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10 de nov. de 2013

O Grande Irmão *

Quando mocinha cheguei a  assistir alguns filmes de terror/ficção científica bem marcantes. Vários deles - se não todos - tinham algo assustador em comum: mostravam um mundo onde as pessoas eram constantemente vigiadas, onde não havia mais uma réstia de liberdade. Terminava o filme e eu ficava imaginando o horror de ter olhos constantemente cravados em minhas costas,  ter todos os atos medidos e julgados dia e noite. Um dia - pensava eu - os homens viverão num clima de constante receio e nesse dia espero estar morta. Privacidade será um luxo,  uma lembrança de tempos longínquos onde as pessoas eram felizes e não sabiam e tinham a possibilidade de cometer seus pequenos delitos em paz.

Quem seria o grande ditador que reduziria todos a essa vigilância assustadora? Isso de fato aconteceria um dia? E como reagir a ele? Como nos insurgir?

Como sempre a realidade supera os pesadelos mais criativos. Eu costumava imaginar um novo Hitler high tech subjugando a humanidade.

Nunca jamais eu poderia supor que o Hitler seríamos nós, todos nós, cada um de nós. Não há um ditador maléfico sentado atrás de uma sala de controle. Não há robôs nem câmeras estatais espalhadas pelas esquinas. Em algumas cidades até existem essas câmeras mas elas não conseguem ser mais vigilantes, julgadoras, venais e maléficas do que a câmera nossa de cada dia.

Nenhum plano de controle mundial consegue ser mais eficiente do que fazer chegar ao focinho das pessoas a possibilidade de ganhar uns trocados com alguma filmagem comprometedora. Uma brincadeira, uma transa, um gesto de impaciência, uma confidência, tudo isso e muito mais pode estar sendo gravado não pelo ditador mundial mas pelo seu amigo, colega, vizinho, pelo seu sobrinho, sua mulher, o desocupado da esquina. Você tem bem poucos amigos, cara.

Antigamente tínhamos o direito de dizer frases infelizes e depois nos envergonharmos delas. Hoje nós a dizemos e depois ficamos aterrados imaginando quem pode ter registrado e o quê a pessoa fará com o tesouro. Nem dá tempo de pensar em arrependimento: o medo vem primeiro.

Nessa questão não há misericórdia ou perdão. O dono de uma gravação tem o coração de pedra e seus olhos brilham. Agora todo mundo pode se transformar daqui pra ali em um abutre.

O que eu tanto temia nas fantasias da juventude finalmente aconteceu, e com cores mais tenebrosas. Não há uma lente maléfica controlando a vida de todos os pobres mortais. Os pobres mortais é que são essa lente maléfica e eles estão em todos os lugares. O Grande Irmão arregimentou um exército eficiente.

7 de nov. de 2013

Aquém da linha

Está determinado: ninguém pode ir além de si mesmo.  Depois de tanta megalomania juvenil, dar de cara com essa verdade pode parecer meio chato a princípio.

Claro que não podemos descrer do poder da determinação humana. É válido buscar crescer, melhorar. Não posso desprezar o valor do auto aperfeiçoamento. Quer dizer... Posso desprezar sim.

Não existe o tal auto aperfeiçoamento. O que pode acontecer, quando muito, é um simples retorno ao projeto inicial.

As maldades da vida acabam nos descaracterizando. Com o tempo vamos ficando com uma cara que não era a nossa, cheios de gambiarras. Vamos entortando.  Um dia a gente acorda, faz uma auto análise e deduz que melhorou. Evoluiu! Só que toda melhora que supomos ter alcançado, na verdade não é um "andar pra frente" mas um "andar pra trás".    

"Andar pra trás", aqui, não tem nada a ver com retrocesso. Tem a ver com volta às origens. De certa forma é um avanço, mas não um avanço como imaginávamos. É um avanço não pra frente, mas pra trás.

Acho que todo pensamento de elevação moral-espiritual-sobrenatural não passa de um grande equívoco. Deus nunca nos propôs isso.

