.

.

13 de abr. de 2021

Texto para quem admira os loucos , os rebeldes e os irreverentes

Inversão de valores. É disso que quero falar.

A palavra "rebelde"  já foi um xingamento. Era um rótulo que ninguém queria para o seu filho.  Quem contrataria um rebelde?  Pra que serve uma pessoa que faz o que quer,  ignora regras e só pensa em si?  Rebeldia significa confronto, falta de disciplina, desprezo à autoridade. Um rebelde é uma péssima influência para os seus filhos.  Mas agora querem perfumar a palavra.   Deseja elevar a imagem de um artista medíocre? Diga que ele é um "grande rebelde".  Pronto, o insignificante já vai ser visto com outros olhos.  

Esse "elogio" perde toda a graça e passa a ser o que é, um xingamento, quando é VOCÊ que tem que tolerar o rebelde. O sujeito que não segue as regras da sua casa nem do colégio nem de nada. É o sabichão cheio de razão que não respeita a hora de silêncio do condomínio, não respeita a sua vaga na garagem, não respeita as regras da biblioteca nem de uma viagem de avião.   O rebelde é sempre o "rei" do pedaço. 

Da mesma forma chamar alguém de "irreverente"  deixou de ser afronta e passou a ser elogio.  O irreverente na verdade é só um grande mal educado. É alguém que não respeita os sentimentos dos outros, não sabe silenciar diante de assuntos delicados, não respeita luto, não respeita solenidades.  Ser irreverente é não se importar em estar ferindo porque o conforto, a vontade e a diversão dele é só o que importa. Enquanto o rebelde confronta a lei, o irreverente agride de outra forma. Ele ataca não diretamente a norma, mas a sensibilidade dos outros. 

Inventaram que ser irreverente é "charme".  Só deixa de ser charme quanto a irreverência se volta contra você. Quando o sujeito faz piada com o que você considera sagrado ou com a sua doença, quando ele fala alto no velório, quando cochicha piadinha no enterro, quando você não consegue se concentrar em uma missa porque tem um mal educado conversando ou andando para lá e para cá, quando o mal educado vai ao casamento da sua filha de bermuda e chinelo, quando a beleza de uma cerimônia é avacalhada porque "o tal charmoso" era totalmente inconveniente em suas atitudes. 

Outra coisa: vejo muita gente que jura que "ama mesmo é os loucos" e que gente "certinha" é muito chata. Não acho. Pois eu admiro que quero ao meu lado as pessoas corretas, que tem palavra, que sabem se comunicar, que raciocinam com lucidez e que não dá gargalhada histérica em restaurante.    Quem "ama os loucos" deixa de amar rapidinho quando é ele que tem que aturar seus delírios e falta de bom senso.  "O cara era um barato, era muito louco", por isso destruiu o carro da empresa,  destratou o cliente, gastou todo o dinheiro em um projeto ridículo e agora quer que você o sustente. O "locão"  era top. Por isso levou  criança para um show de rock ao ar livre e choveu; deixou seu filho de 12 anos dirigir e deu merda; esqueceu um compromisso importante, deu o recado para a pessoa errada, destruiu seu apartamento dando festa, não tem responsabilidade. Sim, os loucos são adoráveis na casa e na vida dos outros. Quando a bagunça é na sua casa a coisa muda. 

Concorda? Pois é. Então não diga que adora doido.  O que você gosta é de gente divertida. Isso não tem nada a ver com ser maluco.   E outra:  lucidez nunca foi sinônimo de chatice.  Uma pessoa que não aparece em sua casa sem avisar antes, que não entra no seu quarto sem permissão  nem conta piadas picantes na hora errada, não é uma pessoa "certinha chata". É só uma pessoa educada. E ela pode ser uma pessoa muito interessante.  

Aprenda o significado das palavras!   

1- "Irreverente" não é sinônimo de descontraído. É só um sem noção que precisa se civilizar.

2-   Ser "doido" não significa ser alegre ou divertido;  

3-  Educado não é sinônimo de chato.

4-  "Rebelde" não é sinônimo de questionador. O rebelde não questiona "P.N." de forma sensata.   Ele só é um mala que traz transtornos porque se recusa a seguir regras.



23 de mar. de 2021

O crochê das cartas *




"Escrevo-te essas mal traçadas linhas..."
"Escrevo-te esta mensagem desejando que ela te encontre feliz e saudável,  juntamente com os teus. "
"E não repares nos erros de português..."

