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27 de abr. de 2016

Azul



Entrei esses dias em um palacete antigo onde sempre tive vontade de entrar. Não tive acesso a todos os cômodos mas entrei. Passei por um portão de grades trabalhadas, azulejos desgastados por milhares de chuvas, saltos e pontas de guarda-chuvas.  Mas apesar de tantos rastros tão mais sólidos do passado, nada me comoveu mais do que aquele azul.

Tudo me comove em construções antigas, de forma que já estou acostumada a ser tocada por maçanetas de louça, vidraças jateadas, tábuas corridas, coisas simples, curiosas, comuns ou graciosas da arquitetura do passado. Adoro principalmente  quando as paredes levantam as saias e me deixam ver pedras desiguais e o barro que as une. Mas agora foi a primeira fez que o que me fisgou foi a cor.

Ah o azul celeste descaradamente romântico, delicado e fora de moda! Sabe o azul celeste que, quando muito, vemos em quarto de bebê? Pois ali estava ele, naquelas paredes enormes, recostado no branquinho de portas e janelas.  Tão fora de uso que se olhássemos só pra cima só veríamos o passado - e aí que estava a mágica. Fixei meus olhos do meio da parede pra cima, pra não pegar pedaço de móvel nem de cabeça de ninguém.  Funcionou. Tive então uma sensação de paz, uma coisa tocante,  desejo saudoso de sentar ali, de vestido comprido e rendado, sabendo que não haveria carros lá fora. Era como se alguém me pegasse pelo braço e me mostrasse exatamente o que está me faltando e de onde vem minha melancolia.   Então vieram ondas suaves de memórias não ocorridas, lembranças não vividas e imagens de pessoas não nascidas. Vi a rua de pedras, o vendedor de cocada passando com sua camisa branca e puída, sem sapatos. Vi a mim mesma sentada enquanto uma menina brincava no chão com seu vestidinho de algodão. Por algum motivo todas as roupas eram claras, inclusive a da serviçal que ali estava, tranquila, sem pressa, nos fazendo companhia como boa amiga. Havia também uma máquina de costura perto da janela e eu sabia que outras pessoas transitavam na sala e na cozinha, atrás de mim, E todos me respeitava, e eu era velha e feliz,  Os poucos ruídos eram domésticos e denunciavam cada morador daquele palacete. Da rua só vinha o silêncio e o sol brilhante e a certeza de que a qualquer momento alguém querido iria chegar. Uma comoção calma vinda daquela parede azul, um sussurrar de um passado distante e desconhecido que no entanto não deveria se perder porque fazia parte de mim, de todos nós. O que sabemos de nossas tataravós?

Como era tudo tão diferente das cores vibrantes nas quais ando envolvida! Por que a gente muda tanto? Então eu quis o azul pra mim, quis muito! Quis ele e tudo o que ele conseguia fazer comigo. Desejei mais do azul como quem deseja mais uma fatia de bolo, mais um biscoito de manteira, mais uma bolinha de polvilho, numa espécie de gula da alma.

Lembrei do almoço e do lanche que viria com aquela tarde calma. Senti uma paz tão grande com aquele cor que eu não queria mais olhar para baixo e me deparar com a mesa, a moça, o computador, os arquivos e tudo o mais que afugentaria aquela mágica.  Aquele azul não combinava com nada que estava naquela sala.  Quem decidiu que aquela cor deveria permanecer ao longo dos anos? Isso só pode ter sido imposto por algum espírito antigo. Alguém do passado impôs de alguma forma, usou algum modo misterioso de influência para que isso servisse  como sinal de que ali já morou uma família distina , que aqueles ambientes aconchegavam suavemente gerações contemporâneas, que havia paz na janela aberta e música na máquina de costura. Ali estava todo o meu passado absurdo e não vivido.

Saí del lá com umas figuras de Versalles grudadas na parede da memória. Tudo por causa de uma bendita parede azul.

23 de abr. de 2016

"Gaviotas"


Ah, as gaviotas...

Não me corrija! As crianças é que sabem dar nomes corretos às coisas. Quando uma criança diz que é, é porque é.

As palavras segundo as crianças encaixam melhor em nossas bocas assim como uma dentadura feita sob medida. Corrigi-las é como forçar uma pessoa a usar a dentadura do colega de trabalho. Com o tempo a gente pode acostumar, mas não deixa de ser anti natural.

