.

.

21 de jun. de 2018

Rua da Cobiça

À medida que eu envelhecia a coisa não parava. Haviam prometido descanso interior na velhice mas eu continuava olhando e desejando mil coisas. Não era para ser assim. 

Tempos atrás eu havia assistido o vídeo de um sujeito desenhando com desaforada  facilidade. Foi então que quis aquilo pra mim. Quis aquele dom. Cobicei como quem cobiça  qualquer coisa material.   Tomei algumas providências, comecei a desenhar  para trazer a luz o suposto dom adormecido lá  dentro, mas parei. 

Desejar um dom poderia ser o início de uma história de sucesso. Podemos desenvolver um dom que não sabíamos que tínhamos?    

Hoje me ocorreu que o desejo de ter o dom alheio pode não ser algo mesquinho, mas um aviso alvissareiro. Essa "inveja grávida" pode ser o grito silencioso do seu dom entocado lá dentro do seu EU, que estava sendo ignorado. Pode ser que ele esteja só pedindo para vir à luz. Das masmorras escuras da sua alma o seu dom quer eclodir.  Ao contrário dos bebês eles não crescem trancafiados.  

É tranquilizador pensar que a inveja do dom alheio não seja um defeito em si, mas um alerta da alma, que detectou por perto um correspondente.  Um "dom gêmeo". 

Seríamos capazes de desejar um dom que já não tenhamos? Tomara que não.

É complicada essa Rua da Cobiça. Cheia de vielas, buracos, interrupções. "Cobiçar dons é pior do que cobiçar coisas" eu pensava . Agora  não penso maus assim.  Estou aliviada depois de entender que é só assim que conseguimos  dar à luz os nossos dons ocultos. 

Há tempos atrás eu me perdia nos caminhos da vida.  Dava voltas e me encontrava novamente vagando pela Rua da Cobiça, meio sem rumo.  

Antes eu não conseguia andar em linha reta. Parava em cada vitrine, em cada construção muda.  

Houve uma vez que passei pela Rua da Cobiça e me encantei com a vitrine dos músicos. Dentro de mim eu intuía que merecia tocar como eles. Então olhei ressentida aquela capacidade que eu não tinha.  Mas continuei andando e me detive por um momento na vitrine dos desenhistas. Depois foi a vitrine dos poliglotas. Entrei nos estabelecimentos, pedi informações,  comprei as sementes mas nada brotou.  Ressecaram na gaveta, coitadas. 

Grandes escritores  já se aventuraram  a descrever o inferno mas poucos se dedicaram a essa espécie peculiar de inferno: os infernos dos quarteirões quadrados da cobiça aos quais sempre voltamos mesmo querendo seguir em frente.

Sim,  eu também estou achando esse texto muito estranho.

19 de jun. de 2018

A moça bizarra do Face

Aqui perto de casa há um rapaz que pede esmola no semáforo.  Ele é portador de severa deformidade física. Cada vez que o semáforo fecha ele se aproxima dos motoristas e quase que esfrega na cara deles o toco do seu braço disforme.  Muitos lhe dão moedas para se livrar logo da situação.    É grotesco mas funciona.  Se é errado? Me incomoda sim,  mas não vou julgá-lo.

Esses dias vi no Facebook a foto de uma moça muito feia, vulgar  e obesa em pose sexy com roupas mínimas. Era de tanto mau gosto que se tornava engraçado. Seria essa a intenção dela? Ou será que se achava bonita? Para se achar bonita deveria ter uma ideia muito distorcida a respeito da própria imagem. Não acredito que fosse o caso. Mas sei que ser feio pode ser lucrativo - ao contrário de ser burro. No caso dela, comportar-se como se fosse bonita provoca vários tipos de reação nas pessoas e isso a mantém na mídia. 

