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19 de jun. de 2015

Incoerências





Para quem gosta de auto análise existe um teste muito útil que ajuda a avaliar nosso nível de "crescimento espiritual". Você pode me perguntar qual seria a utilidade disso. Respondo que nada como um espelho para afastar a doce ilusão que cultivamos a respeito de nós mesmos.

Além da verdade como um fim em si mesmo, acrescento que quem se enxerga, perdoa. Ou dizendo de outra forma: toda falta de perdão aponta para um certo grau de cegueira, de falta de auto percepção.

Terminei de assistir o seriado Os Borgias. Deixo aqui meu protesto porque a história ficou órfã, foi abandonada ao deus-dará sem uma conclusão. Se eu soubesse disso nem começaria a assistir. Fecha parêntesis.

Os Borgias conta a história real de uma família poderosíssima na Roma antiga. Eram corruptos, violentos, lascivos, ricos, bem vestidos e charmosos. Bem, essas duas últimas características deduzi por conta própria.  Os Borgias não é o único seriado que nos lança em rosto  essa vergonhosa capacidade que temos de admirar vilões.

Vilão no * dos outros é colírio, né?

É constrangedor ter que admitir que torci o tempo todo pelo mal. Eu não queria que o Cesar Borgia morresse nem que fosse traído. Não queria que seu capanga, frio assassino psicopata, morresse. Curti as cenas de sensualidade entre ele e sua irmã Lucrécia e ri das tramas absurdas de seu pai para conseguir o papado. Estou decepcionada comigo mesma.

Resta o consolo de acreditar que essa admiração reprovável só é possível porque a indústria do cinema domina a técnica de explorar nossas emoções e tornar qualquer coisa aceitável por conta de um belo pacote. Somos então vítimas da vilania de Wollywood. Manipulam nossos sentimentos com os mais vis propósitos.

Posso também consolar a mim mesma dizendo que só me entreguei a isso por brincadeira. Não há vítimas reais numa película. Deixei-me seduzir conscientemente pelos cenários belíssimos, figurino encantador e beleza dos personagens só porque o jogo da sedução é gostoso e, nesse caso, ninguém saiu machucado.  E posso sempre repetir que "na vida real" eu jamais apoiaria aquela família mafiosa. Eu me insurgiria contra toda forma de injustiça e odiaria de todo coração Rodrigo Borgia, Cesar, Lucrecia e o restante de sua execrável família.

Pronto! Estou pura!

Após esses discurso calmante não posso evitar algumas perguntas: por que a maldade não me causou natural repugnância?  O que importa se é praticada por pessoas lindas ou por brutamontes fedidos? Por que o charme do personagem tapou meus olhos para a justiça?  Por que o que sinto vendo um filme não pode ser considerado "vida real"? Que álibi furado é esse? Meus sentimentos são reais e se vejo uma criança ser torturada em filme não fico aflita? Mesmo sendo ficção aquilo não me dói? Dói sim, como se fosse na vida real. E então? O que há de errado comigo?

Uma coisa é reagir perante a sociedade de carne e osso como essa sociedade de carne e osso exige que reajamos. Outra coisa é reagir livremente, sem observadores, abandonados no sofá da sala escura em companhia apenas da nossa natureza humana. Talvez essa seja a hora da verdade.

Ou o mal me indigna em todas as suas representações ou sou muito pior do que pensava que fosse. Há explicação razoável para que reações tão díspares diante do mal não representem o próprio mal em nós?  Vejamos:

Os vilões bonitos e sensuais nos seduzem, isso é fato. Por que é assim? Será porque eles demonstram força, não tem medo, são intrépidos e sabem se impor?  Nesse país tão violento onde não passamos de presas, nosso desejo mais profundo é nunca mais sentir medo. É horrível viver com medo! Mas os vilões parecem desconhecer esse tipo de sofrimento. Talvez por isso nos cativem. Morremos de inveja deles. Não temem: são temidos. Não esperam pela sorte: conquistam, pegam da vida o que querem displicentemente e altivos como se colhessem frutas de sua própria plantação.

Essa é a explicação? Ou a explicação verdadeira fugirá de nós para sempre? Nesse caso é melhor fazermos logo as pazes com as nossas incoerências...







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