"Quando Deus nos desenhou ele estava namorando na beira do mar."  Algum maluco escreveu isso como uma forma de dizer que quando ele nos fez humanos, na verdade curtiu a ideia.

Então o que chamamos de "evoluir" nada mais é do que tirar carrapatos.  Não crescemos, apenas corrigimos a postura empinando o peito.

Todas as advertências que entendíamos serem para nossa evolução, na verdade representavam o contrário disso:  eram chamados para que voltássemos a ser simplesmente humanos.  As decepções, os vícios, os medos, a violência, a competição, o mercado de trabalho, tudo isso nos desumaniza.  Não somos chamados à divindade, mas à humanidade.  A tradução de "Arrependei-vos" é "Volta, galera!  Aprumem-se porque desse jeito vocês estão ridículos! "   "Arrependei-vos" também pode ser traduzido como "Respeitem o projeto inicial, certo? Vocês não vão conseguir ter uma ideia melhor que a minha."

Decididamente ninguém vai além de si mesmo. Ninguém ultrapassa a linha vermelha, por mais que tente. Você consegue ser mais caridoso mas se auto glorifica. Tenta ser mais carinhoso mas se torna possessivo. Trabalha muito mas despreza quem não se esforça na mesma medida. Procura ser justo mas se torna implacável. Canta bem mas não acerta fazer uma farofa de ovo.

Mas anime-se: isso não é uma condenação! Na verdade a conscientização dessa impossibilidade nos liberta. É como se o dono do circo desistisse de nos ensinar truques complexos e nos liberasse para passear no bairro, comer e dormir tranquilamente como qualquer serzinho comum.

Talvez não tenhamos sido programados para a excelência - pelo menos nesse mundo. Talvez não sejamos fascinantes. E daí?  Ser livre para curtir as doçuras da própria mediocridade, sem cobrança ou encheção de saco, não é lá uma má notícia.




4 de nov. de 2013

Acasos



Amanhã milhões de pessoas vão nascer
Entre elas talvez esteja a que vai te matar
Ou a que vai te amparar benignamente.
Entre elas talvez esteja
Aquela que, em seus braços,
Te salvará das labaredas da dor.

Amanhã milhões de pessoas vão morrer
Entre elas pode estar aquela
Que te amaria para sempre

É certo que muitos morrerão amanhã
Entre eles pode estar você
Entre eles pode estar a flor mais meiga,
Que você jamais beijará.

Amanhã uma mãe será deixada
Aos prantos no aeroporto
Amanhã nascerá a sorte grande
E também o enorme infortúnio
Qualquer um de nós poderá colher nos braços
Tanto um quanto outro.

Olhos se encontrarão
Flores serão pisadas
A chuva unirá nas marquises
Mil futuros namorados


Amanhã alguém perderá a agenda
Esse alguém poderá ser você
Porventura outro a encontrará
E não verá sentido algum
No que era o fio condutor,
A única harmonia
De toda a tua pobre vida.

30 de out. de 2013

Caminhando em círculos


Cada qual escolhe o seu caminho. Tranquilo. A dificuldade surge quando a coisa acontece em massa.

Posso derrubar uma árvore. O mundo não vai se acabar. Posso abrir mão da eletricidade e passar a queimar umas toras sem problema. Acontece que se todos fizerem o mesmo teremos o caos.  Precisamente aí reside a minha queixa:  "os outros" limitam muito a minha liberdade.

Posso fazer qualquer coisa por pior que seja e a repercussão será mínima ou nula. Quanto mais insignificante eu for, maior será minha área livre de ação.  Minha liberdade é inversamente proporcional à minha relevância como personagem social. Quanto mais invisível, mais livre.  Maravilha!  O problema é quando aparece um monte de macacos de imitação querendo fazer o mesmo que eu faço.

O mundo é cheio de macacos.

É impressionante o leque de possibilidades que o "Só Eu" nos proporciona! O "Só Eu" é quase um deus!  Enquanto for "Só Eu", tá limpo.