Outra situação que ilustra o que tenho a dizer: o caso do anão no circo. Acho que ele não expõe suas características físicas na esperança de ser considerado bonito. E certamente ele não se aborrece com os risos da plateia, pois tem uma visão real do efeito da sua imagem dentro daquele contexto. Não acho que o que o leva ao picadeiro seja a auto estima elevada. Aquele é seu ganha-pão, simplesmente. Ele é apenas uma pessoa inteligente que resolveu fazer o melhor que pode com o que tem, ao invés de viver choramingando ou culpar o mundo por causa de um padrão de beleza que a princípio não o beneficia.   

Pois a foto da "moça bizarra do Facebook"  inspirou um monte de comentários de pessoas que diziam desejar muito ter a "auto estima dela".   

Não vejo auto estima alguma na atitude de alguém que aceita ser objeto de risos. Pelo contrário. Para fazer tal papel é necessário uma boa dose de humildade. A menos que seja louca, ela sabia que esse seria o efeito da sua imagem naquele contexto. Sabia o tipo de comentários que provocaria. Ressalte-se que não havia nada de esdrúxulo na obesidade em si. Há diversas mulheres obesas e muito bonitas, mas a maneira afetada das poses, a produção cafona, a maquiagem de mal gosto, essas coisas só poderiam causar risos. Certamente essa é uma prova de humildade mais do que qualquer outra coisa. 

Ela só estava sendo  pragmática. Ninguém "choca" as pessoas com a própria imagem se não tiver uma visão muito distorcida de si mesma ou se não pretender auferir algum lucro com isso.  Ninguém gosta de ser objeto de risos se não tiver feito disso uma profissão. 

"- Nunca vou ser Anna Hickmann. Tudo bem. Mas ao invés de viver choramingando pelos cantos vou usar o que tenho para conquistar uma vida mais confortável."    E por que não? Parabéns a ela.

Não, nem ela, nem o rapaz do semáforo nem o anão do circo se expõe daquele jeito se isso não lhe trouxer benefício.  O grotesco bem aproveitado e bem exposto pode vir a ser uma ótima sacada. Essas pessoas  certamente tem uma visão muito clara do que são, a ponto de fazerem disso uma boa matéria prima para ganharem a vida.

Se "a moça bizarra do Face" tivesse uma auto estima elevada ela não apelaria para o grotesco para ganhar a vida. Se o fez foi por saber quem é e a aparência que tem. Ou isso é verdade ou ela está sendo cruelmente usada.   Porque por mais relativo que o conceito de beleza seja, há limites para essa relatividade. Não é algo infinitamente maleável. Mas ao "fazer limonada com o limão que a vida lhes deu" essas pessoas estão de fato deixando um ensinamento relevante para todos nós.  

"- Eu preferiria ser bela, mas não sou. Chorar não adianta. Vou tentar melhorar minha vida com o que tenho, ainda que seja preciso engolir uns sapos e ouvir uns comentários horríveis a meu respeito. Vai compensar quando eu chegar em casa e ver meu filho alimentado, as contas pagas, a cama box, o tapete bonito, a banheira de hidromassagem."    

Não, ela não é burra. E está de parabéns. Enquanto houver quem pague para rir da sua feiura, por que não aproveitar?

A lição aqui não é a de "derrubar padrões de beleza" nem de "chocar a sociedade hipócrita". Não é uma lição de ódio - nem propriamente de auto estima. A lição aqui é de aceitar seus limites, saber viver, agarrar com unhas e dentes as oportunidades que aparecem e, por fim,  fingir que não doeu. 


8 de mai. de 2018

Dia das Mães

Gosto do Dia das Mães. É que na ocasião me sinto no direito de me sentir especial.