Frequentemente era assim que se iniciavam as cartas: de um jeito formal, empertigado.   Nada de gírias . Escrevia-se para o primo como quem escreve para o chefe. E por que não? 

Eu adorava escrever cartas, embora as minhas não tivessem as tão famosas "mal traçadas linhas".  Quem escreve uma carta tem 60% de garantia de receber uma resposta e aí está uma das delícias de fazê-lo. Se você tivesse sorte a resposta viria em uns 15 dias.  Em época de e-mails e WhatsApps, 15 dias parece muito, mas não naqueles idos. O tempo é relativo. Para ser mais precisa: o tempo não existe. Melhor ainda:  o tempo é como chifre, é uma coisa que colocam na sua cabeça.

Me ocorreu agora que nesses tempos emocionalmente chochos deveríamos "brincar de voltar ao passado".   Que bela surpresa a sua amiga teria ao receber uma carta sua! Que iniciativa simpática! Redigir uma carta hoje é quase como tecer uma peça de crochê. 

Faça crochê!

Sim, eu sei que existem e-mails, WhatsApp e outras frias modernidades que tornam tudo muito mais rápido e sem graça.  Ignore. Siga em frente na sua decisão de ser "original". Escrever carta é escrever história! Porque geralmente elas são guardadas como relíquias. Olha que chique! Muito da história que  conhecemos revelou-se através de cartas. Diários também, mas hoje é dia de falar das cartas.

Boa parte da história do Brasil e do mundo foi resgatada através da doce indiscrição de revirar cartas alheias.   Amareladas e misteriosas elas nos revelaram coisas incríveis!  Eram objetos pessoais cheios de desabafos íntimos, mas com o passar das décadas (e séculos!) tornaram-se documentos, verdadeiras relíquias; provas de crimes e conspirações,  amores e ódios. As melhores cartas eram as desesperadas, na minha opinião.

Nas cartas mostrávamos não apenas nosso interesse mas, muito mais que isso, mostrávamos nossa cultura, personalidade e bom gosto.   Em uma carta a sua letra é a SUA letra!  É como uma impressão digital. Você está lá. Parte de você vai junto, no envelope. Cada carta é única.  Por isso quem escreve preza muito a boa letra, o acerto, a cultura enfim.  Porque ninguém quer revelar a própria ignorância assim, tão flagrantemente,  em meio a garranchos, frases mal ajambradas, parágrafos desconexos e perguntas sem interrogação.   

A desnecessidade de escrever cartas é um dos fatores que nos jogou no abismo do relaxamento cultural em que nos vemos hoje. 

Sua letra  e modo de se expressar denunciavam sua agudeza de espírito, seu estado de saúde,  sua pressa, calma e mais outros dados sutis só notados por espíritos igualmente refinados.

O papel escolhido também falava por si  só.  Uma folha qualquer em branco jamais se igualaria àquele  papel fino e pautado. Nesse caso você demonstraria ser alguém mais organizado, sensível e atencioso. Vaidoso talvez.   A escrita da caneta também poderia denunciar  capricho ou estado de pobreza lamentável.  Tinta vermelha, e ainda falhando? Era o fundo do poço.  Já aquele azul profundo e uniforme deslizando no papel como uma virgem sonhadora na pista de gêlo ...  Que finura!   

Você poderia também colar decalques e diversas figurinhas no papel.  Dependendo da idade e do tipo de figura isso indicaria leveza e bom humor ... ou um espírito meio retardado. 

Por tudo isso e um pouco mais eu gostava tanto de escrever e receber cartas. Porque você só escreve a quem dá muita importância e só recebe de volta se tem importância para alguém.   Há todo um jogo de  distinção nisso. 

Dificilmente uma carta passa de três páginas. Mais que isso é prova de grande intimidade porque nenhum assunto formal rende tanto.  Já a carta de uma folha só poderia ser indicativo de que a pessoa só queria "fazer o social":  desincumbir-se logo da tarefa de responder para não dar espaço a cobranças. 

Isso tudo acabou?  Não necessariamente.   Posso hoje mesmo iniciar um movimento encorajando as pessoas a escreverem de novo umas para as outras. Não da maneira relaxada como no WhatsApp, com textos cheios de "ata", "tdbm?" e "qq rola?" mas com aquele desvelo de quem tece, para o futuro, os documentos que virão a ser "do passado". Fazendo história, enfim.