Claro que também existe outro personagem muito simpático: o "Nada a Ver". "Nada a Ver" é aquilo que era proibido até um dia desses mas agora liberou pra "Todo Mundo". Ninguém precisa se preocupar com o "Nada a Ver",  mas o "Só Eu" precisa ficar sob severa vigilância.

O  "Nada a Ver" beneficia a todos, mas o "Só Eu"  é para uma galerinha bem reduzida. Trata-se daquilo que é vedado ao povão mas a gente pode fazer  discretamente porque, afinal, somos especiais e temos muita consciência das coisas. "Todo Mundo" não pode mas se for "Só Eu" não tem problema.

"Todo Mundo" é um ajuntamento de manés, tolos, pessoas sem consciência que sempre extrapolam e não sabem o que fazem. "Só Eu" não! O "Só Eu" é chique e informado, prevenido e consciente.

É aí que nos lascamos. Todo mundo quer ser VIP.  Todo mundo quer ser "Só Eu" mas ninguém quer ser "Todo Mundo".

Acho que as regras sociais mais modernas estão totalmente voltadas para estender a área de ação do "Só Eu".  Todos estão ansiosos e tendentes a esquecer o resultado de se generalizar condutas que não eram liberadas antigamente. Uma coisa puxa outra SEMPRE.

Um exemplo: "Só Eu" posso desrespeitar as autoridades. Isso é facilmente solucionado. Só que estamos caminhando para o "Todo Mundo" - e o Brasil está se tornando um lugar cada dia mais assustador para se viver.

Outro exemplo: a nossa tão cara liberdade sexual, estendida para pessoas dependentes, imaturas e frequentemente irresponsáveis - os adolescentes - tem gerado frutos muito amargos. Não adianta inventar pílula nem camisinha porque nada disso neutraliza um impulso tão primitivo como o sexo casual. E nada disso neutraliza a irresponsabilidade. Só existe um remédio para irresponsabilidade: rédea curta. Mas ninguém gosta dele - nem eu!

A verdade é que todos achamos que podemos fazer o que quisermos porque sabemos o que estamos fazendo. "Eu sei gerenciar isso!"  "Todo Mundo" diz o mesmo e todos sabemos que não é verdade.

Você passa a juventude fazendo planejamento familiar e idealizando a aposentadoria e uma velhice legal - para mais tarde se deparar com uma filha grávida que vai lhe impor algo que você não escolheu, não se preparou, não quis. Vai lhe impor um tipo de vida que você já cumpriu, já venceu, não quer mais. Então a momentânea liberdade dela encolheu a sua liberdade para sempre. Acho que não foi uma troca justa. Eu preferia aquele tempo em que a momentânea limitação dela assegurava a liberdade tanto da mãe quanto da filha.

Semáforos e esquinas estão repletos de crianças não planejadas, geradas por pessoas "livres que sabiam muito bem o que estavam fazendo".   Caímos no conto. Posso estar enganada, mas parece-me que na época em que os pais vigiavam os filhos e os controlavam não havia tanta criança abandonada.  A regra não era nada agradável no varejo mas era excelente no atacado.

Não existem leis para o "Só Eu". O que sempre existiu foram regras pra "Todo Mundo" mas que o "Só Eu" desrespeitava sem grandes alardes, por debaixo dos panos e a repercussão era pequena em termos sociais. Tais regras nunca foram 100% respeitadas mas enquanto ainda havia algum controle o mundo era melhor.  No tempo em que o adolescente só saída de casa com autorização, tinham hora pra chegar e precisavam dar satisfação de tudo, havia menos assaltantes, menos viciados, menos gente estuprada, menos gestações involuntárias, menos gangs.

Tenho pensado muito nas regras "idiotas e repressivas" que vieram de um passado longínquo e misterioso. Será que elas surgiram do nada, sem uma motivação explicável? Ou foram criadas em resposta a algum problema social muito real, complicado e grave, que tirou o sono dos nossos antepassados?  O que levou aquelas sociedades "antigas, rudes e repressivas" a abrirem mão de tantas liberdades?  Será que foram forçadas a tomar o remédio amargo para reverter um mal maior?

