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1 de mai. de 2016

Madrugada

Madrugada. Pedi a noção da hora.  Nem sono nem disposição. Apenas existo em um estado de alerta meditativo. Existo como uma antena pronta para todo tipo de recepção. Quero perceber coisas da noite.

Talvez o único grande mistério da noite seja a sua capacidade de subjugar todas as pessoas. A noite impõe sossego como um pai mandando as crianças para a cama. É simplesmente mágico que todos obedeçam.  

Por algum motivo a madrugada me remete à ideia de eternidade. Acho que eternidade é quando o tempo não se faz sentir. É quando ele, consciente da sua inutilidade, retira-se de cena na ponta dos pés e ninguém sente a sua falta. Então o tempo passa a ser apenas um fantasma no qual ninguém mais acredita.

Tédio pressupõe passagem do tempo. Não há tédio onde não há tempo.

Madrugada. Gosto de me sentir senhora de mim. Ninguém me observa ou impõe comportamentos. Dessa liberdade imagino coisas.

Madrugada. Penso nesses milhões de pessoas dormindo como se fossem bebês barulhentos que, finalmente, entregaram os pontos. Bebês difíceis, trabalhosos. Agora estão calmos, dormindo consolados das agonias do dia. Talvez seja essa a melhor parte do dia: quando grande parte do mundo se torna um imenso berçário.

Todas as pessoas são boas enquanto dormem. Seus piores pesadelos não afetam o mundo exterior. São inofensivas e desprotegidas, o que me desperta uma quase ternura. Quando os vejo assim, rendidos, perdoo-os todos.  Todos tem salvação. Tem sim. Se Deus quer salvar a humanidade deve colher nossas almas durante a noite,  enquanto dormimos.

Por um instante me comprazo em imaginar que seria viável acreditar que todas  as pessoas são reprogramáveis para o bem.  Ou que pelo menos todas são suscetíveis de serem contaminadas por um tipo raro de bactéria que as levasse a um comportamento diferente.

Numa manhã qualquer, assim do nada, as pessoas acordariam esquecidas das coisas de gente grande. A inocência do sono se expandiria, invadindo também as horas de vigília.  Então todos acordariam com um outro coração, uma outra disposição para com o próximo. Esqueceriam das porfias, dos rancores, vaidades e inquietações. Acordariam leves e descansadas como se tivessem hibernado meses.  E iam querer tão somente aproveitar o sol , ir pra rua de chinelos, espreitar borboletas e fazer amizades. Todos se deslumbrariam com os pequenos insetos, com os pássaros assustados das metrópoles e folhas empoeiradas que se desprendem das árvores.  Puxariam conversa com o mendigo, com o vizinho e o moleque da esquina e dariam toda a atenção do mundo ao que eles respondessem. Esqueceriam de cobrar as dívidas e também de pagá-las.

Com tantas doenças surgindo, de repente me parece razoável que algo novo e muito contagioso esteja sendo gestado em algum lugar. E essa coisa contaminaria as pessoas para o bem. Por que não? Isso aconteceria obviamente durante a noite, no rastro da madrugada, quando ninguém se defende de nada.

Quem sabe ... quando a gente menos imaginar pode acontecer uma contaminação de grandes proporções , que  leve as pessoas de volta à humanidade inicial. Voltaríamos a ser o que nunca deveríamos ter deixado de ser. Perderíamos totalmente o apetite para o poder ou ostentação.  Todos acordaríamos cheios de perdão e simplicidade. Talvez não um perdão consciente, nascido de um esforço bem intencionado. Falo do perdão verdadeiro, aquele que acontece sem a gente se dar conta;
aquele que brota sem ser chamado só porque o terreno do coração é bom. Refiro-se ao perdão das crianças: o perdão do esquecimento.

Um dia... quem sabe... todos acordaremos irreconhecíveis e nos sentiremos muito bem com isso. Esqueceremos o que já passou e flores rebentarão do asfalto.



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