Vamos lá?  


22 de mar. de 2021

A moça dos pés falantes *


A MOÇA DOS PÉS FALANTES


Missa de formatura de filho de amigos. Lá estava eu na belíssima Basílica de Nazaré. O lugar é lindo e solene e eu coloquei a roupa mais linda e solene que meu dinheiro conseguiu comprar.

Em um momento de cumprimentos mútuos, antes de iniciar a cerimônia, deixei meu lugar e me dirigi ao final do templo para andar um pouco e me resguardar da balbúrdia daquela multidão inquieta.

Eu observava tudo de rabo de olho”. Nos últimos bancos o que a gente menos vê é missa. Entre santos e pecadores notei, a uns quatro metros, um par de pernas morenas, cruzadas e imóveis. Era uma moça e era pobre.

Eu estava entediada com a missa que não começava. Minha mente, inquieta e criativa queria ter em quê pensar. Como um gato na coleira, minha imaginação começou a miar exigindo o direito de vagar entre os bancos e saber de tudo. “Meu gato” se soltou sozinho. Aí então comecei a romancear.

Aquela moça só pode ter sido levada por um forte impulso de amor pois não tinha roupa adequada para estar ali. Atribuí a ela, então, um enorme coração e um rosto puro e sereno (que eu não conseguia ver de onde estava). Continuei: atrás de si ela deveria trazer toda uma história de ternuras e sacrifícios pela família. O formando deveria ser um irmão mais novo. Ou primo que ela criou. Talvez não, por causa da idade. Quem sabe um irmão mais velho outrora perdido mas que venceu a bebida e conseguiu diploma. Ou um namorado pobre e sofrido? Não havia dúvidas de que para ela aquele momento era muito significativo, mais do que para todos os outros.

Pois ali estava ela, com a renúncia da sua vaidade. Destoava do grupo com suas roupas simples e visivelmente baratas. Nas unhas, esmalte de quinze dias. Os cabelos depois notei: não receberam cuidado especial. Foram lavados e secados ao vento como qualquer coisa selvagem da Amazônia. Assim era porque assim imaginei. Mas mais do que os supostos cabelos, seus pés falavam. E muito. Contaram-me do orgulho da formatura, do sonho realizado e da exigência do seu coração amante, que a fez arrastar-se até ali naquele estado simplérrimo. As sandálias eram empoeiradas e gastas. Chegou de ônibus, claro, com seus pés jovens e desidratados. Eram desertos morenos que falavam de distâncias. Pousavam na igreja como passarinhos na caverna, de olhos arregalados. Quem inspirava aquela moça a estar ali, sozinha, e tão desvestida de solenidade? Seus pés queriam explicar por que tinham todo o direito de estar ali, sem sandália dourada, em um desafio altivo a todos os trajes sociais.

Ela estava ali por alguém.

Começara a cerimônia. Entre um “amém” e um “glória a vós, Senhor” deduzi que sua coragem de deixar-se ver tão despojada viria do fato de ser bonita. Porque uma mulher jovem e bonita tem perdão para quase tudo nessa vida e toda mulher já nasce sabendo disso. Imaginei então um rosto moreno de pele lisa e levemente suada, olhos grandes e meio tristes, mas de cílios espessos. Boca fina e sem batom. Cintura fina, quadris imponentes. Uma flor d’água. A heroína do meu micro romance não poderia ser menos que isso. Resolvi então conferir.

Quando finalmente vi seu rosto acabaram-se as divagações. Não era bonita. A seu favor só havia a juventude e a altura. Mas meu romance não estava perdido. Era uma cabocla comum - mas amava! E isso a tornava especial. Retomei a história.

A moça dos pés falantes chorava sem parar. Que meiga! E mais: chorava sem contrair o rosto! Essa é uma arte que jamais consegui dominar: chorar sem fazer careta.

Antes de mirá-la descaradamente só pude notar que chorava por causa do movimento das mãos, que levou ao rosto várias vezes para tirar da rota algumas lágrimas ligeiras. Ela o fazia com calma, sem preocupação nenhuma de esconder a emoção. Ela era alta mas nesse momento me pareceu mais alta ainda. Virou uma palmeira.

Não era a única pessoa
comovida. Mas só ela saiu de casa com roupas de pobre, pegou ônibus com sandálias surradas e entrou na Basílica de Nazaré de cabeça erguida. Aquele momento era tudo pra ela.