É muita pretensão da nossa parte achar que sabemos como era o mundo a sete mil anos atrás - por exemplo. Por mais que vejamos documentários, tudo não passa de especulações.  Há muito, muito tempo atrás, provavelmente o mundo era um ambiente estranho, irreconhecível.


Talvez a herança que as civilizações antigas deixaram para nós tenham sido essas "regras idiotas e incompreensíveis", que nada mais são do que a reverberação de broncas monumentais que explodiram naquela época remota. Aí as sociedades aceitaram as limitações, as regras, as proibições... e depois de muito tempo os problemas foram sendo sanados. Ufa!

Contornaram a coisa... mas as regras permaneceram, até por força do hábito. E viraram tabu. Como o problema não existia mais, as gerações posteriores começaram a achar que aquelas regras eram gratuitas, não tinham sentido algum pois pareciam não ter qualquer relação com a vida real.

Talvez  as categorias de pessoas que recentemente se sentiram prejudicadas por tabus repressivos tenham trazido tanto, mas tanto problema no passado, que os antigos aceitaram fechar um acordo que limitaria a liberdade, mas pelo menos salvaria a sociedade. Os tabus podem ter sido a salvação da lavoura em tempos idos. Chato pensar isso, mas é uma possibilidade.

Mas aí "Todo Mundo" ficou com inveja do "Só Eu". Claro. Então brotaram do chão teóricos de toda espécie para provar por A+B que aquelas regras eram esdrúxulas. E o povo acreditou, claro, porque a gente acredita sempre no que nos convém.  Que não quer ser "Só Eu"?

Deu no que deu. Acho que estamos criando um mundo propício ao ressurgimento de todas as ervas daninhas do passado. É algo parecido com o mosquito da dengue: todos pensavam que tinha sido erradicado mas agora as condições se tornaram totalmente favoráveis ao seu ressurgimento.

Nossa sociedade está se deteriorando de tal forma que finalmente vamos entender o motivo daquelas regras limitantes do passado.   Vamos ter o "privilégio" de ressuscitar diversos fantasmas que terão grande prazer em nos explicar o motivo de tudo aquilo.  Muitas gerações se passarão até que alguém tenha coragem de admitir a mancada e colocar limite na permissividade ensandecida de hoje.

Não estou advogando nada. Apenas gosto de fazer uso da minha imaginação.

Por mais que minha hipotética teoria se provasse verdadeira, ainda assim nossas ânsias animais nos impediriam de lhe dar ouvidos. Sei que assim é porque assim sempre foi.

Mas vamos que vamos. Nosso destino é mesmo andar em círculos.


14 de out. de 2013

Bola de cristal

Atualmente muita gente já perdeu o direito de dizer desaforadamente "eu não tenho bola de cristal!"  Temos bola de cristal sim.  Não exatamente redonda.

Nosso querido tablet!  Elegante, precioso, fininho e de superfície tão lisa quanto a da bola.

O que uma bola de cristal faz que meu tablet não faz melhor? Só para começar: nunca vi bola de cristal mandar  documento para impressão. Nem arquivar nada.

Você deve lembrar de como era falho o software das bolas de cristal: as coisas apareciam enigmaticamente na "tela" de forma meio turva, estranha, depois de muita invocação. E o enigma ainda tinha que ser interpretado. De "revelação" pra "dica falsa" era um pulo.

As bolas travavam mais que Windows Explorer e não havia a colher de chá das janelas. As bruxas - ou ciganas, dependendo da idade - ficavam de plantão esperando alguma coisa mais esclarecedora aparecer. Claro que se você quiser pegar uma promoção da TAM vai passar por coisa parecida, mas o tablet nos possibilita acessar uma pesquisa enquanto bisbilhotamos outra coisa em outra aba. As bolas de cristal não tinham abas.