Claro que no meio das alegrias aparecem uns espinhos de melancolia também. Fico lembrando dos meninos quando eram pequenos e de como era bom eu ser o centro da vida deles e como eu podia colocá-los no meu colo e ficar com eles o tempo que eu quisesse. E de como minha palavra era confiável porque eles não sabiam nada do mundo. Para eles eu era um poço de cultura. Hoje é mais fácil que eles me ensinem algumas coisas. As coisas mudam, nossa posição muda. Não sei o quanto e não sei se quero saber.  Bem, essa saudade deles pequenos traz sim certa melancolia. Quer dizer: trazia. Hoje não é mais assim. Registre-se que os netos nos curam dessas saudades. Eu não contava com isso. Essa vida é uma beleza!

Lembro de apertá-los, colocá-los em meu colo, de explicar coisas, de ficar olhando eles dormirem, de trocar fraldinhas, de amamentar. Lembro de mim mesma ocupada em mil afazeres com os quais não me ocupo mais hoje.  Era cansativo e muitas vezes eu queria folga. Muitas vezes quis. Mas eram tempos bons, muito bons.  Eu me sentia incumbida de uma grande missão. Agora não sei bem pra que lado vou.  Isso me leva necessariamente a novas descobertas, novas possibilidades, o que é positivo.

Lembro dos meus biscoitinhos caseiros. Nunca mais tive paciência de fazê-los.  Isso prova que eu era melhor antes?  Tomara que não.  Lembro dos shortes que eu fazia, dos passeios na praça, das historinhas.  Dá uma incrível sensação de riqueza saber que tive tudo isso em minha vida.

Lembro de como eu imaginava o futuro e reflito que agora estou no futuro. Oh, aconteceu! E deu tudo certo. Não fui a melhor mãe do mundo mas acho que posso crer que fui uma boa mãe. Ou pelo menos uma mãe bem razoável.  E lembrando de como eu imaginava os dia por vir, vejo que me enganei bastante. Ótimo.  Eu pensava que com a idade que estou hoje eu seria uma velha caquética e sem vida. Nada disso. Estou me sentindo super bem. Grata surpresa.

Todos temos falhas e dessas falhas vem um medo: o medo de descobrir que os erros foram piores do que se supunha.  O maior medo de toda mãe é de que ela tenha cometido um estrago sem conserto, alguma catástrofe confundida com "errinho". Bem, acho que isso não aconteceu. Se aconteceu não me digam. rsrsrs  Brincadeira, digam sim. Eu aguento.

Presentes são bons. Abraços são maravilhosos. Palavras de carinho são o céu. Mas o melhor presente é poder olhar pra trás e pensar: "deu certo."

Mas o que é "dar certo"? É ver os filhos felizes, com a felicidade possível dentro do que chamamos de "vida real".

De repente me ocorre que muitos criminosos tem direito a "saidinha" do presídio no Dia das Mães. Não seria maravilhoso se Deus permitisse que as mães mortas também tivessem direito a "saidinha" só para visitar os filhos nesse dia?

17 de abr. de 2018

Transbordou

Usar o termo "transbordante" para se referir a qualquer coisa costuma  evocar algo positivo.  Traz uma ideia de saciedade borbulhante, farta mas leve.  Transbordar é tudo o que se quer, exceto quando estamos falando de paciência.   Há sim o transbordar  negativo.  É quando  alguma coisa "enche", não cabe mais dentro da gente

Pois o Facebook "transbordou".  Meu relacionamento com ele hoje é de "separação de corpos". Não sei ainda se chegaremos ao divórcio, mas está perto.

Nunca vi um ajuntamento de gente com tanta dificuldade em interpretar um texto, seguir uma linha de raciocínio ou ser contraditada. Não me sinto capaz de  continuar "ouvindo" que  defender um ponto de vista  equivale a "desrespeitar a opinião alheia". 