Decididamente ela era a heroína de uma linda história de amor.  Construí essa história e acredito nela. De coração.


11 de mar. de 2021

Hoje é o último dia da minha vida *

Essa noite sonhei que fui condenada à morte, então resolvia escrever minhas últimas palavras. As pessoas que eu mais amava iriam ler minhas declarações, inclusive minha mãe (que no sonho ainda não havia morrido). Isso aumentava muito a importância e a responsabilidade do que eu iria dizer.

A primeira frase já estava decidida. Seria "Hoje é o último dia da minha vida". Ponto. Daí eu começaria a desenvolver o resto.

Comecei a escrever mas logo joguei tudo fora porque o papel não era adequado. Depois recomecei porque eu estava em uma posição desconfortável e a letra estava saindo horrível. Depois joguei tudo fora de novo e recomecei porque a caneta estava falhando e acabou a tinta. E por várias vezes tentei escrever mas não passava da primeira folha. Eu queria algo marcante, sensível, poético, algo que resumisse minha vida e meus sentimentos e onde pudesse dizer tudo o que sinto por cada pessoa que amo. E também tinha que dar tempo de pedir desculpas e explicar certas coisas.  Bem, isso tudo daria um livro mas eu só tinha um dia para escrever!   "Amanhã" eu seria executada. Não daria tempo de fazer  nada perfeito, nada com valor literário.  Por fim, então,  tomei a decisão correta: simplesmente escrever o que me viesse à mente sem me preocupar com nada mais. E se não desse tempo de terminar, paciência. Anne Frank também não "terminou seu diário" e mesmo assim ele se tornou um best seller.  Não, nem Anne Frank eu queria ser. Queria apenas abrir o coração para o mundo e mostrar que existi.

Recomecei, por fim. Resoluta. Passei a registrar vários momentos da minha vida. Eu pulava de uma lembrança para outra, recomeçava, comentava sentimentos, mencionava pessoas. Não me importava mais com a ordem das coisas. Quem precisa de "ordem das coisas" no último dia da sua vida? Os pensamentos iam e vinham, tudo fluía imperfeitamente com deveria ser.  

Em determinado momento eu não sabia mais se ainda estava acordada mesmo ou não. Porque eu continuava pensando, lembrando e selecionando com a minha mente tudo que deveria ser registrado. Em algum momento o sonho acabou mas eu continuava na cama com os mesmos pensamentos de escritora, de olhos fechados, redigindo mentalmente minhas memórias e declarações. Meio acordada, decidi que iria escrever tudo aquilo de verdade, em um caderno ou blog. Queria me lembrar de tudo, então eu entrava e saía do sonho sem saber se meus pensamentos eram uma continuação dele ou se eu ainda "estava lá".

 A partir de algum momento indefinido acordei e fiquei pensando no significado daquele sonho. Ele não é a história de todos nós? 

Estamos todos "condenados à morte". Todos vamos morrer. E não temos chance de voltar atrás para corrigir tudo. Poderíamos até tentar mas seria como na escrita: toda vez que eu tentava recomeçar para escrever melhor, escrevia novo texto cheio de erros que seriam rejeitados na própria revisão. E sempre haveria uma revisão. A capacidade de olhar para trás é infinita e paralisante.  Meu texto jamais ficaria perfeito. E se eu ficasse presa ao passado remoendo tudo jamais escreveria "minhas últimas palavras." O livro da minha vida jamais avançaria nesse eterno recomeçar. 

Acho que é por isso que Deus não nos deixa voltar ao passado para remendar as coisas. Não é por maldade. Ele apenas sabe que não adiantaria. Ao retornar eu corrigiria erros antigos mas cometeria erros novos.

Siga em frente, Cristina. Apenas olhe para a frente e viva!  Não vale a pena revisar infinitamente seus atos.   O "livro da sua vida" não será perfeito. Não vai haver tempo de dizer tudo, justificar tudo  nem consertar tudo. 

Viver é escrever.     Apenas "escreva" e quando o tempo acabar, acabou.  Não se preocupe com o "carcereiro". Ele sabe a hora. Concentre-se no que você ainda tem de vida - e você tem pouco tempo! Abandone a pretensão boba de produzir uma obra prima. Apenas faça o seu melhor e deixe mensagens de amor. É o suficiente.