Em sua telinha iluminada podemos observar o mundo em tempo real. Não é mágico?  Podemos ver e nos deixar ver.

Mas há um item para o qual o tablet perde pontos para a bola de cristal:  no quesito "místério". (Ou não. A sua vó talvez lidasse melhor com a bola...)   De qualquer modo é verdade que havia todo um clima nebuloso ao redor da bola. No tablet é tudo muito curto e grosso. Até guris suados com média 4 no colégio dão conta do recado.

Seguindo um pouco mais com o raciocínio: vocês já viram como é incrível a quantidade de magias que viraram tecnologia? A quantidade de feitiço que virou ciência é assustadora.  Ou somos gênios ou merecemos, todos, a fogueira.

Estamos vivendo em uma época de grandes revelações. Nossos antepassados nos considerariam serem misteriosos. Lamento demais não ter a chance de me exibir para eles.  A tecnologia é algo tão empolgante que não deixa de ser uma afronta ainda termos que nos deparar com problemas como coleta de lixo e cocô de cachorro. Estamos na era das luzes, do poder da comunicação irrestrita! Posso ouvir vozes, ver sem estar lá, comunicar-me com alguem do outro lado do planeta, sondar. Hoje é possível entender que todo o mistério em torno de Joanna D'Arc tinha um nome: bluetooth.  Pobre Joanna D'Arc...  A velharada da época não entendeu o lance. Ela, por sua vez, não soube explicar. Deu no que deu: tostaram a menina.  Hoje ela posaria patricinha high tech, garota antenada e tal.  Aprenda de uma vez por todas: é muito mais seguro dizer que está recebendo mensagens por bluetooth do que atacar de "estou ouvindo vozes." Faltou malícia à garota.

...  Isso me leva a pensar que qualquer apresentador de telejornal mereceria a fogueira também, se fosse para sermos justos.

Outra conclusão: ateus, os profetas não eram malucos! apenas estavam de posse de uma tecnologia avançada demais para a época. Eles só tentaram explicar a experiência de uma maneira mais simples. aí vem vocês, desinformados, querem fazer com o nome deles, figuradamente, o mesmo que os religiosos fizeram com Joanna D'Arc - ao pé da letra.

Qual a diferença entre um tablete e uma bola de cristal?  A principal é que o tablet foi liberado pela igreja e pelos ateus. Depois de longas reuniões decidiram que não era questão de fé, então passa.

Estou até pensando em sugerir a criação de um tablet em forma de globo, só para provocar as mentes empedernidas. A dificuldade seria conciliar a ideia de "tablete" com a de bola. Mas confio na capacidade dos nossos cientistas. Se tiverem algum problema com coerência ou "idéias conflitantes" basta chamar algum político para contribuir com o projeto.


E por falar nisso...  Estou começando a achar muito suspeita aquela história de Moisés descendo do Monte Sinai com  duas "tábuas" contendo os mandamentos. Para ser uma aparição tão impressionante a ponto de passar para a história, com certeza não se tratava de Moisés descendo do monte com dois pedaços de pedra. Eram tablets sim! Outro indício: quando Moisés se aborreceu, jogou as "tábuas" no chão e elas não prestaram mais pra nada. Se fossem mesmo de pedra ainda dava para consertar.

Vai ver que o túnel do tempo sempre existiu. Adoro acreditar nisso!

Como podem notar, hoje tirei o dia para desvendar mistérios.



2 de out. de 2013

Não é o que dizem por aí, mas...

Estou cada vez mais convencida de que amor não tem nada a ver com sexo. Sério.

 Quanto mais eu penso sobre isso mais convicta me torno: o amor é espiritual, imaterial, é do outro mundo, de outro nível. Amar é ter a compreensão subterrânea do que jamais entenderemos.

O fato é que ninguém, quando ama, ama o corpo. A gente ama uma coisa que está lá dentro do corpo, escondida. Por isso queremos ficar sempre juntos e acabamos nos comportando como se quiséssemos entrar no outro. É que instintivamente temos a esperança de achar o lugar secreto onde aquilo que amamos está escondido.

