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16 de out. de 2017

De bolha em bolha


A vida segue em linha reta. Nada afeta seu curso. Um dia é igual ao outro. Sol vai, sol vem, chuva cai, chuva seca, pessoas nascem, engordam, emagrecem, brigam, amam e morrem. 

Ninguém aguentaria seguir em frente, marchando sem descanso, se não recorresse a alguma forma de fuga. Fuga talvez não... mas pausa sim. O maestro ergue a batuta e fica imóvel frente à orquestra. A música é suspensa e o que entra em curso é outra arte dentro da arte. Outra vida dentro da vida. Alguma coisa fora do tempo - que não para, mas suspende a si mesmo. Tudo cabe nesse espaço. Nessa pausa pode caber um mundo.

O tempo prende a respiração para que as pessoas possam respirar um pouco.

Essa é a razão pela qual o ser humano especializou-se em "criar climas", datas especiais. As datas especiais nada mais são do que, rigorosamente, NADA.  

Somos inventores de datas especiais. Não existe engôdo maior. Não existem datas especiais! Os dias não se repetem. Mas criamos esse tipo de mentira para termos pelo quê esperar quando nada de mais nos espera ali à frente.  Queremos ter motivo para usar o vestido novo.   Criamos datas e depois olhamos melancólicos para o calendário considerando o quanto fomos felizes no passado e o quanto ainda seremos felizes no futuro - quando nem passado nem futuro existem.  É bom ter motivo para contar os dias, por isso inventamos motivos para contar os dias. Precisamos comemorar coisas e esperar por coisas.

Esperamos tudo de bom nos "dias especiais" como se não fossem criações nossas. São flores de plástico.  Mas tem algum valor.

Somos seres criadores. Somos incríveis. De onde tiramos essa coisa  de comemorar aniversário? O
dia em que nasci não volta nunca mais. Por quê me animo ou fico melancólica a cada 13 de novembro?  Porque precisamos dessa alegria ou até mesmo dessa melancolia com data marcada. Porque ao marcarmos data para a tristeza estamos também dizendo que haverá data para a tristeza ir. 

É bom marcar datas. É como se tivéssemos algum domínio sobre a vida.

Nós criamos datas e criamos músicas. E as músicas, por sua vez, criam climas.    

Dia desses assisti um vídeo que apresentava parte de um show. Durante a apresentação da canção  era possível notar que a "temperatura emocional" , tanto da cantora quanto da plateia, ia crescendo , crescendo.  Gradativamente. Tudo muito artificial, mas muito real. Todos se deixavam levar candidamente e se entregaram  àquilo como crianças crescidas no colo Cinderela: tão falso... mas tão bom.  

Ninguém iria sair daquele teatro reclamando de hipnose grupal. As pessoas se deixaram levar porque é bom fazer de conta.  Parecia que todos estavam felizes e apaixonados. Estavam. Ia passar. E eles sabiam disso. 

Precisamos do êxtase. Ou a vida nos dá ou a gente inventa. Temos talento e tecnologia para isso.

As câmeras mostravam, no meio da canção, as pessoas já com gestos melosos sorrindo umas para as outras e trocando olhares brilhantes. Mulheres deitavam candidamente a cabeça no ombro de seus parceiros.  Até a cantora jogou para seu colega, enquanto cantavam, um olhar tão meloso que até parecia amor verdadeiro. Não estava apaixonada. Era a magia da música, tão irresistível quanto volátil. Ilusão. Faz parte.  Breve, mas real.  Não havia falsidade em nenhum gesto de carinho.   E assim que a vida se torna mais palatável.

A vida segue reta e pesada em sua marcha dura mas momentos musicais como aquele  criam uma bolha, enorme e cor-de-rosa, que suspende essa marcha monótona. Depois cada um volta à sua rotina. 

Precisamos  de mais momentos assim, que fiquem pairando enormes e rosados enquanto aterrissamos na vida real.  E que venham outros ilusionistas porque em linha reta ninguém aguenta, mas de bolha em bolha até dá para encarar.  

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