Estou começando a achar que esse sonho foi uma orientação do além.

10 de mar. de 2021

Maria *

Sou uma pessoa de sorte. A maior parte dos meus sonhos se realizaram. Houve frustrações homéricas, é bem verdade, mas não importa. Sou uma pessoa de sorte.

Todo mundo tem, ou teve,  um sonho secreto que nunca aconteceu nem vai acontecer.  Sério. Não vai. Sejamos realistas.   Vou confessar um dos meus sonhos que, de tão bobinho e antigo, deveria ser esquecido. Mas como todos sabemos, sonhos entalados não morrem. 

Era uma bobagem... mas era a MINHA  bobagem romântica!  Há algo de sagrado nisso. 

Meu sonho era casar igual Maria  no filme A Noviça Rebelde.   Pronto, agora todo mundo já sabe.  

Entrar na igreja como ela, oprimida por tanta felicidade, compenetradíssima ao som do "Processional and Maria"  (https://open.spotify.com/track/13aKlygoQB1yeU4MEpW8in?si=Sa51jBRFTnCdBrR1Z-R69g).   

Nossas bobagens preciosas não são para serem jogadas fora.  Elas nos traduzem, denunciam nosso verdadeiro "eu". São nossos hieróglifos. Não se joga fora uma coisa assim. 

E lá ia Maria, reluzente em sua simplicidade e despretensão de ser bonita.  Resoluta deslizando pela igreja, soprada por aquele órgão imponente. Sozinha, sem pai nem mãe, deixando tudo para trás.  Gloriosa e humilde. Maria.

Casei duas vezes mas em nenhuma delas essa música tocou.  Por quê? Porque eu não disse a ninguém que queria. Por ser um sonho sagrado demais eu o guardei em meu compartimento secreto.  Não poderia correr o risco de  ouvir um "não".  Ouvir um "Ah, não vai dar!"   ia acabar comigo.  Quem iria entender em plenitude o que aquilo significava para mim ? Melhor não arriscar.  

O fato é que sempre fiz isso comigo mesma. Quando o desejo é muito intenso, não falo. Quando muito, insinuo.  Porque se não acontece e a culpa é minha, eu me viro com meus fracassos. Mas se a culpa é do outro, temo que a mágoa seja eterna. 

Bobagem. A mágoa foi eterna do mesmo jeito. Por que não tentei? Eu poderia ter casado ao som do Processional da Maria, ora!








Christopher Plummer *

 Confissão:


Quando criança eu era muito apaixonada por este homem: Christopher Plummer. Por causa do filme A Noviça Rebelde, que marcou a minha vida. Ele era o Capitão Von Trapp e me lembrava demais o meu pai. Por quê? Só Deus sabe. Não há semelhança física nenhuma entre os dois. Mas por alguma curiosa associação mental quando eu o via em alguma foto o meu cérebro se apressava em fazer uma improvável link com a figura do meu pai. Quando ele cantava era meu pai cantando. Ele era o meu ideal de homem perfeito.

Talvez essa esquisitice se deva ao fato de que meu pai gostou muito do filme e por isso nos levou para assistir. Foi a primeira vez que fui ao cinema. E ele ainda comprou a trilha sonora, que tocava em casa o dia inteiro. Eu e meus irmãos sabemos cantar todas as músicas em "inglês". Pouco depois meu pai morreu... Aí misturei tudo dentro da cabeça e me apaixonei perdidamente pelo Capitão Von Trapp.

(Christopher Plummer morreu aos 91 anos, em fevereiro de 2021)

9 de mar. de 2021

A Terra não é redonda

Fiquei muito triste esses dias quando descobri o que eu já deveria saber: a Terra não é redonda. Nem quadrada. Nem plana. A Terra é disforme. E tem um calombo na testa.

Levantaram o vestido da Terra e descobriram que sem oceanos ela é cheia de celulite, culote e furúnculos.  Sinto-me como o homem que pensa que se casou com uma mulher bonita mas não a reconhece de cara lavada. Ou como a criança que descobre que não existe Papai Noel.

O "lindo balão azul" não passa de um maracujá pisado. Aquela redondice graciosa não existe. A Terra foi pega em flagrante,  "fotografada"  de cara remelenta e antes de escovar os dentes.   A verdade é isso aí que vocês estão vendo na foto: uma enorme batata murcha. 

De repente morar na Terra perdeu todo o charme.  De uma hora pra outra virei favelada.