É um fogo chamando outro fogo; são duas energias se puxando. O amor ama o amor.

O sexo é o equívoco disso tudo. O sexo só acontece porque o corpo vai junto, de carona, nessa viagem. Acontece quando as almas amantes, ansiando por estarem unidas, se aproximam. Aí os corpos, mesmo não entendendo nada, se inflamam e roubam a cena por alguns minutos.

O sexo vem sem querer. As ânsias do amor são diferentes mas como quer proximidade acaba atiçando o corpo.  Então, claro, os dois corpos se aproximam, porque, mal ou bem, é no corpo que a alma está presa. A alma não tem como não levar o corpo junto. Ele vai, sem entender nada. Aí as pessoas se abraçam ...e os corpos se acordam. Os corpos  não conseguem se comportar de outra forma quando são estimulados.


O amor sobrevive ao sexo. Quando dois velhos se abraçam, o desejo da alma deles é o mesmíssimo da juventude. A alma não fica velha nunca.. Então eles novamente se abraçam, na mesma sede e ânsia, só que agora os corpos não interferem mais nem tentam roubar a cena.

O corpo se gasta e acaba, mas a chama continua intacta Quando o corpo murcha, fica mais evidente ainda que sexo era uma concessão, uma distração, mas não tinha nada a ver com a história.

28 de set. de 2013

A gente aprende... *

Com o tempo a mulher aprende umas coisinhas básicas:

É bobagem essa fissura por "mudar o visual". Depois de uma certa idade uma mulher inteligente e antenada já chegou à sua melhor versão. Subverter os padrões a essas alturas do campeonato pode resultar em mico. Quando insistimos nisso, geralmente só o que conseguimos é ficar meio esquisitas. Aí com uns dias os amigos se resignam e deixam de franzir a testa.

É bobagem ter cinquenta batons se só gostamos de uns cinco e só ficamos bem com uns três. é chato dizer, mas a mesma regra vale para os amigos.

Acho que somos todos muito bonitos, só que os deuses tem inveja. Como não podem nos roubar a beleza, eles  se vingam fazendo a gente se dar conta dela sempre com dez anos de atraso - pelo menos.

Outra coisa que a gente aprende: comentarem a sua vida é muito diferente de "se importarem" com a sua vida. Não confunda nem se iluda. O suposto interesse dos outros pelas suas atividades pode estar no nível do entretenimento, coisa para se falar quando não há assunto. É, talvez você seja menos interessante do que supõe. As pessoas falam, falam, seguem seus caminhos e esquecem tudo.

E os elogios? Não significam NADA. Saiba: há pessoas que elogiam para promoverem a si mesmas à imagem de pessoa gentil. Marketing pessoal. Às vezes é falta de assunto ou sentimento de dever, em reuniões sociais. Uma mulher, por mais feia que seja, se gastou muito tempo e dinheiro na produção, merece algum enaltecimento. Há um certo consenso nisso - aponta estudo.

Por outro lado, a falta de elogio também não significa nada. Esse é o lado bom da notícia. Porque há os que se calam por inveja, por despeito. Há os que olham para você e deduzem que não se juntarão à multidão que lhe enche a bola. Nesse caso o silêncio é o elogio mais sincero que você poderia ter.

Outra coisa: pessoas que, por falta de espelho ou por saúde emocional, se comportam como se fossem bonitas, vão "embonitando" com o tempo. Sério: funciona.  Beleza tem muito a ver com hipnotizar os outros, não é uma coisa real.

Detalhe: o contrário também acontece: adotar "atitudes de feio" acaba com o visual de qualquer um.

Amenidades úteis.

24 de set. de 2013

Cenas de Metrô

(Texto de Márcia Gabrielle Dantas, jornalista)

Meia noite. Último metrô. Ela está concentrada em si mesma. Headphone, música alta, lê um jornal qualquer. Ela é mais uma de tantas mulheres com traços fortes, cabelo escuro, árabe talvez? Não dá para saber. 