Mas não foi só isso que me cansou.  Cada defeito dos outros aponta para os meus próprios e isso foi me deprimindo aos poucos.  A cada raiva eu me sentia um verme.  Então imagine você quantas vezes por dia me senti assim. Sou meio neurótica, "meio culpada de tudo", então é cruel essa auto análise diária e forçada.  Se o sujeito é chato considero que chata posso ser eu, que não o acolho dentro de mim com paciência. Se me aborreço com quem não aceita críticas me pergunto por que isso me irrita? E daí que o cara seja imaturo?  Novamente a vilã sou eu.  Posições políticas,  equívocos de interpretação, precipitações, inconveniências, chatices gerais, tudo isso aponta também para mim, que  me irrito quando tudo que eu queria na vida era ser um mar de serenidade e simpatia.

E as eternas discussões insepultas? E os meus brilhantes argumentos que já me enojaram de tão repetidos e inúteis?  Pois ninguém está lá para mudar de ideia mas para expor ideias eternamente, incansavelmente, pelos séculos dos séculos amém.

E a opinião que ninguém pediu? E indireta? E a felicidade falsa? E a feiura cinicamente elogiada?  E a vontade de dizer que o brega é brega?

Fora os assuntos repetitivos temos também os assuntos do momento. De dez em dez dias aparece um escândalo ou piada ou vídeo incrível que eram para trazer baforadas de novidade ao ambiente mas por serem tão exaustivamente comentados ficam logo com cara de velhos.  O vídeo do momento, o escândalo, a mancada da vez, tudo é remastigado por dias.

Na verdade nada disso é bom nem mau. Só que enjoei. Além do mais todos achamos razoável que uma pessoa "recolha" as próprias imperfeições debaixo de uma roupa ou maquiagem estratégica. Pois meu recolhimento pra fora do Facebook equivale a vestir um belo vestido para esconder as "celulites da alma".   Isso porque entrei em crise. Aos poucos fui me sentindo disforme, inconveniente, má, passional. E essa passionalidade é pesada pra mim. Estou em crise com o que sou, o que sinto, com o país e o  planeta.  Tá tudo me espetando.  O país corroído por todo tipo de sífilis social e eu condenada a apenas assistir e protestar  em libras?  Chega. Preciso tirar férias dessa coisa.


6 de abr. de 2018

Reis e rainhas

Quem me conhece sabe que sou fascinada pela história da monarquia inglesa. Sei lá por que.  Talvez isso seja até meio bobo e te dou todo o direito de me criticar.   Mas acho que isso tem  tudo a ver com o fato de que, quando era criança, eu vivia  envolta em histórias de princesas e fadas.  Adorava os contos.

Bem, esses dias eu estava assistindo um vídeo sobre a rainha Elizabeth I e a rainha Mary, da Escócia.   A história é longa e bem interessante mas uma das coisas que me chamou a atenção foi o fato de que, comprovadamente, Elizabeth não queria executar a rainha Mary. Mary fora condenada à morte por conspirar contra a vida de Elizabeth.  Acontece que Elizabeth gelou com esse abacaxi nas mãos por que certamente se lembrou do que significou para si a morte de sua própria mãe, Anna Bolena, decapitada a mando de seu pai, o rei Henrique VIII.  Elizabeth deve ter sofrido muito com isso e deve ter  execrado  tanto o mandante quanto os executores da sentença. Deve ter odiado seu próprio pai. Sei lá. Mas de repente, por uma tremenda ironia do destino, ela se vê em situação semelhante, tendo que decidir sobre a vida de uma mulher.  Não uma mulher qualquer mas uma rainha, uma legítima "ungida".  Isso foi emocionalmente muito pesado para ela.  Mas analisando a sequência de fatos Elizabeth não poderia ter  agido de outra coisa. Ela postergou o quanto pôde. Demorou, pensou, rezou, mas não teve jeito: assinou. E Mary foi decapitada.