Saudade da minha ilusão de um planeta azul redondinho, matizado de branco, rodopiando feliz pelo universo sob olhares invejosos de planetas esburacados. Naquela serena imensidão eu via florestas, pássaros, peixes curiosos, montanhas geladas, crianças com laçarotes, bolo de fubá...    Agora estamos todos com chinelas de dedo e desdentados. 

Vocês não precisam contar isso aos seus filhos. Eles necessitam manter algum tipo de fantasia. Quando estiverem mais maduros absorverão melhor a realidade. Mostrem a eles apenas a Terra com roupa de festa flutuando alegremente nesse imenso salão chamado Via Láctea.



2 de mar. de 2021

DOUTOR "FONTE"

"FONTE?"😎

Às vezes a pergunta é sincera, de querer saber mesmo a fonte da informação.  Mas geralmente não é. Na maioria das vezes perguntar pela  "fonte" não passa de uma cartada para desarmar o oponente e fazer de conta que ele não sabe o que diz.   

Aprenda esse truque pouco honesto: quando uma pessoa fica encurralada essa é a saída supostamente menos indigna. Basta empinar o nariz e perguntar:  "FONTE?" com jeito sério e ar de autoridade, de quem gosta de tudo muito bem certinho.  

Só pose.

Na verdade a palavrinha mágica serve para alguém fazer de conta que venceu a discussão. Todo mundo sabe que ninguém tem na cabeça a bibliografia de tudo que sabe. Ninguém sabe o número de todas as leis que menciona, de todos os artigos que já leu,  todas as conversas que teve com mestres e doutores,  todos os programas que explanavam um determinado assunto ou todos os documentários que já assistiu.

"Aaaiiinnn ele não soube citar a fonte! Ganhei!"  🤡

Nenhum de nós sabe dizer de cabeça a fonte de nem 1% dos nossos conhecimentos.   Por isso eu digo que responder "FONTE?"  não passa de uma cartada marota de quem não tem bala na agulha para um debate. 

- Quem descobriu o Brasil?
- Pedro Álvares Cabral, em abril de 1500.
- FONTE? 
- Sei lá! Como vou lembrar do livro e do autor? 
- Ganhei a discussão!!!

25 de jan. de 2021

Meu diário, minha pirâmide *


Há anos que quase começo a escrever um diário.  Antes porém passo um tempão imaginando o caderno que vou comprar. Depois me pergunto: por que não um virtual?  Hoje em dia é tudo na internet. Mas diário de internet não tem o mesmo charme do diário de papel.  Diários são registros secretos que existem justamente para ser encontrados. Se Anne Frank tivesse feito um diário virtual ele jamais teria sido encontrado. E se fosse estariam até hoje discutindo se era dela mesmo ou não.

Não, diário de moral é no papel. Caderno capa dura e de preferência sem linhas.

Decidi que quero um.

Diário é uma coisa bem íntima. É o receptáculo do nosso eu inconfessável.  Lá estão nossas confissões e sonhos, desilusões e vaidades. Lá estão impressões e opiniões que depois mudarão radicalmente, e delas nos envergonharemos.  Por que escrever algo que posso me envergonhar depois? Não sei. Aprendi que nessa vida a gente precisa de um monte de coisas das quais não precisa.  E teorizar demais é inútil.  

Sim, há coisas humilhantes que precisam ser ditas e em seguida caladas.

Todo diário é como uma pirâmide:  tanto esmero em fazer, em decorar e encher de tesouros. Pra quê? Pra enterrar tudo no deserto. Qual o sentido? Não sei. Talvez o sentido seja a esperança inconfessável de ser encontrada, descoberta, decifrada. Ah, a estranha necessidade de fazer e ocultar, revelar e sonegar.  E a esperança não dita de um dia renascer nos olhos de um apaixonado por histórias. 

Essa é a função do diário: guardar e revelar. Registrar pra esconder. Não me pergunte de novo.

Por isso nunca escrevi um: porque ainda não havia entendido essa contradição.  Agora entendi. Sou uma pirâmide. 

Talvez só por hoje eu tenha concluído o seguinte: um diário é para ser lido sim. Ponto final. A gente quer que alguém se interesse tanto por nós a ponto de violar aquele frágil cadeadozinho. Somos como a mocinha antiga que, por pudor, não se permite beijar mas sonha romanticamente com o homem que a desejará a ponto de ignorar regras e roubar-lhe um beijo.  