Sempre achei que as "gaviotas" voavam melhor que as gaivotas. As gaivotas voam meio torto, pesado. Como é lindo ver uma criança enchendo a boca e apontando com o dedinho "olha pai! Uma gaviota!" Nem se compara com "olha filho, uma gaivota!"

O mesmo eu digo das "salchichas": muito mais saborosas e suculentas do que as industrializadas e maléficas salsichas, cheias de corante.

E as "táubas"? Que barato! A gente podia fazer mil brincadeiras com elas! Inventar prancha, "esqueite", tudo! Já as tábuas não, são um perigo! Cheias de farpa, prego enferrujado sempre à espreita... Mantenham seus filhos longe das tábuas!

E na minha opinião todos os "poblemas" são contornáveis. Feliz de quem tem poblema. As crianças sabem disso no fundo de seus coraçõeszinhos inocentes. Por que corrigir-lhes e encher-lhes as mentes de pessimismo? Um adulto com "poblema" é um adulto otimista, não um ignorante. Enquanto ele tiver "poblemas" estará a salvo. O proplema não são os "poblemas" mas os problemas, entende?

E aqui vai uma dica: nunca dê refrigerante aos seus filhos. Faz mal. Mas "fizelante" está totalmente liberado e ainda desce redondo. A molecada sabe.

19 de abr. de 2016

Papel-papel

Lendo um romance, esses dias, deparei-me com uma cena simples, comum, na qual alguém mencionava o uso de "papel almaço".  Foi quando lembrei que esse é mais um item simples e querido do meu passado.


Antigamente, nos dias de prova, cada aluno tinha antes que passar na papelaria e comprar uma - ou duas folhas, por precaução -  se quisesse fazer a prova. Se não levasse o seu papel, o aluno estava frito.

Qualquer papelaria decente tinha papel almaço.  

Outro item tambem sumido do meu cenário de criança é o papel carbono. Ah o papel carbono! Como eu gostava dele!  Era o que havia de mais pratico para copiar desenhos e fazer trabalhos escolares. Como trazer para o caderno um mapa do Brasil? Com papel carbono, ora bolas!  E como copiar desenhos para colorir? Datilografar trabalhos, contratos, recibos, notas fiscais, tudo em três vias? com papel carbono. E os moldes para bordados?Também. Era o salva-vidas das pessoas laboriosas. Qualquer escritoriozinho de ruela esburacada tinha que ter. Poderia faltar papel higiênico, mas jamais o carbono.  Qualquer mãe que prezasse o sucesso escolar dos seus filhos tinha também, guardadas em alguma gaveta várias folhas novinhas.

Sei que parece bobagem mas dá uma saudadezinha dessas pequenas coisas que habitavam meu dia-a-dia. Se esses itens não sairam de circulação, pelo menos do vocabulário das crianças saíram. E eu, que não imaginava como alguém poderia se virar no mundo sem eles, vejo que todos seguimos em frente e estamos muito bem, obrigada.

Ah as papelarias de antigamente... Graças a Deus as cartolinas ainda existem! Mas se quisermos decorar cartazes com decalque, ficaremos na mão. Eu adorava comprar decalques. Pedia para a moça do balcão e ela trazia da prateleira uma caixa de papelão cheia de decalques com as mais variadas figuras para ilustrar trabalhos, decorar cartas, cartazes ou sei lá mais o quê. Eu ficava um tempão escolhendo. Queria todos! Na dúvida, os ramos de flores sempre venciam.

Se você não sabe, os decalques eram os ancestrais do clipart.  O Control C + Control V da época era assim:  a gente mergulhava a figura num píres com água. Deixava mais ou menos um minuto e quando ela estava desgrudando do papel, pegávamos com cuidado e fazíamos com que escorregasse para o local onde ficaria para sempre. Depois era só pegar um paninho bem macio para secá-la e pronto! Uma maravilha.

