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29 de ago. de 2007

Quando acontecer


Quando você vier não será tarde demais, mas assim vai parecer.

Será em um dia-noite de céu cinzento, muito cinzento e ar pesado. Calor e frio em mistura opressiva, como febre. Frio por dentro, calor por fora e nenhuma roupa do mundo que amenize esse desconforto.

Hoje o mundo todo tem febre. A Terra está ébria.

A ninguém importa se é dia ou noite; o tempo já não se conta mais dessa maneira; os parâmetros estão desregulados - tanto o das estações quanto o da vida e morte e tudo o mais. O escuro e o claro vez por outra se chocam nessa estranha subversão de todas as coisas.

As pessoas não são confiáveis. Não porque não queiram, mas por estarem deixando de ser pessoas (no sentido mais doce do termo). E no mundo das coisas não há conceitos de moralidade. Aliás, não há conceito algum.

Os relógios não são morais. Talvez por isso estejam se transformando em deuses.
Mesmo amorais há o consenso de que são as únicas coisas confiáveis ainda existentes - embora ninguém se sinta reconfortado por isso. Como são quase deuses, todos os dias olhamos reverentemente para eles, nem que seja uma vez apenas. Ninguém sabe explicar exatamente por quê. Virou uma espécie de ritual. É estranho não fazer... e assustador quando um relógio para.

Os seres, andróginos.

As mulheres há muito deixaram de ser consideradas “caça”. Não são muito amistosas. Pisam duro e por questão de segurança mantêm-se magras.

Nossos homens-meninos são reprodutores assustados e também sozinhos. Geralmente trazem tatuados pelo corpo alguns símbolos representando força. Inutilmente.

As pessoas dormem atormentadas e sonham coisas inquietantes. Dizem que esses sonhos se devem a “memória genética”. Foi feita uma pesquisa e constatou-se que praticamente todo mundo tem sonhos recorrentes que guardam grande semelhança entre si.

As mulheres, geralmente, se vêem em invólucros úmidos, encolhidas como bebês no útero. Ouvem sons musicais profundamente emotivos e acordam chorando convulsivamente.

Os homens sonham com mulheres diferentes: roliças, meigas e comestíveis. Lembram as mulheres de hoje, mas parecem estar em etapa evolutiva anterior. Então acordam angustiados, sentindo saudades daqueles seios, coxas e carnes das fêmeas. Sentem uma falta angustiante de algo que foi posteriormente definido como aconchego.

Nos sonhos masculinos as mulheres tem um cheiro específico. Sabemos que isso não existe! Todas as pessoas tem o mesmo cheiro, independentemente da idade e do sexo.

Há também entre nós pessoas delirantes que afirmam ser isso causado por “espíritos inquietos” que se dedicam a atormentar os humanos com essas saudades inexplicáveis. Só não explicam bem o que seriam os “espíritos”. Mas todos sabemos o que é esse “inferno virtual”.

Por essas e por outras, as mulheres que ainda trazem características físicas que não evoluíram são mantidas em recolhimento como medida de egurança.

Há várias crianças gagas. Algumas são como gatos: ariscas e sobressaltadas. Muitas outras são hostis.

Bichinhos tristes.

Os bichos, todos eles, andam em bandos. Não como antigamente; os bandos de hoje evoluíram para uma coisa que forma quase que um corpo só; são absolutamente coesos e impenetráveis. Os bichos lembram as crianças as vezes... Estão sempre assustados.

A grande angústia dos humanos desse século é a total incapacidade de se proteger em bandos. Todos tem medo de todos; todos desejam ardentemente companhia e abraço ao mesmo tempo em que isso parece arriscado demais. Desejam com a alma, com o fígado, com os rins, mas não conseguem. É uma espécie de fome emocional.

Ninguém sabe onde andam as mães. As mães sumiram do mundo, dando lugar às atuais fêmeas agressivas da espécie humana. Seios secos e mãos crispadas.

Aí você aparece. Ninguém mais estava esperando.

Você é terrível, magnetizante. E assustador de tão lindo. Em nosso mundo, nada que tenha sido lindo sobreviveu. Se existe o belo absoluto, você é a personificação.

Cabelos! Por que seus cabelos são compridos e de negritude tão profunda? Seu olhar é assustador! Emana uma coisa estranha. Parece “paz” ou algo assim. Mas paz é uma coisa perigosa demais. Temos medo! Sempre que nos disseram “há paz!” catástrofes aconteceram em seguida.

A ameaça trazida pela paz é velada. É a calmaria antes da tempestade. Hoje a paz é prenúncio de morte, de lâmina fina perfurando o umbigo. Você é perturbador em sua paz e beleza estonteantes. Temos medo de você, muito medo.

Por que sorri? Por que nos olha assim e sorri?

Quem é essa criatura que sorri?

E todos fogem do seu sorriso pois uma pessoa sem medo traz consigo morte. Tem sido assim.

Mas você vem, implacável e sem armas na mão. Para onde podemos fugir?

Estamos todos armados;
Armados e sujos;
Sujos e famintos;
Famintos e amedrontados;
Amedrontados e suplicantes
E tão cansados!

O que você quer? Diga logo!

Quer nossa carcaça? Nossas mulheres? Foi você quem desconfigurou nossas mães e secou seus seios? Foi você, Criatura Sem Nome, quem domou nossos heróis e os atormentou com saudades e terrores? Você é o tal “espírito” de quem falam os velhos?

Que é você que vem de cima, que vara as nuvens, que faz tudo explodir em cores? Quem é você, que pára os nossos relógios sagrados? Por que vem acompanhado de música e arcos celestes? Por que nos comove? Não sabe que não podemos chorar? Os predadores estão a espreita!

Quem é você? Por tudo o que é mais sagrado, diga-nos seu nome! O que exige de nós? Nossas armas enferrujadas? Nossas frutas mirradas tiradas a fórceps de terras estéreis? Crianças mudas? Mulheres ressecadas?

Quem é você, que nos assusta com essa glória, esse riso, esses sons estranhos que nos fazem chorar?

Por favor, vá embora! Retire-se de nós! Volte para o seu mundo!

Nossos pesadelos agora serão outros. Vimos você, que é tudo o que nossa alma mais deseja. Você é o resumo de tudo, a explicação, a fórmula, a revelação do mistério, o princípio e o fim de todas as coisas.

Vamos sonhar com você para sempre: homens e mulheres. E a saudade do Belo Pleno nos atormentará para sempre.

Não se aproxime, não nos olhe assim. Nós temos medo de tanto amor!
Cristina Faraon


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