Mesmo assim todo diário é secreto.

Se é secreto, pra quê escrever? Se não é secreto, pra quê ocultar?

A gente escreve um diário para alguém. Alguém que não sabemos quem é ou quem será mas é alguém muito querido.   Ele lerá com total interesse todos os meus suspiros e impressões. Todo diário é uma homenagem a esse alguém que, ao contrário de milhares, quis saber como me sinto.  

Escrever um diário é dizer para si mesmo que essa pessoa existe. Ou existirá. Pensar nisso deixa tudo muito mais relevante. Esse alguém vai sentar quieto, cheio de tempo e boa vontade, e vai se interessar pelo que digo.  Sua curiosidade virá com simpatia por tudo o que está ali, em suas mãos. Ele estará propenso a concordar comigo e acolher minhas ideias. Será uma propensão carinhosa, gentil. Ele vai achar interessante a minha visão do mundo mesmo que não concorde. Folheará minhas páginas com cuidado para não se soltarem, de velhas que são. 

Talvez isso leve anos para acontecer. Tomara que leve. Mas seja quando for, meu espírito estará por perto. Vou sentar no ladinho só pra ver o jeito dele, dessa pessoa sem face.

É, vou escrever um diário.  Vou amanhã comprar um caderno bonito e começar.

Sou uma pirâmide.

17 de jan. de 2021

Obs

Tenho republicado textos antigos misturados com os recentes. Noto agora que isso é um erro. Atrapalha a percepção da mudança sutil que o tempo causa nas ideias, na maturidade.  Bagunça tudo. Fica parecendo que tenho surtos repentinos, mudanças drásticas de estados de alma.  Acredite: não sou assim. 

Mas para quem estou explicando isso? O que importa?

Quando as bolhas espocam *


Não, eu não sou escritora. Tive uns surtos tempo atrás mas perdi a mão. Perdi o trem.   Houve vários trens em minha vida e todos se foram.

Há um momento ideal para as coisas acontecerem. Elas se insinuam, brilham, permanecem suspensas por alguns momentos no ar e por fim espocam sem muito alarde, como bolhas de sabão.

Revirei meu blog desde o início. Descobri que lá atrás, no começo, eu escrevia muito, mas muito mal. Ridiculamente. Desejei apagar aquele monte de banalidade mas não o fiz.  Não consegui me renegar. 

Pois bem, segui viagem e percebi minha fase áurea.   Consegui ver aquele tempo quando "as coisas estavam suspensas no ar" sorrindo e me convidando a seguir em frente, me aperfeiçoar, evoluir.   Tirei do sepulcro uns textos muito bons, de minha autoria. Tão bons que humilharam-me enormemente pois hoje não me sinto capaz de repetir as façanha. Os tais textos olharam-me de cima para baixo, meteram o dedo em minha cara e disseram: acabou pra você.   Foi uma coisa pesada perceber que a fertilidade passou e que a alma também envelhece. Não me sinto mais capaz de escrever nada com aquela qualidade.  As bolhas espocaram e fiquei aqui, com o copinho de sabão na mão, sem ação.

Sinto certa saudade daquela Cristina angustiada que escrevia coisas mais sensíveis.  E aqui estou eu, com a sensação estranha de que não adianta correr atrás. Que a vida segue sempre em frente e isso não é necessariamente bom.  Em algumas estações ela deveria parar um pouco, mas não para.   

Só tenho então o computador diante da cara e um impulso tênue de dar mais uns passos só pra não perder muito o jeito de andar. Preciso continuar mesmo que não valha nada, que ninguém queira nem precise.  É uma espécie de missão que tenho que cumprir, com ou sem glória.   Porque a vida continua marchando feito louca e ela não quer ser esquecida. Ela quer que eu a registre mal ou bem, para a minha glória ou humilhação.

Pois registro sem glamour que é noite, tenho azia e cansei de querer coisas. Olho para trás e vejo tristezas. Sim, há alegrias bem risonhas, mas os véus da tristezas não saem da frente e atrapalham um pouco a olhadela. O futuro é um fim-de-festa onde não preciso me preocupar em limpar o salão. Só quero tirar os sapatos e tomar um banho.  E ninguém quer saber o que virá.

Nada incrível vai acontecer amanhã. O que tinha que ser, já foi. E isso é tudo.

REALIDADES BRASILEIRAS