Acho que chega uma época da vida em que reviver se torna mais divertido do que viver. Nesse ponto torna-se quase irresistível tentar seqüestrar o interesse de quem estiver por perto para o nosso baú de lembranças.  Não adianta muito.   É que não queremos sentir nada sozinhos. Quem bebe, quer beber acompanhado. Quem come também. Cinema bom é com alguém do lado, para discutir (ou explicar) o filme. Pois também queremos companhia para as nossas saudades. Nada mais compreensível!  Mas geralmente o que a gente consegue, se tiver sorte, é um ouvinte educado (educado por fora e inquieto por dentro).

A vida, às vezes, é cruel.

Junto com o papel almaço,o carbono e os simpáticos decalques, lembrei da minha pasta escolar, que era de couro!  Não, na época ainda não era chique. Você vai rir mas vou contar: lembro bem do surgimento das revolucionarias mochilas. No começo achei meio estranho andar com uma pasta nas costas.

Pra terminar: minha camisa do uniforme era de algodão puro. Na época isso também não era chique. Chique foi o que vi uma colega usando: uma leve e "inamassável" camisa de poliéster!   Bem que eu havia reparado que a menina estava sempre impecável e sua roupa não amassava nunca!  E eu, mesmo tomando todo o cuidado, amarfanhava. Foi quando descobri que o truque eram os uniformes de poliéster, que não amassavam! Ô inveja!

Como as coisas mudam...

Os adultos diziam, quando eu era menina, que sentiam saudades de um certo "papel mata-borrão". E eu perguntava pra que raios poderia servir aquilo. Alguém me explicou que eles eram necessários porque as canetas não eram esferográficas. As canetas-tinteiro, ou as penas, às vezes encharcavam com a tinta do potinho, entende? Então pra não borrar o trabalho usava-se o papel mata-borrão, que na minha opinião seria melhor denominado como "papel chupa-chupa".

Está chegando a época em que ninguém mais vai ser tão específico quanto aos papéis. "Mata-borrão, almaço, carbono, papel quarenta quilos, nada disso vai ser mencionado. O que as próximas gerações vão sentir saudade mesmo é do ... papel! Pura e simplesmente.

Pra você ver: eu estou escrevendo tudo isso sem matar nenhuma árvore?!

15 de abr. de 2016

Auto traição

Se até eu mesma me traio, o que esperar do resto da raça humana?

Esses dias chamei a atenção de uma amiga. Ela estava reincidindo numa atitude que eu não achava legal então resolvi conversar em particular.  Mas errei. Não por ter tentado conversar, mas por não ter percebido sua incapacidade emocional de lidar com aquele tipo de diálogo.

Sabe o fruto da árvore proibida? Você poderia comer todas as frutas do jardim menos o fruto daquela árvore que estava no meio do jardim. Pois é: você pode criticar todos os tipos de defeitos de uma pessoa menos um: se o defeito for justamente o de não  suportar ser criticado. Porque se criticar isso, o errado é você, que sabia da incapacidade e ainda assim abriu o bico.  Esse tipo de crítica só vai terminar bem se você estiver errado e a pessoa for madura e souber dialogar. Se você estiver certo o stress está garantido.

Ora, se você sabia que a pessoa se sente profundamente agredida quando é questionada, o que estava esperando receber de troco quando questionou? Esperava que ela concordasse? Que dialogasse? Que refletisse? Que se enxergasse? Se a incapacidade dela é justamente nessa área!

Se você está certo, errou em abrir a boca. Porque para alguém assim um toque é sempre como um soco no estômago e uma advertência é sempre recebida como um tribunal de humilhação. Ela vive em carne viva e você não tinha nada que encostar.

11 de abr. de 2016

Encontro - Marcos Quinan


Amigas inseparáveis desde a infância, na adolescência e até se formarem. Juntas viveram na juventude, sonhos, anseios, as paixões e alguns amores.

Juntas cruzaram a época das maiores contestações, repressões. Foram despojadas e vaidosas, queriam conquistar o mundo. Lutaram pela liberdade e pela justiça. Cometeram transgressões e rebeldias, sempre juntas, confidentes, irmãs.

Perderam-se depois da faculdade. Uma casou-se, viveu a paixão e o amor; depois, todos os sentimentos multifacetados contidos no casamento.

Teve filhos, a casa dos sonhos, jóias nem sonhadas, viagens de férias e a atenção do grande amor. Quando os filhos cresceram, separou-se, perdida em seus valores.