Tantas misturas.

Todos do vagão estão voltados para si. Todos evitam trocar olhares. Todos apenas observam sentido da linha cinza gravado na parede acima da porta. 

Todos parecem cansados...todos, mas calma.... Menos um! Um homem alto, branco, de nariz afilado. Ele está diferente dos demais. Ele olha só para a moça mais bonita do vagão, aquela de traços fortes. Olha com um sorriso no canto da boca. Resolve sentar-se ao lado. Ela finge que não percebe. Ele vai além: pergunta as horas. Ela responde sem titubear e continua a leitura. Tem um ar esnobe ao falar. Ele parece encantando, não desiste. Respira fundo e pergunta: "Whats your name?" Só aí então ela realmente volta os olhos para ele e responde..."No..." Depois fica em silêncio, três segundos que parecem uma eternidade.
"Meu deus, é você?" Ela abre um sorriso gigante junto com uma gargalhada e começa a pedir desculpas.
Ele sorri junto e parece mais relaxado. Eram amigos de infância!  Mas senti um clima de romance no ar...Quem sabem não foram namorados? Ela fica tão surpresa com o encontro que esquece de descer... Os dois se dão conta algumas estações depois. Ele se oferece para levá-la até o destino. Ela aceita. Então, os dois saem do vagão juntinhos, cheios de nostalgia.

Me perdoem os headphones, os jornais, tablets, smartphones e toda tecnologia do mundo... A vida é mais interresante se olharmos ao redor.


20 de set. de 2013

Romantismo


A mesma sociedade que metralha o romantismo entre casais, acaba engolindo outras formas igualmente furadas de romantismo. 

A ideia do "bom selvagem" é uma tremenda tolice, mas ainda continua viva e gerando filhotes.

Índio bonzinho? Onde?  Aí ensinam nossas crianças que os índios vivem no mundo de Avatar, que adoram as árvores e respeitam a natureza.  Ora faça-me o favor!  São exatamente como nós: as árvores só duram enquanto não precisarem ser trocadas por outras coisas prazerosas. Dependendo da situação, a primeira coisa que fazem é entrar em acordo com os madeireiros. Não estão nem aí.

Há também o romantismo direcionado ao reino animal.  É essa tinta dourada que lambrega as mentes atuais. O raciocínio é: o ser humano é mau, os irracionais são bons e só matam o que pretendem comer. Mentira.

Tive uma gatinha cujos olhos brilhavam de prazer quando conseguia despedaçar um passarinho ou calango. Nem vou descrever aqui as técnicas de tortura que ela usava contra os pobres calangos porque não quero agredir as mentes mais sensíveis. Detalhe: a Lucrécia (o nome da gata) jamais comeu um calango sequer ou um passarinho. Não os prendia e despedaçava por fome. Nem por medo.

E as cobras? Matam muito mais do que aguentam comer. Capturam animais e quando não aguentam comer tudo de uma vez, os guardados como numa espécie de poupança. Igual a nós.

 Não tenham dúvidas: se os irracionais precisassem de dinheiro para sobreviver você os veria adotar as mesmas safadezas dos humanos. Todos os dias ia ter elefante dando trambique, cachorro vendendo mercadoria vencida, cobra assaltando, pinguins vendendo drogas, borboleta se prostituindo. Por outro lado, se nós não precisássemos de dinheiro estaríamos hoje nos matando e despedaçando uns aos outros com a mesma crueldade sangrenta das onças, aranhas, tubarões e outros bichos.

Cachorro, quando se invoca, pode atacar seus próprios donos. Já soube de vários casos. Não foram maltratados ou provocados. "Tipo do nada".

Pare de chamar os bichinhos de santos e humanos de monstros. Só o que nos eleva é o amor. Tirou isso, o que sobra é SELVA!