Isso tudo pra dizer que a gente costuma pensar que os poderosos são de fato poderosos.  Teoricamente sim, mas não de fato.  Há toda uma cadeia de interesses e pressões e consequências que não pode ser ignorada. E nessa cadeia o tal "poderoso" nada mais é do que um fantoche.  Não sei quantas pessoas xingaram Elizabeth. Não sei quantas outras a pressionaram para autorizar a execução. Mas o fato é que ela foi obrigada a fazer algo que, definitivamente, não queria, e isso lhe pesou em demasia.

Até onde podemos crer que os poderosos de hoje realmente poderiam agir de outra forma?  Quem será que os pressiona? Quem monta neles, às escondidas, e lhes dá as ordens? Como garantir que neutralizar a própria consciência não seja a única forma de não morrer de angústia? E uma vez desativada a consciência, quem me garante que seria possível ligá-la de novo?

Há caminhos sem retorno. O caminho do poder, o caminho da maldade.   O poder nada mais é do que o lugar onde a pessoa descobre que quem tem realmente poder, não aparece. 

Acho que de todas as etapas que se precisa vencer para chegar ao poder,   uma delas se chama "vender a alma ao diabo".  E não sei a partir de qual momento é impossível voltar atrás.

Não digo isso para justificar nada nem ninguém. Ma acho que não considerações válidas. Um poderoso que se vê obrigado a tomar uma decisão, de fato não a tomou. Apenas obedeceu.

Queria poder ouvir cada autoridade desse país e do mundo. As coisas devem ser bem piores do que imaginamos.   Acho até que alguns "não largam o osso" simplesmente porque não podem fazê-lo.


27 de fev. de 2018

Discussão & bate-papo

O Facebook pode ser chatíssimo mas também interessante.   Hoje discordei de uma pessoa e por isso ela pediu respeito. Meu Deus... Argumentei que discordar não é desrespeitar e oha essa pérola que acabei que recebi: "Respeitar é não tentar influenciar uma discussão".

Cara... Qual a discussão que não visa influenciar? rsrsrsrs PUTZ! Quem não quer influenciar nem quer ser influenciado, nem discute! Tem gente que nunca discute. Ok. Geralmente é por um desses motivos abaixo:

1- Não discute porque não tem curiosidade alguma em conhecer as razões do outro. A pessoa se fechou em seu próprio mundo e está satisfeito assim;


2- Tem preguiça do exercício intelectual de discutir.  Porque dá um certo trabalho mental elaborar respostas, questionamentos e ainda detectar as incoerências no discurso do outro.

3-  Tem gente que não discute porque acredita que encontrou a verdade e que ninguém pode lhe acrescentar mais nada de útil naquele assunto.

4-  Já há outros que não discutem justamente por desapego à verdade: edificou toda a sua vida em cima de uma determinada crença e odeia a ideia de que alguém possa lhe provar que sempre esteve errado.

A discussão SAUDÁVEL é justamente a troca de argumentos visando chegar a um senso comum. ESTOU FALANDO EM DISCUSSÃO , NÃO EM UM SIMPLES BATE PAPO. No bate-papo cada um apenas vai falando o que pensa sem interesse algum na opinião do outro. Bater papo é muito diferente de discutir. Ao fim de uma discussão alguém pode mudar de idéia. Ou podem ambos permanecer com suas ideias iniciais. Nada de errado nisso. Mas o intuito de qualquer debate é convencer ou ser convencido. A discussão visa CHECAR A VERDADE DE CADA UM.

O bate-papo tem uma finalidade predominantemente emotiva. A pessoa apenas quer proximidade, quer  interagir com outros seres humanos, quer estar junto e ser ouvida e para isso finge que também está ouvindo. Eventualmente até ouve o outro mas sem muita atenção porque no bate-papo o que importa é estar junto, não as idéias. Geralmente nem se expõe idéia nos bate-papos, só falamos sobre coisas simples. É uma "prestação de informação descompromissada", de forma que nada que o outro diga é importante o suficiente para merecer alguma observação ou contestação. Já a discussão tem uma finalidade muito diferente: é um exercício intelectual.  O que o outro diz não é pra "jogar conversa fora", mas é para ser analisado com carinho . Na discussão a pessoa quer expor idéias, quer ouvir idéias,  quer checar idéias. Quer também testar a vulnerabilidade ou robustez de uma afirmação. 