Na outra, a paixão era latente; apaixonava-se perdidamente e, noutro instante, o coração estava disponível. Tinha muita coragem, seus casamentos duravam poucos anos; não tivera filhos, nunca morou muito tempo no mesmo lugar, na mesma cidade, no mesmo país.

Ficou famosa escrevendo biografias. Agora, vivia afastada do meio literário, perdida em sua coragem.

No aeroporto, cruzaram-se no saguão. Uma voltando para o que não conseguira ser, a outra indo buscar o que tinha ficado no seu desejo; não se reconheceram.

Apenas se desculparam pelo esbarrão.

7 de abr. de 2016

Tem louco fofo? *


Vez por outra escrevo sobre os loucos, hora fascinada pelo seu universo misterioso, hora incomodada pelo glamour ralo que lhes atribuem. 

Ninguém entende os loucos, muito menos eu. Às vezes penso na prisão mental em que vivem, naquela falsa liberdade de poder fazer tudo mas estarem aprisionado em um jogo assustador de realidade virtual. Imagina você dentro de um joguinho de video game maldito sem conseguir sair. Assim imagino a mente dos loucos, por isso às vezes tenho pena, às vezes tenho curiosidade e às vezes quero distância porque eles me fazem entrar em um certo tipo de conflito.

Dia desses uma amiga postou no Face um texto glamourizando a loucura. Não glorificava a doidice-doidice, mas uma loucura idealizada, como se fosse possível domar esse mal só até o ponto de ser engraçado e interessante numa sexta feira a noite e deixar de lado a falta de banho, o cheiro de cocô e os acessos de fúria. O texto que ela postou dizia algo como "eu prefiro os loucos do que os chatos normais"  (Veja aqui :  https://osegredo.com.br/2015/06/eu-gosto-e-dos-loucos/) .

Estou tentando (e ainda não conseguindo) calar minha boca no Facebook e descarregar aqui as minhas opiniões e discordâncias.  Quero migrar minha mente para cá. Calma, é aos poucos.

Pois é: não vejo graça nenhuma nesse glamour poético que.tentam dar à loucura. Essa coisa de que "eu prefiro os loucos" só pode ser aceito como texto poético mesmo.  Toda doença é um saco.

O texto mencionado fala na "liberdade" dos loucos em "dançar descalço", "passear na chuva" e coisas assim que os normais não ousam fazer. Isso para mim nada tem a ver com loucura. Tem a ver apenas com liberdade e liberdade é a coisa mais clara e consciente do mundo. Na loucura não cabe liberdade. A loucura é o aprisionamento a um raciocínio torto que escraviza. A loucura é a prisão do pensamento único, do pensamento tortuoso, da imagem persistente.  Dançar na chuva e rir e se colorir é para os livres, os conscientes. E se o cara é muito "doidinho-normal-fofo", vá conviver com ele e pode esperar que ele vai aprontar alguma. Aí o glamour acaba.

Estar louco é se divorciar da coerência. Não vejo graça nenhuma nisso. Odeio a incoerência, motivo pelo qual quanto menos louco pra mim, melhor.  Louco é aquele que nunca está no seu mundo, não entende o que você diz.  Não prefiro os inconsequentes, os que não medem seus atos nem suas palavras, os auto destrutivos,  os pródigos,  os problemáticos.  Esses "loucos maravilhosos" são uma beleza na vida dos outros, na casa dos outros, enchendo o saco dos outros. 

A incoerência,  para mim, é uma pedra no sapato, é uma música alta demais que não me deixa seguir em frente. É um incômodo que precisa ser detido, precisa ser resolvido. Talvez até todo mundo prefira os loucos... mas eu não sou "todomundo".

3 de abr. de 2016

Room


Esse é o nome do filme O Quarto de Jack. Vá lá e assista.  Ele trata sobre a dificuldade de uma pessoa retomar a vida depois de um grande trauma - no caso sequestro. Sequestro não: rapto.

Pra mim o filme não é bem sobre isso.  Tive a impressão de que apenas quiseram ser originais e passar boa impressão. Passar "uma ideia mais evoluída", então falaram sobre o desejo politicamente correto de deixar pra lá o pensamento obsessivo por vingança e pensar no que realmente importa: tocar a vida em frente, reconstruir.  Tipo "tá, chega, bora pensar em outra coisa!"