13 de set. de 2013

Roupas no varal


Palmeiras espiando por detrás dos prédios. Luzinhas piscando "eu tô aqui!"  A torre do O Liberal toda azul, imponente e calma. As meias, shortes e blusinhas penduradas na sacada. Minhas plantinhas com os olhos fitos na minha direção. Claro que querem se comunicar. Querem saber  o que estou escrevendo, afinal de contas. 

Difícil acreditar que o inanimado  seja isso mesmo: sem vida. As coisas convivem, se expressam e relacionam. Não pode ser só impressão.

As roupas adoram quando são sacudidas pelo vento. Ela riem, festejam. É a grande travessura do dia, de brincar de ser pássaro. Elas riem e arregalam os olhos, são crianças felizes.  Da sala os móveis espiam pelos cantos dos olhos, cheios de admiração. Desejariam a mesma brincadeira ao mesmo tempo que a temem. Parece ser tão arriscado! Móveis não brincam nunca, não sabem o que é acenar para os vizinhos segurando o fio só pela pontinha. As cortinas acompanham timidamente, ensaiam o mesmo movimento mas não passam muito disso. Não ousam ser tão efusivas. 

Em todo canto há cor e vida. Parece que só consigo participar disso um pouquinho quando estou só, completamente só, com meus pensamentos e percepções.

Às vezes sou roupa no varal. Às vezes sou como os sofás. 


8 de set. de 2013

O homem de Todo Sentimento

"Meus olhos molhados
Insanos dezembros!
Mas quando eu me lembro
São anos dourados!"

Quem é o Chico Buarque?


É o homem bonito dos olhos verdes. Mas claro que não é só isso.

Há um certo mistério cercando o Chico. As canções mais profundas, ele escreveu ainda tão jovem! Seriam necessários muitos e muitos quilômetros de praia para enxergar e entender tão bem e tão sentidamente o que ele percebia. A partir de quando essa percepção quase telepática, do sentimento humano, passou a ser tão clara pra ele?

A poesia do Chico é indiscreta de tão exata. É denunciadora em sua capacidade de descobrir o que cobrimos. É então desconcertante, bocuda, tocante.  

Conta a lenda que todo gênio decepciona na intimidade. Geralmente - dizem - são chatos, distraídos, distantes. Até maus, às vezes. Não sei. Dizem que são capazes de friezas glaciais, indelicadezas espinhentas, inafetividades grotescas. Dizem que Einstein era um marido horrível, que Mozart era um irresponsável, que Guimarães Rosa era esquisito, inseguro e cruel com a mulher.

Quem é o Chico Buarque, nas entrelinhas? Talvez o homem de "Todo Sentimento" nunca tenha encontrado a paz do amor. Seria possível? Seria possível entender tão claramente as nuances do sentimento feminino sem se comover?  Talvez o que ele escreveu tenha sido direcionado mais pela sua intuição do que por sua sensibilidade. Talvez ele escrevesse apenas o que gostaria tanto de conseguir sentir.  

Não posso crer que ele seja apenas um mestre das palavras. Ninguém domina o verbo a esse ponto. As frases tem vida própria e são forjadas a partir de uma matéria prima muito especifica. Nenhum verso tem magica sem amparo na verdade. Pode ser a verdade nua e clara ou uma segunda verdade, virtual. Pode ter a ver com a uma certa verdade almejada. Verdade escondida, verdade intuída, verdade abafada. Mas tem que ser verdade.

O Chico ama? Amou? Do que escreveu, o que viveu? 

Saudade, desesperança, solidão, lembranças, sentimentos persistentes... Se ele sabe tudo que escreveu, se nada saiu por encomenda ou acidentalmente ... Então o homem de Todo Sentimento não cabe em si de tanta lindeza. E talvez sofra muito porque, sem a música, não tem onde reclinar a cabeça. Onde encontrar alguém que lhe faça par, que olhe no fundo dos seus olhos verdes e enxergue  o que ele realmente é?

"Pretendo descobrir
No ultimo momento
Um tempo que refaz o que desfez
Que recolha todo sentimento"

REALIDADES BRASILEIRAS