3 de fev. de 2018

Migração


Olho para o céu e, parece-me: todas as aves voam para ti.

Há uma festa para onde elas estão indo, mas elas não dizem nada. Se eu pudesse segui-las chegaria a ti, mas não posso.

Sinto inveja das aves que pousarão no teu ombro e brincarão nos teus cabelos. Sinto inveja desse vôo silencioso, cheio de segredos. Sinto inveja desse caminho certeiro, dessa ausência de dúvidas que só as aves têm.

Sigo meu caminho na Terra. Cumpro a minha sina, que nem tem sido penosa. A vida é boa, embora fique aquela dor antiga incomodando o sapato. Mas é assim mesmo: todos os sapatos doem e as dores nem sempre se despedem.

Sinto saudades, mãe. A senhora sabe disso.

Um dia o meu caminho na Terra me levará ao caminho das aves. Nesse tempo darei o último passo aqui e descobrirei, finalmente, onde você respira e quais os ventos que sacodem as suas roupas brancas.

1 de jan. de 2018

Primeiro de janeiro



O dia de ficar melancólica era, indiscutivelmente, ontem. O último dia do ano é quando a vida dá licença para lembrar, ficar triste e até chorar.  Em meio aos fogos de artifícios todas as dores podem vir à tona fantasiadas de emoção deslumbrada. Vale tudo, todos se saúdam e pronto. Não chorei ontem. Nem hoje, para ser sincera. Mas estou sentindo um peso, uma dor. Uma angústia de saudade, uma sensação de subtração.  Estou me sentindo profundamente só porque quando nossos pais se vão a gente fica só para sempre. Nada conserta isso. A gente se apaixona, a gente casa, tem filhos, se envolve tanto com o presente que o passado fica suspenso, pairando no ar. Por um tempo ele não nos incomoda. Por um tempo esquecemos e pensamos que mudamos, que somos outra pessoa e não precisamos tanto do que aquelas pessoas nos davam em termos de amor e aconchego de alma.  Mas tudo que sobe, desce. Toda água que vai para o céu acaba voltando, mais cedo ou mais tarde, levemente ou destrutivamente. Um dia a vida diminui o ritmo, um dia os problemas se resolvem (ou solidificam), um dia os afazeres se acalmam
, dão um tempo. Aí você senta na varanda para tomar um chá olhando para o céu e descobre que esse foi o seu grande erro. É na varanda do repouso, da reflexão e da cadeira de balanço que tudo o que estava suspenso cai sobre você como uma avalanche.

Cadê minha mãe? Cadê meu irmão? Onde estão meus padrinhos que faziam tudo por mim?


Estou aqui, pequena e assustada, horrivelmente carente nesse corpo de senhora.  O presente é um castelo cheio de fantasmas amigos. Eles sopram e dizem que sou um personagem de outra trama. Minha trupe se foi.

Minha saudade caiu sobre mim como chuva de gotas grandes.

Quando estou assim não lembro imediatamente das pessoas. Elas vem depois. O que lembro  é de lugares, cenários, sensações, músicas, vozes, coisas muito íntimas, muito minhas, incomunicáveis. Essa incomunicabilidade me aflige imensamente porque impede que eu me alivie. Eu quero te dizer, falar pra você, fazer você conhecer e ficar com parte dessa dor. Mas é impossível. 

