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21 de jun. de 2018

Rua da Cobiça

À medida que eu envelhecia a coisa não parava. Haviam prometido descanso interior na velhice mas eu continuava olhando e desejando mil coisas. Não era para ser assim. 

Tempos atrás eu havia assistido o vídeo de um sujeito desenhando com desaforada  facilidade. Foi então que quis aquilo pra mim. Quis aquele dom. Cobicei como quem cobiça  qualquer coisa material.   Tomei algumas providências, comecei a desenhar  para trazer a luz o suposto dom adormecido lá  dentro, mas parei. 

Desejar um dom poderia ser o início de uma história de sucesso. Podemos desenvolver um dom que não sabíamos que tínhamos?    

Hoje me ocorreu que o desejo de ter o dom alheio pode não ser algo mesquinho, mas um aviso alvissareiro. Essa "inveja grávida" pode ser o grito silencioso do seu dom entocado lá dentro do seu EU, que estava sendo ignorado. Pode ser que ele esteja só pedindo para vir à luz. Das masmorras escuras da sua alma o seu dom quer eclodir.  Ao contrário dos bebês eles não crescem trancafiados.  

É tranquilizador pensar que a inveja do dom alheio não seja um defeito em si, mas um alerta da alma, que detectou por perto um correspondente.  Um "dom gêmeo". 

Seríamos capazes de desejar um dom que já não tenhamos? Tomara que não.

É complicada essa Rua da Cobiça. Cheia de vielas, buracos, interrupções. "Cobiçar dons é pior do que cobiçar coisas" eu pensava . Agora  não penso maus assim.  Estou aliviada depois de entender que é só assim que conseguimos  dar à luz os nossos dons ocultos. 

Há tempos atrás eu me perdia nos caminhos da vida.  Dava voltas e me encontrava novamente vagando pela Rua da Cobiça, meio sem rumo.  

Antes eu não conseguia andar em linha reta. Parava em cada vitrine, em cada construção muda.  

Houve uma vez que passei pela Rua da Cobiça e me encantei com a vitrine dos músicos. Dentro de mim eu intuía que merecia tocar como eles. Então olhei ressentida aquela capacidade que eu não tinha.  Mas continuei andando e me detive por um momento na vitrine dos desenhistas. Depois foi a vitrine dos poliglotas. Entrei nos estabelecimentos, pedi informações,  comprei as sementes mas nada brotou.  Ressecaram na gaveta, coitadas. 

Grandes escritores  já se aventuraram  a descrever o inferno mas poucos se dedicaram a essa espécie peculiar de inferno: os infernos dos quarteirões quadrados da cobiça aos quais sempre voltamos mesmo querendo seguir em frente.

Sim,  eu também estou achando esse texto muito estranho.

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