Vi que algumas pessoas acharam que a história ficou "meio que pela metade" porque deu pouca trela para o destino do ofensor. Já para outros o filme foi perfeito porque saiu do lugar-comum.  Já existem milhares de filmes policiais que mostram sofrimento-investigação-redenção-justiça.  E esse filme quis ser diferente, quis falar sobre o day after.

Tá. Mas não há day after que aguente sem uma resposta ao monstro, sem uma punição. Não precisariam gastar meia hora nisso. Umas poucas cenas já trariam alívio à nossa sede de justiça. Foi meio que desumano deixar a gente no vácuo só pra posarem de mente evoluída. Eles nos deviam isso.

Não, o filme não deixou o bandido solto. Só o deixou "pra lá", tipo "a lei cuida dele, eu tenho mais o que fazer".  Esse pessoal tem sangue de barata mesmo. Não entendem que não dá pra seguir em frente com um mínimo de sanidade se não pudermos imaginar a cena memorável de um homem daquele sendo julgado, condenado e passando o resto da vida em uma cela de 2 por 2.

Perdão... Perdão...  Assisti agora pela manhã um vídeo justamente sobre perdão. Dá pra notar que estou gatinhando nessa área.   Nesse vídeo é mencionada a história inacreditável de Mandela perdoando pessoas que lhe impingiram sofrimentos inacreditáveis por anos. Quando penso nisso, tudo se contorce por dentro e me sinto um verme. Não sei como eu me sentiria no lugar dele. Embora eu saiba do fundo do meu coração que o rancor só maltrata quem o sente e que o perdão não é um prêmio para o ofensor, mas para o ofendido, ainda assim... Ai...

Gosto de imaginar que se eu passasse todos aqueles anos presa talvez eu até evoluiria. Entenderia que só se retirasse da alma toda a amargura é que eu não enlouqueceria. Talvez na juventude Mandela não tivesse capacidade nenhum de perdoar. Pode ser que ele tenha crescido em sabedoria justamente com o sofrimento. Talvez  em seus piores momentos ele tenha pedido misericórdia a Deus para que sua alma não apodrecesse de ódio e Deus pode ter ouvido suas preces. Talvez. Talvez eu até pudesse vir a ser Mandela se passasse por todo o processo "de purificação" e crescimento que ele passou.  Sei lá. Melhor pensar assim.

Dizem que a vingança não satisfaz e que a pessoa não sente nenhum tipo de alívio depois de praticá-la.  Alívio total e cura, só com o perdão. Mas na falta de perdão só a justiça consegue aliviar uma grande ferida. E na falta de justiça,.. só a vingança consolaria.

Não, não quero acreditar nisso. Não posso acreditar que as melhores pessoas que conheço estavam erradas e que as piores pessoas, essas sim, estivessem certas.

Jamais me vinguei de ninguém. Também jamais fui alvo de um crime dessa monta - como no filme ou como na vida de Mandela. Já fui alvo de outras injustiças e afrontas menores que não me inspiraram sentimento apocalípticos. Exceto quando fui assaltada.

O que eu fiquei sabendo, quando fui assaltada,  é que a raiva gera fantasias de vingança tão intensas quanto as fantasias sexuais. Absolutamente intensas e exigentes de realização.  E todos sabemos que as fantasias são o único consolo de quem não pode se realizar. No sexo a realização alivia, dá alegria, sensação de paz e plenitude. Será mesmo, então, que a realização das fantasias de vingança não tranquilizam do mesmo jeito? Ou depois do prazer da vingança, ao invés de vir a paz, vem a tristeza? E ao invés do sentimento de plenitude vem o sentimento de degradação?  E pra piorar dizem que "a vingança nunca é plena"; nunca satisfaz. Seria como um orgasmo que se anuncia mas nunca se completa.

Não sei, não sei... A única coisa que sei é que da minha torre de impotência já fantasiei vinganças que jamais pretendi realizar. Nunca me vinguei.  E espero jamais precisar descobrir na prática como essas coisas funcionam.


28 de mar. de 2016

Assim falou...

"Queres escalar a altura livre; a tua alma está sedenta de estrelas; mas também os teus maus instintos têm sede de liberdade." Assim Falou Zaratrustra

O louco


Acho que todo louco tem alguma história triste para contar. Claro, nós não queremos ouvir.