Lembro muito, muito mesmo de como eu me sentia. E sinto um cheiro de guardado enquanto isso. Cheiro de caixa de relíquias. Lembrei da dor na barriga antes de entrar no palco para aquela apresentação de Natal. Lembro das crianças, dos holofotes, das asas de anjos de cartolina e papel crepon e o tempo que levamos para preparar tudo aquilo. As roupas de cetim barato.  Droga! Lembro do que eu era, de como eu era e de como me sentia. Só depois, bem depois, vem as pessoas com suas caras e jeitos compor esse caldeirão. Lembro das expectativas do Natal, da árvore, dos presentes novos, do primeiro dia no colégio, da pasta de couro, da raiva que eu tinha das minhas pernas finas. Tudo se acende de novo, se ilumina dentro de mim só para doer mais. Lembranças por si só não doem. Mas há um algo mais que dá realidade a tudo. Há um componente misterioso que faz a gente re-sentir e re-ver.  Aí é um tapa.

Estou mal. Estou vendo a cozinha da casa da minha madrinha com aquele monte de panelas. Estou vendo meus vestidos novos, a mamãe vindo do salão. Sinto o cheiro do glacê do bolo. Mas o que me arrasa é lembrar daquela sensação de acolhimento e segurança que não tenho mais. Estou vendo minhas amigas, o quintal com duas palmeiras. Estou sentindo novamente aquela felicidade meio dolorida, meio misturada com uma melancolia onipresente que eu nunca entendi. Quero o meu pai.

Me sinto só. Me sinto órfã de todos os que me amavam. Me sinto tão criança que você nem pode imaginar. E tenho um sentir de abandono, de "sozinha no mundo", de "todos se foram e eu fiquei".  Por dentro eu sou uma menina esquecida na estação de trem.

Eu poderia continuar escrevendo meses sobre isso e repetir pensamentos e frases como um pêndulo ou roda gigante cujos assentos sempre voltaram ao mesmo lugar. Ir e vir é o seu destino. Posso falar sobre isso novamente e te enfadar com minhas lembranças repetidas. Preciso fazer isso! Preciso dizer tudo de novo até conseguir me esvaziar dessas coisas e me sentir melhor. Acho que o esquecimento vem depois do cansaço. Se eu cansar de lembrar talvez isso canse de doer.   Preciso escrever de novo e de novo até que se esvaiam todos os cheios, até que sequem todas as flores, até que tudo vire apenas fotos amareladas e cansativas. Deve haver algum jeito de isso tudo se perder ou ficar apenas banal.

Dizem que envelhecer é assim, quando o passado volta com mais força, quando você se sente sozinho, quando você tem a impressão de que sua alma ficou lá atrás, desnorteada. Envelhecer é quando você não quer absolutamente nada em troca do que perdeu.  É quando você prefere a boneca velha de um olho só porque de todos os que sabiam de você, só ela sobrou. A boneca encardida é a única que sabe de tudo. É a última tabua nesse oceano. Envelhecer é quando você não quer nada novo e se torna uma menina inconsolável exigindo o que não pode ter.  Envelhecer é quando a saudade fala mais alto do que tudo. É quando todo consolo se torna um insulto.  É quando você não se sente mais mais desse mundo e prefere mesmo que seja assim.

23 de dez. de 2017

Miojo

Hoje o dia se arrastou. A noite promete se arrastar  ainda mais. Jantei só pra constar. Não estava com fome. Bebi uma cerveja horrível. Não estava bem gelada.  A única coisa em mim que presta hoje são as unhas, pois fui ontem ao salão. Tudo o mais é de afastar, não de atrair.

A salvação, às vezes, é a sacada. é pra lá que vou sentir o fresquinho da noite e pensar em coisas interessante.   Mas hoje não funcionou muito.  Olhei a rua e achei terrivelmente triste as poucas luzes de Natal mal penduradas, aqui e acolá.  Elas me pareceram tão cansadas e desistentes que precisei desviar o olhar.  

Da sacada geralmente gosto de imaginar que todos estão felizes em casa. Já até escrevi um texto bem razoável sobre essas coisas de fim de dia. Mas hoje me surpreendi comigo mesma. Dessa vez os pensamentos foram muito antipático. Os prédios que antes me despertavam ideias relaxantes agora me pareceram tão vulgares e encardidos!

