em ti. Ainda tenho em memória o cheiro dos teus cabelos molhados, cujas gotas d’água caiam lascivas em minhas costas.

As vezes vejo tua imagem sendo formada em redemoinhos breves, levantando a areia mais fina. As vezes me sorris dessas imagens mas em outras apenas me fitas pensativo.

Viraste uma aparição... Mas não me assustas.

És da terra. Agora sou do mar, para sempre.

Escrevo-te com menos dor; obviamente com menos humanidade. Minhas roupas foram comidas por crustáceos e nada mais há que esconda o que já te pertenceu. Veja, amor, como estou fria, frágil e descorada!

Pálida e nua.
Cada vez mais pálida
Mas ainda tua.

Ainda faço versos.

Meus cabelos cresceram muito e flutuam levemente. Estão semeados de algas e cada dia mais verdes. Diariamente sou analisada por criaturas curiosas e lentas.

Não me importa as intempéries da superfície; poucos movimentos ressoam aqui em baixo. Poucos mudam a direção dos meus cabelos.

Envelhecerás rapidamente nesse mundo árido crestado pelo sol, nesse mundo barulhento e rápido ao qual já pertenci.

Adeus para sempre...
Ou mergulha para mim!
Eu peço demais?
Então é o fim.

Escrevo-te entre algas possessivas, peixes, esponjas e relíquias antigas de navegantes apaixonados.

Os peixes vão e vem, aproximam-se de meus olhos espelhados. Parecem divertir-se. Há peixes em minhas coxas, seios, pés, sexo... Desassustados beijam-me a boca. Beijam-me em teu lugar e profanam todos os teus santuários.

A água me embala como mãe sonolenta. Durmo e acordo mil vezes. Não há pressa nem tempo. Tudo aqui é eterno.

Talvez eu vire sereia, talvez alga, talvez pedra, talvez esfinge das águas. Mas nada, nada nesse mundo poderá transformar-me em tua mulher. Então fico e desfaço-me.

Nunca me visitarás. Jamais mergulharás tão fundo a ponto de poder achar-me.

Permaneço:
Muda, nua,
molhada e ainda tua.

Pairo como planta aquática. Mando-te essas palavras escritas em espumas, em folhas e em escamas de peixes gentis.

Despeço-me do teu século.

Adeus, meu amor.

Um comentário:

Sandra disse...

Oi Cris,
Não sei se ao escrever essa carta vc pensou em alguem especificamente, mas ela me fez lembrar alguem..., achei impressionante como vc foi tão detalhista em tudo, como sua imaginação consegue ir até as entranhas... o âmago de um ser..., eras vc é demaissss.A cada poema, carta, enfim..., vc se supera ainda mais.
Um gde bjo

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