Toda vez que encontro na rua uma pessoa desajustada penso no caminho que ela percorreu até chegar onde chegou. Quando deixou de ser uma criança delicada? Quando deixou de ser um adolescente adorável, cheio de idéias engraçadas? Quando, exatamente, se desesperou de tudo?

Qual será a história de cada louco? Eu queria saber. Deve ser comovente. Eu iria sofrer... mas queria saber a história dos loucos. A partir de qual cena seu caminho foi desviado? Em qual momento exato não haveria mais volta? Qual o golpe fatal? Qual foi a dor que não passou? Quem declarou seu caso perdido?

Onde estavam os amigos, os vizinhos solidários, os amores redentores, os professores paternais?

Esses dias fui fazer um lanche a noite. Sentada em minha mesinha vi um menino de uns 8 ou 10 anos de idade. Sujo, descabelado, com um olhar que as vezes parecia perdido e outras vezes ameaçador; mudava de aspecto a cada olhadela minha.  Parecia um bichinho, um bichinho acuado saindo da toca por força da fome. Parecia ter medo de algo que eu não conseguir enxergar. Talvez nem fosse medo. Aquela expressão pode ter-se  apegado ao seu rosto como um papel jogado pelo vendo.  

Que dolorido é o caminho até a desesperança! E como pode um menino já ter percorrido esse longo caminho?

Todo louco tem uma história. Pena que não paremos para ouvir.

24 de mar. de 2016

Ciclos



Estou plenamente convencida de que o universo se movimenta incessantemente por ciclos. Não caminhamos necessariamente em uma direção, nem pra frente nem pé atrás. Pelo contrário, estamos condenados a círculos de caminhada enormes, imensos, de forma que por mais que andemos para a frente, essa frente é inevitavelmente curva e não temos meios de evitar chegar exatamente ao ponto do qual partimos.

Estou convencida de que é inútil denunciarmos a destruição do planeta. Podemos atrasa-la, quando muito, para o bem da nossa e da próxima geração, no máximo. Mas ela virá, tão certo como o dia seguindo-se a noite. Não deveríamos nos preocupar demasiadamente com isso. Mas preocupar-nos com uma coisa ou outra é algo tão profundamente ligado a nossa natureza que também não vejo sentido em denunciar nossa própria tolice se não conseguimos mudá-la.

Quando passei a acreditar no imenso círculo no qual estamos vivendo, observo que isso me leva ao fatalismo. O fatalismo é muito mal visto, pois nos condena a ser meros espectadores da nossa própria história, dos movimentos do mundo. É muito mais honroso que sejamos agentes, atores, ativos, não platéia.

Por ser possível observarmos os resultados, assustadores ou não, da ação do homem no planeta, somos acometidos da falsa impressão de que, por percebe-la, temos algum domínio sobre ela. Não temos.

Um ajuntamento de muitas pessoas pode acarretar um momento de pânico. Nesse pânico pode acontecer o deslocamento de grande massa humana em um determinada direção e esse deslocamento pode causar pisoteamento e morte. Isso é assustador. Quem olha de fora pode ser levado a acreditar que é muito simples parar a turba e evitar a mortes. Tudo parece ser tão simples e previsível que não entendemos por que aquelas pessoas simplesmente não param o que estão fazendo. Basta parar, basta querer. Só que nenhuma delas, que caminha para a frente com suas próprias pernas, tem realmente controle sobre o que está fazendo. O mesmo se dá com a guerra e tudo mais. Era só parar, não dar tiro e pronto!  Quanto mais afastados estamos do poder de decisão, mais simples  a questão aparenta ser. Os discursos a respeito do desmatamento de nossas florestas vão para as nossas crianças, a dona de casa, o pessoal da cidade. Eles se escandalizam e angustiam. Essas campanhas não tem poder algum sobre a vida de quem está com a serra na mão. Eles simplesmente não conseguem parar. 

Da mesma forma são todos os movimentos sociais. Acredito firmemente que o mundo já passou por diversos ciclos de criação, deterioração, destruição e recriação. Tudo já foi novo, passou a ser velho,  afundou e tornou-se novo de novo. Não conseguimos evitar e só não aproveito o texto para pregar o silêncio porque isso também não adianta.