Ali, bem em frente, as mesmas janelinhas amarelas piscavam caladas, de costas pra mim. E delas adivinhei um cheiro insuportável de miojo partindo do ventre de suas cozinhas. Miojo: a comida mais barata, fácil e desaconselhável que alguém pode escolher. A comida da dona de casa mal humorada que não tem carinho suficiente para fazer nada melhor. A comida do solteiro entendiado e sem dinheiro, cansado e de saco cheio. Azedo. Todos os prédios estão cheirando miojo fervente. Ao lado dessas cozinhas desprezíveis vi áreas de serviço igualmente nojentas, com migalhas de pão caídas pelo chão, umas baratinhas perdidas e montes de roupas por lavar. Do outro lado um monte de roupas por passar e por guardar. As pobres roupas limpas estavam lá há dias e já haviam perdido todo o encanto que poderiam ter com o cheirinho de sabão em pó. O perfume se fora por completo e tudo o que sobrou foram os amassados e o amarelados das roupas brancas mal lavadas.

Na sala algumas cadeiras saíram de seus lugares e tentaram zanzar,  mas pararam no meio do caminho meio indecisas. A televisão joga na cara de todo mundo o Jornal Nacional, que contribui consideravelmente para que cada um tenha uma noite péssima.

Mulheres solitárias, homens indispostos, crianças enjoadas, adolescentes estranhos. E alguns velhos cuja diversão única é imaginar por horas um plano de fuga daquilo tudo. Poucos velhos. Eles morrem de pena dos mais jovens mas mesmo assim fugiriam sem olhar pra trás.  Bastaria para isso um plano. Um bom plano.

6 de nov. de 2017

Salvando a própria pele


Sobre a afirmativa de Jesus, de que "quem quiser salvar a sua vida vai perde-la e quem a perder por causa de mim e do evangelho vai achá-la":

É interessante notar que isso não se aplica apenas  ao evangelho. Gostaria de tirar  da conversa  a questão espiritual ou religiosa e refletir no seguinte:

Pra tudo na vida essa máxima pode ser aplicada. Se nossa existência  se resume  a "salvar a própria vida", a gente simplesmente não vive. Se tudo o que eu fizer ou deixar de fazer tiver a ver com encompridar a existência,  acabarei  sendo enterrada viva, dentro de casa.  

Há pessoas que não vão a lugar algum "por causa da violência". Há os que não comem uma lista imensa de alimentos por causa dos agrotóxicos,  por causa dos hormônios ou dos aditivos químicos ,  do meio ambiente etc. Privam-se de se arriscar em  lugares, romances, investimentos, comidas, contato humano, novas experiências... Privam-se da vida "por amor à vida". Não é uma contradição?

Não haveria heróis se todos pensassem apenas em preservar  a própria pele. Porque "dar a vida" não significa exatamente morrer por alguém. Dar a vida é também disponibilizar a vida, arriscar a vida, meter a cara.

As maiores personalidades do mundo, os grandes aventureiros e revolucionários não colocaram a própria sobrevivência em primeiro lugar. Quem o faz não passa de uma vela apagada, na maioria das vezes. Uma bola murcha.   Os grandes homens preocuparam-se mais com o tipo de vida que queriam leva  do que com  longevidade. Mais qualidade do que quantidade.  O resultado é que viveram vidas muito mais intensas e interessantes do que a da maioria das pessoas.

Não sugiro que vivamos irresponsavelmente, mas dedicar toda a vida a apenas resguardar a vida realmente não é  viver .  

Há pessoas que morreram jovens mas viveram muito. E há os velhos que se preservaram tanto que hoje tem cheiro de naftalina, dinheiro guardado para os outros  e um album de recordações chocho.  


REALIDADES BRASILEIRAS