É irresistivel se alarmar, é irresistível denunciar, é irresistível continuar e afundar. Por isso falo, por isso calo, por isso suspiro e vou dormir. Amanhã é outro dia e talvez eu seja assaltada por melhores pensamentos.

Da mesma forma que tememos a morte e até pressentimos sua chegada mas não a impedimos nosso fim é tão certo quanto o recomeço que nos aguarda.

20 de mar. de 2016

Brincadeira das sete horas


Deitei, fechei os olhos. Aquela preguiça das sete horas da noite. Aquela, antes de a gente resolver tomar banho, jantar, fazer umas coisas e finalmente dormir. Não vou dormir agora. São só sete horas!

Eu gostava de ficar assim, sozinha, parada, nessa hora mágica, desde quando ainda era pequena e ninguém que eu amava ainda havia morrido.

Fecho os olhos e trago para cá meu mundo imaginário. Nessa hora tenho muito poder de  "fazer de conta". É fácil. Basta ficar quietinha e se concentrar. Você comanda tudo com a mente e ela lhe leva para onde desejar e para a época que você quiser. Basta querer muito, mas muito mesmo. A saudade ajuda.

Faz-de-conta que sou criança. Sou pequena e estou deitada na cama dos meus pais. Não é hora de dormir. Ainda não jantei. Mamãe vai me chamar daqui a pouco. Tomei banho, estou perfumada e a cama dos meus pais tem um cheiro muito acolhedor. Adoro aquele lugar.

(Está funcionando!)

A luz do quarto está apagada mas a da sala está acesa e clareia parte do meu corpo. Sinto o cheiro gostoso da sopa que vem da cozinha. Sinto-me querida e segura e só vou abrir os olhos quando minha mãe me chamar. Quero que ela me chame, não quero levantar sem isso. Quero que se lembre de mim, que sintam minha falta, que mencionem meu nome. Meu vestidinho está limpo, minha calcinha é de algodão e a cama dos meus pais é tão cheirosa! Quero ficar aqui pra sempre. O quarto está em ordem e sinto o cheiro do chão recém encerado. Minha  boneca nova está guardada no armário, dentro ainda da caixa. Ela também tem um cheiro gostoso. Estou feliz demais com minha boneca nova. Amanhã vou brincar com ela. Sinto um aconchego dentro de mim, uma coisa gostosa me oprimindo o peito. Quase dói. Acho que é felicidade.

Meu pai saiu agora do banho. Ele entra no quarto com uma nuvem de aromas úmidos. O vapor da água quente chega a mim quase como um carinho, quase como um ser vivo e percebo o cheiro da loção que ele passou no rosto. Rio de mansinho porque ele pensa que estou dormindo. Não estou! Estou aqui sentindo a presença dele, achando-o maravilhoso com os olhos fechados mas com a mente aberta e alerta.  Reconheço-o, vejo-o enrolado na toalha sem precisar abrir os olhos. Ele me parece tão forte, tão grande! Seus cabelos escuros e cheios estão ainda ensopados. Ele está cansado mas feliz, faminto e em paz. O mundo lá fora não existe e ele me ama. Não abro os olhos mas sei que ele é o homem mais bonito do mundo. Sua voz está dentro de mim.

Continuo assim, deitada e vendo tudo. Ouço ele abrir a gaveta. Cai um talher na cozinha. Maurício diz alguma coisa para a mamãe. Minha mente passeia pela casa.

Chegou uma visita para estragar tudo. É uma mulher. Sei que minha mãe vai me chamar para cumprimentá-la mas eu não quero. Quero ficar aqui, assim, sentindo minha casa, adivinhando onde está cada pessoa, o que estão fazendo, percebendo-as, amando-as, tendo medo e me preocupando com elas. Sei que meu irmãozinho está quase dormindo e que minha irmã brinca com as bonecas.

Daqui a pouco vão me chamar. Daqui a pouco terei de beijar a visita. Daqui a pouco iremos jantar. Ele penteou os cabelos e respingou aqui em mim. Água geladinha.  As pessoas estão rindo na sala.  Acho que eles estão falando nas crianças - falando em nós! Acho que somos muito importantes.

Vou contar: um... dois... três... quatro...


Cristina Faraon

REALIDADES BRASILEIRAS